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sábado, 22 de novembro de 2014

Ovos do ofício



Fim do turno de trabalho, Renato volta para casa aliviado por atravessar mais um dia de sorte na corporação. Executou os procedimentos de rotina, fez as rondas que lhe cabiam, verificou arsenal e munições, prestou os esclarecimentos devidos, orientou o grupamento, manteve a segurança. De si e dos seus. Ele sabe que o enfrentamento é inerente ao cargo e não uma possibilidade remota, mas até aqui as ocasiões de combate literal, de corpo a corpo sangue soco palavrão e pontapé, fizeram desvios providenciais e a ação necessária e esperada do sargento se deu na ordem do discurso.

No batalhão, sente que por trás de comentários comedidos existe algo de deboche, que nas suas costas há quem faça mímicas e aponte dedos e pisque olhos maldizendo sua postura. Renato tem o pensamento tranquilo de quem cumpre à risca o itinerário profissional, mas oscila em autoconfiança, especialmente à noite em suas folgas, enquanto prepara a farda para o expediente seguinte e pondera a própria conduta. Pode ser que seja um daqueles que demora a arrumar os papéis nos arquivos para evitar de sair com os demais em missão. Pode ser que seja um apaziguador e não um combatente. Pode ser que não seja talhado para aquilo e a livrança, sistemática ou coincidente, seja um aviso da vida, um sinal para que abandone a dúvida e procure outro ofício em que sirva melhor.

Renato sabe fazer pão. E gosta. E gostam dos pães que ele faz, elogiam até no trabalho durante a parada do café. Poderia viver dos pães, cogita isso há meses, talvez incluir pedaços de bacon ou linguiça na receita, ou trocar sal por açúcar e jogar frutas cristalizadas na mistura. Trocar a angústia cotidiana por uma porção considerável de leveza não era ideia ruim e o policial decidiu, assim de repente, assim na caminhada para casa, que a mudança tinha de ser já e precisava de farinha, fermento, ovos. E uma garrafa de refrigerante gelado, para inspirar a atuação na cozinha. Entrou na venda animado, catando os produtos nas prateleiras e acomodando tudo nos braços roliços. Colocou item por item no balcão e foi contando à dona Juraci sobre a massa sovada que aprendeu na televisão. Voltou para escolher os ovos. Bota parmesão ralado por cima, a mulher aconselhou. Botaria para ver no que ia dar.

Botaria orégano e manjericão, castanhas também, não fosse o imprevisto mais previsível desse mundo. O destino cobrando de uma vez só, que não se sai impune de compromisso, diriam depois. Ele mesmo se diria na frente do espelho, empunhando o barbeador. O homem saiu do corredor das batatas gritando com Juraci, que desse o dinheiro todo, velha gorda, e calasse a boca e parasse de chorar. A arma na mão tremendo encosta acima da orelha dela, a mochila aberta na outra mão espera o resultado da colheita, o capuz vestido, a calça folgada nos fundilhos, um berro, mais um, pressa, o clichê do assalto diante da clientela. Duas mulheres escondidas atrás dos sacos de feijão. Renato entre o dever e a vontade de não estar ali, o futuro para depois. Gesto automático, ele saca o revólver da cintura, dispara três vezes e acerta perto das costelas do assaltante. A dúzia de ovos mela seus coturnos e o chão da venda.    

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Andréia Alves Pires
Nasceu em Rio Grande, cidade ao sul do Rio Grande do Sul, é jornalista, mestre em história da literatura e autora do livro de contos De solas e asas. Integra o Coletivo Fita Amarela, colabora semanalmente com contos ao jornal Diário Popular e publica o que escreve, em primeira mão, no blog www.desolaseasas.blogspot.com.
todo dia 22


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