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sábado, 10 de janeiro de 2009

O Corruptor



Eu escovava os dentes, quando minha mulher escancarou a porta do banheiro, puxou-me pelo braço e me estapeou a cara com um jornal enrolado.
— Que isto, ‘tá louca? — encolhido, eu me defendia das investidas.
— Seu canalha, desgraçado! — e, desenrolando o periódico, esfregou-o na minha testa — estou indo para a casa da minha mãe.
Trêmulo, perplexo, apanhei o jornal e li a manchete da primeira página.

Professor depravado abusa de aluna.

E havia uma foto, não muito definida, onde eu aparecia beijando uma menina. Eu poderia correr atrás de Júlia e resmungar a afirmação mais utilizada por quem foi pego no flagra: “Não é nada disto que você está pensando!”
Poderia, mas não fiz. A surpresa de ver-me tornado celebridade de maneira tão inusitada privou-me de qualquer reação. Sentei-me no piso do banheiro, chorando e rindo de raiva.
As coisas não eram tão simples de serem explicadas. Cagadas nunca possuem lógica, sempre ocorrem numa sucessão sem explanação racional, e foi deste modo que me enredei nisto.

Eu lecionava na rede pública, recebendo aquele notório salário de miséria, estava frustrado, necessitando dar um passo além. Ganhava menos da metade do ordenado de Júlia e, apesar de nunca ter sido adepto daqueles velhos preconceitos machistas, este fato me diminuía diante dela, mesmo que este apoucamento nunca fosse verbalizado.
Recebi com egoísta alegria a notícia da demissão de Júlia. Estávamos fodidos, privados da maior parte da nossa renda, minha esposa deprimida, contas atrasadas, a filha tendo de ser transferida dum ótimo colégio particular para um colégio estadual, mas fui assolado por uma satisfação incomum, enfim, eu estava por cima da carne-seca em minha própria casa. Também vislumbrei a oportunidade de, a longo prazo, contornarmos a situação e termos, tanto Júlia quanto eu, uma vida muito melhor.
O e-mail dum amigo me convenceu a tentar a vida noutra cidade. Há três anos, ele ensinava num colégio interiorano e dizia-me estar satisfeito, bom salário e vida pacata. Contava-me também ter aberto uma vaga para professor da minha área e que, se eu desejasse, ele poderia entregar meu currículo nas mãos do diretor.
Conversei com Júlia e nos entusiasmamos com a idéia. Rafaela, minha filha, desaprovou a mudança, temia perder contato com as amigas, mas quando expusemos-lhe nossa real situação, ela compreendeu que era isto ou a bola de neve das dívidas que se acumulariam.
Mudamo-nos em janeiro e, dois meses depois, assumi meu cargo na escola. As condições eram diametralmente opostas às quais eu estava acostumado na rede pública. Por ser a única instituição de ensino privado da cidade, a maioria dos alunos pertencia ao mais alto estrato social daquele fim-de-mundo. A infra-estrutura surpreendia, contudo, a arrogância da molecada também não ficava muito atrás. Mas ao pesar prós e contras, na minha concepção, ainda valia a pena termos nos arriscado.
Adianto que não sou nenhum homem bonito — passei dos trinta e cinco, mechas grisalhas nas têmporas e um pneuzinho incômodo —, mas também não sou de se jogar fora. Tive dias melhores, mas anos de casamento, um emprego estressante e uma filha adolescente põem qualquer um pra baixo. Digo isto porque bem sei do fetiche, se é que posso definir assim, existente em relação a professores. Talvez seja parte da posição de autoridade e saber, duma figura sapiencial, provedor de conhecimento, em oposição à burrice do mundo cotidiano. Assim, atire a primeira pedra quem nunca foi apaixonada por um professor!
E comigo não era exceção: mesmo na rede pública, eu estava habituado a receber bilhetinhos, comentários jocosos das menininhas, coraçõezinhos no canto do quadro-negro ao chegar em sala-de-aula. Nunca, mas nunca mesmo, levei a sério tais investidas. Ética profissional acima de tudo, mesmo que algumas das alunas possuíssem atributos suficientes para porem à prova esta ética.

