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quarta-feira, 26 de novembro de 2014

Perdendo pulso

Perdendo pulso

Um monólogo na UTI

Órgãos em múltipla falência. Dentro em mim, está tudo calando. Ouço o atestado do médico para os meus filhos: é questão de dias. Eles me visitam sempre. Chegam ávidos por boas-novas. Logo, os olhos embaçam, desesperançados. Tocam-me carinhosos, imaginando que pode ser a vez derradeira. Olham-me profundo, querendo resgatar-me ao convívio. Assim espero. Abraçam-me como podem, preocupados com sondas e agulhas, entre outros artifícios que ainda me mantêm acesa. Observam os monitores de sinais vitais. Por esses indícios tão precisos, tão preciosos, pouco resta. Quando a malfazeja bem entender, simplesmente me toma para nunca mais largar.

Falta quanto? Alguém assistirá à despedida? E meu poder de revolta não conta? Ninguém respeita? Como será lá, aonde vou? Quem me recebe? E se eu não me acostumar àquele lado? Morrer dói? Mais do que nascer? Mais do que parir? Mais do que viver? Por ser um acontecimento assim tão grandioso e definitivo na vida de uma pessoa, a morte bem que merecia mais guias e manuais, atenção multiplicada. Fiz curso de preparação para a aposentadoria. Nunca ouvi falar de preparativo para a morte. E essa consciência ainda cheia de energia, meu Deus!

O histórico é bom: índices satisfatórios, exames de rotina cumpridos. Corpo funcionando sempre. Nunca pedi para morrer, eu juro. Meu físico entrou em decadência por conta própria. Foi tudo de uma vez. Ninguém acredita. Um perrengue levou a outro. Na véspera, eu dirigia, caminhava, vestia biquíni, comia risoto, escrevia, estudava piano. Era natural respirar. Intestinos, rins e pulmões não precisavam de ordem para cumprir seu papel. Espontaneamente viva. De súbito, a invalidez, a dependência completa. Higiene íntima por mãos alheias, impossibilidade de levar o garfo à boca, a voz raquítica silenciando.

A aposentadoria saiu há pouco. Virei avó e nem curti o neto de rosto rosado. Troquei-lhe tão poucas fraldas. Dei-lhe quase nada de colo. Não o vi sem umbigo. Será que criará bigodes? E o casamento da Catarina? Eles mantiveram a data da cerimônia? Fizeram festa? Estaciono em vaga de idoso há pouco. Ah, essa consciência que não se entrega logo! Lembro quando cheguei ao hospital. Exames de rotina. Nunca ficara internada, a não ser para os quatro partos.

O romance não saiu. Alguém se anima a concluir a história? Queria tanto um coautor e um editor! É tão bom viver de linguagem. E se ela me salvar da morte? E se o óbito permitir mil enredos? Ah, preciso crer nisso. A esperança é sopro de vida.

Passei um bom tempo por aqui, de conquistas e sabores. Não vem ao caso reclamar de traumas. Quem sabe a morte também não me encanta, assim como a vida? À iminência de paragem ao mesmo tempo abrupta e anunciada, não cabe lamúria. Sigo de cabeça erguida, em aceitação reverente ao desconhecido. Não. Morrer é inaceitável. Recuso o veredito médico.

Atestado de decrepitude. Há exatas 30 noites no leito hospitalar. 30 anos? Sei lá. Dia a dia, mais aparelhos ligados. O vigor próprio se desligando. Quero um sorriso, ai, ai. Amo desesperadamente a vida, e a morte aparece de bandeja. Devo recebê-la com a mesma devoção. Morte nenhuma pode me desanimar. Continuo meu trabalho aonde eu for.

E quem me espera lá? O Eliseu? Ainda solteiro? Lembro seu peito forte, as mãos passeando pelo meu corpo, ele cantando em rouco tom os versos que fez para mim. Sempre é hora de pensar sem-vergonhices. Desejo enquanto eu viver. Quando eu vestia a camisola vermelha, Eliseu adorava. Nem desconfia que Maria Elisa é filha dele, coitado. Muito menos o Joaquim imagina. Será que o Joaquim se acostuma à viuvez? E se se mata? O céu aprova poligamia? Pequenas traidoras vão para o céu? Finados interferem na vida dos vivos? Bom demais. Meter o bedelho na rotina dos meus. Vou chamá-los logo, vocês vão ver. Eles não aguentam de saudade.

Quero uma vida bem leve lá em cima. Todo o tempo do mundo. Só prazeres. Vão me trajar adequadamente para o velório? Odeio branco. Prefiro o vestido dourado. Ah, esse poder sublime de sonhar. O verdadeiro Carpe Diem acontece na morte. Só pode ser. Ah, doutor, chega de privações. Basta de tristeza. Não estou servindo para nada mesmo. Hospital explorador. Saúde que não vigora. Quero rever o Eliseu. Contar a verdade pra ele. Desligue os aparelhos.

Maria Amélia Elói, Brasília-DF

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