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segunda-feira, 3 de novembro de 2014

MAU HÁBITO

Tinha o hábito de, nas horas obscuras de madrugadas precoces, ser assaltada por essa vontade, nem de toda sombria, de escrever sobre um tema qualquer. Esperava, no entanto, conseguir desenhar letras de uma alegre esperança para, desta vez, fazer algo diferente.

Raciocinou que talvez, se escrevesse durante o dia, a luz natural pudesse influenciar o que diria naquelas frases de dúbio sentido que se propagavam por linhas e folhas, violando despudoradamente as margens do papel.

Seus sonhos que eram tristes ou meramente suas frases?

Mas gostava muito destes serões de imaginação fértil, personagens imprecisos, sonhos vorazes e monstros redivivos. Exorcizava alguma coisa meio nefasta que sua mente possuía e estava, assim, meio escondida, como acontece com todos os humanos que já viveram, vivem ou irão viver neste mundo de Deus.

Quando não conseguia se distrair com sua escrita, lia, ouvia música, via filmes europeus ou simplesmente olhava para o nada: o nada existencial, controvérsia acirrada na filosofia; ou o nada virtual, a nova mania de uma sociedade acometida pela superficialidade e que prefere se esconder no anonimato dos atos públicos cheios de extravagância e, algumas vezes (senão quase sempre) degradantes.

No entanto, ainda possuía algum dom poético, como naquele dia em que escreveu:

"O silêncio queima o céu e a espera faz os ponteiros das horas escorrerem, frios, rumo ao chão".

Como faria para apagar o incêndio celestial que consumia o globo de seus olhos; como faria para aquecer os ponteiros gélidos de seu relógio corporal, acachapado rente ao chão de uma vida rasgada em duas?

Respirava e andava, andava e respirava e com isso ia escrevendo ou apenas vendo o que era feito por aí. Não mudava hábitos, adquiria alguns novos e, de vez em quando, esquecia responsabilidades e apegos.

Seria isso um mal? 

Não fazia por gosto, não, simplesmente acontecia. Quando dava por si, já estava em outra casa, cidade, país, galáxia ou dimensão. E tratava de voltar antes que notassem seu vacilo. Infelizmente, nem sempre voltava a tempo e aí era difícil dar uma explicação satisfatória.

Como esclarecer que alguns seres desenvolvem o hábito de viajar na surdina e podem acabar perdendo um pouco a noção de tempo ou de ocasião? E que, em algumas situações inusitadas, voltam imprevisivelmente, sem conseguir chegar a tempo, embora sem se atrasar a ponto de transtornar as pessoas?

De qualquer forma, essas criaturas não se ausentam de forma tão prolongada a ponto de causarem grande estrago na noção espaço-temporal das pessoas com quem convivem, embora estas se deixem vencer pela insatisfação; nem sequer perdem eventos importantes, apesar dos outros não reconhecerem isso.

Elas simplesmente voltam-somem-voltam em frações de segundos. Um jeito peculiar de realizar viagens sem sair de onde estão.

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