Não me lembro exatamente quando passei a reparar em Talita. Ela era aluna do terceiro ano, Ensino Médio, não se destacava pela inteligência, mas também não compunha o grupo dos bagunceiros. Meu único problema com ela era a incapacidade da menina em ficar quieta e, por isto, logo memorizei seu nome:
— Por favor, Talita, dá para parar de conversar? — e ela me fitava melindrada, mascando chiclete em desafio.
As provas bimestrais chegaram. Ao aplicar a avaliação na turma dela, alunos todos concentrados, meus olhos buscavam qualquer movimento suspeito (não que eu fosse muito rigoroso com alunos colando) e, acidentalmente, pousaram em Talita. Ela, cabisbaixa, cabelos loiros ocultando parcialmente seu rosto, maxilar movimentando-se no mascar do chiclete, caneta BIC oscilando nos dedos nervosos. Então, avistei a outra mão sobre a coxa, pele lisinha, e, obscurecida pela saia, na vão das pernas entreabertas, a calcinha branca.
Contemplei a descoberta por dois ou três segundos, mas refugiei-me no meu livro de chamada. Porém, as faltas, notas e nomes de alunos não me detiveram, assim, voltei a buscar as coxas adolescentes e o tesouro de algodão entre elas. Três meses de abstinência de sexo possuem este poder de tornar algo tolo, infantil, no maior dos estimulantes eróticos. Faz-nos imaginar o que estaria por debaixo da peça íntima, imaginar carícias, faz o coração bater mais depressa e a respiração se acelerar. Das pernas, ascendi a vista ao rosto de Talita e encontrei os olhos azuis dela me encarando, marotos, talvez lendo meus pensamentos, pois a mão que repousava sobre a perna começou a brincar com a barra da saia, subindo-a uns poucos centímetros, e ela passou abrir e fechar os joelhos, revelando e escondendo o que atraía minha atenção.
Fingi indiferença, apanhei um livro e simulei estar absorto na leitura, mas, vez ou outra, não resistia e meu olhar era atraído por este jogo de Talita. Às vezes, ela estava concentrada na prova, sorrisinho safado; noutras, cuidando-me, como se dissesse: “eu sei de tudo”.
O tempo da prova acabou. Os alunos vieram e empilharam os papéis sobre minha mesa. Percebi que a prova de Talita estava quase toda em branco:
— Estava difícil? — perguntei.
— Acho que não — ela respondeu — Mas eu estava pensando em outras coisas... — e sorriu para mim.
Fiquei sem reação, reduzido ao jovem que um dia eu fora, sem traquejo para conversar com garotas, que não sabia como se aproximar delas.
— Hum — resmunguei.
— E você, professor, em que pensava?
— Em nada, Talita — respondi sem graça.

Eu não conseguiria mensurar como aquilo me afetou. À noite, sonhava com as pernas de Talita; de dia, mal me concentrava nas minhas atividades. As manhãs que se seguiram foram angustiantes, ter de entrar na sala da garota e engolir a vergonha de me achar um tarado. No entanto, a reação da menina me tranqüilizou, simplesmente me ignorava, o que, apesar de doloroso para as expectativas por mim alimentadas, era a melhor atitude possível por parte dela.
Estava quase me esquecendo de tudo, mas, no final duma aula, Talita surgiu na minha sala e me disse:
— Professor, posso conversar com você?
Os alunos já haviam se retirado e, enquanto eu recolhia meu material, aquiesci:
— Estou com um sério problema, professor, e não sei o que devo fazer.
Pensei que poderia ser algo relacionado às notas dela, pois o desempenho dela era de regular para baixo.
— Eu sei como é, Talita, a fase pela qual você está passando é barra, mas vai passar. Acredite em mim, também fui adolescente e também não gostava de estudar.
— Não tem nada a ver com estudo, professor — ela molhou os lábios com a língua. Um péssimo sinal, pensei. Ela se aproximou, mas recuei um passo.
— Tive medo de vir até aqui... — ela acrescentou, achegando-se ainda mais. Eu até continuaria recuando, porém fui prensado entre Talita e minha mesa. Os pequenos seios dela se encostaram em meu tórax — Tive medo da sua reação.
Eu queria que ela se calasse, quer dizer, estava morrendo de curiosidade para ouvir o resto, mas tinha certeza de que nada bom sairia dali.
— Acho que estou apaixonada por você, professor — e, ao terminar esta sentença, os lábios delas quase tocavam o meu. Ela fechou os olhos e aguardou um beijo meu como resposta. Esquivei-me lateralmente, apanhei minha pasta e retruquei:
— Isto vai passar! Eu também já me apaixonei por professoras — ri, trêmulo do pé à cabeça, e sumi da sala de aula, sob o olhar incendiado de Talita, dedo indicador acariciando o lábio inferior.

