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quinta-feira, 20 de novembro de 2014

O CRIADO

Nua de bruços, pernas abertas sobre uma maca, a mercê da rispidez das ceras depilatórias não é circunstância propícia à leitura. Mas dou um jeito de fixar mãos, queixo e olhos hipnotizados diante de "O Criado Indiano”, um bálsamo entorpecente que me pegou na veia.
Sei que sou presa fácil para literatura erótica, mas que diabo baixou nesse autor, Liam. G. McRonan, um irlandês de 22 anos, vivo, cara de ricota de óculos, expressão inocente de quem nunca se imiscuiu pelas cavernas de uma mulher?
Danadinho o menino. Escreve delicioso as primeiras e progressivas incursões amorosas de Rose e Mary, duas jovens primas londrinas que se encontravam nas férias de verão na imensa propriedade da família em Northamptonshire, no ocaso do século XIX.
Sob os rigores da moral vitoriana, a descoberta da sexualidade das duas moçoilas é apimentada por Hardik, um jovem criado indiano que foi importado pelo lorde avô para servir como cavalariço. Segundo McRonan, era chique e imperial a aristocracia dar um toque exótico aos seus domínios, recrutando jovens colonizados. Um aborígene cuidava dos cachorros de caça, um egípcio dos carneiros e um zulu abanava a tias menopáusicas, mas isso para mim é encher linguiça na história: não merece a menor importância na trama que me seduz.
As meninas se enrabicharam mesmo foi   pelo amorenado de Khajuraho, berço do erotismo hindu, que se dizia sacerdote secreto do sexo tântrico ao cair da noite.
O serviçal de sorriso iluminado, como descreve o irlandês, aproveitava a placidez dos cavalos para transformar baias afofadas em espaços de lições de libidinagem a três, com foco em preliminares, massagens em genitálias e arredores, e delírios do sexo oral saboreado com gosto. Tudo decantado em ricos detalhes que produzem situações que me encharcam até sob a ameaça da cera depilatória.
E arde o livro.
Urram as moças, sem que a virgindade fosse maculada todo entardecer, até que a farra é descoberta pelo mordomo puxa saco, que, claro, delata os três prevaricantes ao patriarca. As meninas desonradas são embarcadas de volta a Londres, deserdadas da família, temerosa que se tornassem vulgares cortesãs, apreciadoras da carne e dos prazeres do diabo.  Dá-se início a uma perseguição óbvia ao mais fraco do trio. Passa o indiano a viver entre os bosques, tal um animal ferido, mas sempre arranja um jeito de surgir no alojamento da criadagem, quando copeiras e cozinheiras fartavam-se com suas técnicas de dedos e línguas enlouquecedoras.
Passa o tempo e as palavras atiçam minhas malícias.
O cavalariço exótico sobrevive e aparece em Londres disfarçado de operário e protestante convertido. Consegue trabalho no alojamento de uma fábrica de graxa, onde um belo dia descobre Rose e Mary em vestes imundas de adolescentes escravizadas pela selvageria industrial que emergia. A fudelança recomeça, não mais no entardecer das baias fofas - e não mais virginais -, mas nas madrugadas dos becos lúgubres de Londres.
Sedutor incorrigível e próspero trambiqueiro, Hardik resgata a dignidade de Rose e Mary, oferecendo às duas moradia limpa, sustento, respeito, amor e carinho. Começam vida nova longe das cinzas das fábricas, mas não tão distante das tabernas onde renasce o sacerdote tântrico, capaz de produzir filas imensas de moçoilas de vida difícil, ávidas por aprender novos truques e prosperar pelas camas com os burgueses emergentes abastados.
O trato está estabelecido.
O indiano enche a burra de dinheiro, lecionando às fêmeas excluídas das fábricas a lascívia muito bem treinada em casa com Rose e Mary. Mas jamais permite que as duas priminhas de Northamptonshire, reconduzidas à condição de madames, levem uma vida ordinária. O tríplice casamento segue uma loucura, uma transgressão excitante no limite da pureza, do amor bandido e do suspense. Acho que uma delas vai escapulir. 
Estou nas últimas páginas e vou ralentar a leitura, temendo a abstinência psicossexual a que serei irremediavelmente condenada ao término da leitura. Sofro disso.
O fim de um bom livro é um tédio pós coito, é a volta solitária do aeroporto depois de embarcar uma paixão relâmpago, é um vazio interior, uma lacuna doída de personagens que entram na nossa rotina afetiva e se instalam sem cerimônia nosso imaginário. Esse triângulo despudorado inspirador só não vai me matar de saudade, porque já comecei a colocar em prática as delícias ensinadas por Hardik.
Agora mesmo, não vejo a hora de encerrar o ritual do sacrifício dos pelos indesejáveis, pular fora dessa maca, entrar na sauna do spa, trocar suores por energia e pele cheirosa, e depois de uma hidro massagem mal intencionada, correr para Renato, que, a esta hora deve estar em casa me esperando.
É longa a distância entre o spa e nossa alcova do outro lado da cidade. O que basta para represar o desejo de me entregar às delícias deliberadas pelo meu marido. Meu amorenado de sorriso iluminado, meu criado de uso próprio e real. 
E viva a literatura, o sexo e a imaginação.

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José Guilherme Vereza
Carioca, botafoguense, pai de 4 filhos. Redator, publicitário, professor, roteirista, escritor, diretor de criação. Mais de mil comercias para TV e cinema. Uma peça de teatro: “Uma carta de adeus”. Um conto premiado: “Relações Postais”. Um livro publicado “30 segundos – Contos Expressos”. Mais de 3 anos na Samizdat. Sempre à espreita da vida, consigo modesta e pretensiosamente transformar em ficção tudo que vejo. Ou acho que vejo. Ou que gostaria de ver. Ou que imagino que vejo. Ou que nem vejo. Passou pelos meus radares, conto, distorço, maldigo, faço e aconteço. Palavras são para isso. Para se fingir viver de tudo e de verdade.
todo dia 20


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