Depois disto, minha vida se tornou um inferno (no melhor sentido da palavra). Onde quer que eu fosse, deparava-me com Talita; simplesmente, não havia mais lugar seguro para mim. E eu perdia o fôlego, a voz, o rebolado. Nunca antes uma mulher me desmontou como ela, e nem mulher de fato ela ainda era, apenas uma garota, somente um ano mais velha do que minha filha Rafaela, fato que levantava uma série de questões morais às quais eu me recusava a confrontar. No intervalo das aulas, com a imagem de Talita na mente, eu corria ao banheiro para me masturbar, tentar me livrar daqueles pensamentos que me consumiam.
E como os bilhetinhos, as piscadelas, as declarações de amor de Talita não cessaram, resolvi que deveria criar coragem e fazer aquilo que a natureza, aquele nosso resquício animal, me impelia.
— Encontre-me no estacionamento, depois da aula — sussurrei no ouvido dela.
Os instantes que aguardei no meu carro, tenso, tamborilando com os dedos no volante, me devastavam. Nenhum sinal dela. Concluí que Talita era idêntica à maioria das mulheres: elas lançam a isca, mas, na hora da fisgada, puxam o anzol pra fora d’água, deixando-nos boquiabertos, chupando dedo. Elas querem se sentir desejadas, e fim de papo.
Mas eu estava enganado, pois, cuidando o seu redor para se certificar de que ninguém a via, Talita apareceu e pulou para dentro do meu carro. Ria de emoção.
Mal trocamos palavras no trajeto até chegarmos num local ermo, a alguns quilômetros da cidade, na beira dum riacho, onde poderíamos ter alguma privacidade.
Assim que desliguei o motor, Talita saltou do banco do passageiro e se sentou no meu colo, beijando-me desesperadamente, deslizando as mãos por meu torso, desafivelando meu cinto e lutando para me livrar das calças. Eu respondia na mesma altura, apesar de um pouco atônito com a agilidade da moça:
— Se esta for sua primeira vez, pode deixar que eu vou com calma... — comentei, querendo parecer gentil.
— Minha primeira vez? Você só pode estar brincando, né, professor! — Talita quase gargalhou na minha cara, sem deixar, no entanto, de prosseguir na tarefa de nos libertar das roupas.
Transamos durante o dia inteiro e, apesar de um pouco decepcionado, talvez ferido na minha hombridade e na ilusão de querer ser o primeiro na vida duma mulher, não podia reclamar da experiência. Após tantos anos acostumado com uma mesma mulher, um mesmo corpo, que já não tinha a mesma forma de antes, tomado por estrias por causa da gravidez, flácido, sem a mesma agilidade e vigor, deparar-me com uma garota no auge físico, tudo no lugar, pele irretocável, cheiro de frescor, que fazia de tudo em todos os lugares, era rejuvenescedor, fazia-me sentir mais homem.

Menti para minha esposa, afirmando que, à tarde, eu realizaria trabalho voluntário no colégio, alfabetizando jovens e adultos. As esposas são um bicho esperto, farejam de longe uma mentira, mas acatam-na para preservarem um relacionamento estável. Nada me tiraria da cabeça que Júlia, desde este primeiro instante, percebeu a minha mudança, a presença no meu corpo do odor de outra pessoa e que, ao contrário de antigamente, quando eu quase suplicava por uma trepadinha no chuveiro ou antes de dormirmos, agora eu nem me aproximava mais dela, mesmo quando era dela a iniciativa. As mulheres percebem; Júlia fingiu ter acreditado em mim, e eu fingi ter acreditado que ela havia acreditado.
Logo, oficialmente, eu dava uma de bom samaritano, porém, na realidade, eu gastava as tardes com Talita num motel. Mas as escapadas para motéis começaram a nos entediar, passamos a nos encontrar em locais mais arriscados, em público, transando em banheiros de restaurante e provadores de loja. A excitação era tamanha que atingimos o ápice ao fazermos sexo no banheiro do colégio. Quanto mais perigoso, melhor.
Não sei onde estava com a cabeça quando deixei a situação sair de controle. O modo de conduzirmos nosso relacionamento apontava para o desfecho que estava por vir. Qualquer boçal perceberia o tipo de envolvimento existente entre Talita e eu, mas ninguém tinha coragem para nos desmascarar, até aquela maldita foto aparecer no jornal.
A sociedade na qual vivemos é regida por normas e leis hipócritas: tudo é permitido enquanto não for a descoberto. Bastou uma foto para pôr tudo a perder. Primeiro, a cena da Júlia, quando ela esfregou o jornal nas minhas fuças. Depois, uma ligação do diretor da escola, manifestando a insólita declaração:
— Porra, professor, se você quer comer uma aluna, tudo bem, mas seja discreto, professor. Esta não é a primeira vez que isto ocorre, mas um escândalo deste não podia cair nas minhas mãos. Agora quem terá de tomar uma providência para solucionar este pepino será eu. Você já deve imaginar que serei obrigado a demiti-lo. Os filhos-da-puta dos pais de alunos vão comer meu fígado!
Quer dizer, eu recebia uma confirmação de que sexo entre professores e alunos era costumaz, desde que não caísse na boca do povo. Talvez, até este diretor já tivesse a sua cota de menininhas nas costas. Foi neste instante que parei e refleti sobre o que eu havia feito de errado, e percebi que seria crucificado por puro falso moralismo. A própria Talita havia me confidenciado que, antes de mim, ela já havia transado com cinco rapazes diferentes e com uma moça, ou seja, aos dezesseis anos ela havia tido mais parceiros do que eu com quase quarenta; minha avó se casou aos quatorze anos e pariu uma dúzia de filhos; Charles Chaplin só traçava ninfetas; dizem até que Maria, a mãe de Jesus, quando se casou com José, contava com apenas doze anos. Exemplos não me faltariam e eu já tinha até uma solução para este escândalo: em poucos anos, Talita seria maior de idade, nós nos casaríamos e tudo se resolveria. Não posso dizer que eu a amava, mas certamente estava apaixonado e era dominado por um desejo incontrolável. Não poderíamos exigir mais do que isto.
Mesmo estando proibido de entrar no colégio, aguardei na saída, à espera de Talita, mas não a vi. Dirigi, então, até a casa dela, mas jornalistas a cercavam, todos querendo uma nesga da manchete.
Liguei no celular da menina, mas fui atendido secamente:
— Não posso falar com você, professor. Ainda não viu a merda que aconteceu?
Entendi a reação dela, afinal de contas, estávamos todos sob pressão. Júlia saiu de casa, levando consigo Rafaela. Não posso dizer que isto me abalou, nosso casamento já estava com os dias contados há anos e, se não fosse este escândalo, seria outra razão, talvez mais frívola, talvez mais grave.
Após alguns dias, os repórteres debandaram da casa de Talita e foi aí que encontrei uma oportunidade para conversar com ela, numa noite em que os pais dela saíram para ir à missa. Supus que Talita deveria estar de castigo em casa, punida pelos transtornos causados.
Bati à porta e foi ela quem a abriu. Ao me ver, assustou-se:
— Vai embora, professor. Não posso conversar com você.
No entanto, não obedeci. Entrei e tranquei a porta.
— Serei breve, Talita. Vim pedir para você fugir comigo, podemos nos casar e apagar tudo de errado que aconteceu.
— Casar com você? — ela riu, mãos na cintura — Não seja ridículo! Até parece que eu me casaria com um velho!
Isto foi uma tremenda duma contradição, ela não se casaria com um velho, mas transava com um. Expus-lhe este meu pensamento.
— São duas coisas diferentes, professor. Tudo não passou duma aposta com minhas amigas.
— Como assim? — fiquei sem rumo.
— Eu contei para minhas colegas que você estava espiando por debaixo da minha saia. Elas duvidaram. Falei que você estava louquinho por mim e que me comeria se eu quisesse. Elas duvidaram. E aí fizemos uma aposta.
— Mas por que ficou comigo tanto tempo? — eu suava, minhas mãos tremiam e era como se um torno espremesse meu cérebro.
— Porque era legal. Todas elas ficaram babando quando descobriram. Não era ruim, professor, mas agora acabou. Já estou até saindo com outro rapaz, um surfista, pelo menos ele agüenta o tranco mais do que você. Só ontem trepamos seis vezes...
Sempre me considerei um indivíduo racional, com comportamentos sensatos, com objetivos bem definidos. Nunca havia tipo um colapso emocional, nem arroubos de paixão, nem nada que me tirasse do meu casulo de racionalidade. Contudo, não existe nada mais ofensivo para um homem do que ter seu desempenho sexual menosprezado — “filho-da-puta”, “desgraçado”, “retardado” são ofensivos, mas “brocha”, “viado”, “corno” não são somente ofensas, são capazes de fazer um homem questionar toda sua existência.
— Cale sua boca, sua vadia! — eu segurei Talita pelo braço.
— Você quer que eu minta, professor? Então, eu minto: você é o gostosão, o machão, o pau mais duro do planeta! — e o tom de ironia dela era tão doloroso que eu tinha vontade de me jogar no chão e chorar. Mas não fiz isto, a ação que tomei foi imprevisível para mim; segurei os cabelos dela e a arremessei contra a parede, abrindo-lhe um talho na testa. Surpresa, aterrorizada, ela, mãos apoiadas na parede, olhou-me de esguelha, sangue lhe escorria pelo sobrolho, descendia pelo nariz.
Seria fácil eu me virar e sair dali, deixando-lhe uma cicatriz como recordação minha, mas não, eu precisava de mais, minha vingança não seria completa assim. Avancei contra ela, socando mais uma vez a cabeça dela contra a parede. Ela ameaçou gritar, mas suprimi os ganidos com uma das mãos, enquanto a sufocava com a outra. Talita reagia, arranhando-me o rosto e o pescoço, mas eu era mais forte e a subjuguei. Ela não tentava mais gritar, por isto, só me dediquei a estrangulá-la. Demorou um minuto ou dois até ela deixar de se mover, os olhos voltados para cima, boca arreganhada.
Não posso, nem devo, esconder que senti prazer neste ato, acaso mais do que quando transava com ela. Uma impressão de superioridade, de poder, de força me consumia, quase uma identificação com o divino. A Deus era reputado o poder de criar e destruir; naquele momento, eu me igualava a Ele, destruindo o Universo em menor escala, privando da vida uma de suas criações (talvez a mais imperfeita delas) pelo mero capricho de conservar a supremacia. Manifestou-se a verdade que Raskolnikov entreviu: alguns nascem ordinários e, para eles, as regras valem; outros são extraordinários, e estão para além do bem e do mal.
Levantei-me e me preparei para partir, mas refletindo um pouco, percebi que pela cena do crime facilmente chegariam até mim. Na verdade, quase nada eu poderia fazer para ocultar minha autoria no assassinato: impressões digitais por todos os lados, na porta, na parede, e sabe mais lá onde; fibras das minhas roupas, pegadas, meu sangue e pele nas unhas de Talita, talvez testemunhas, e um motivo, eu tinha um motivo e nenhum álibi. Mas, numa única e incongruente reação, eu apanhei o cadáver pelas pernas e o arrastei para fora, jogando-o no porta-malas do meu carro. Pouco me importei se alguém estava vendo.
Dirigi para oeste, lancei o corpo de Talita num rio, amarrado a um pedregulho. Creio que chegarei à fronteira em umas sete ou oito horas. Dirigirei durante a noite, a notícia do assassinato somente se espalhará pela manhã, nos telejornais, só então me tornarei realmente um procurado. Quando meu nome estiver na boca de todos, escandalizados com o crime bárbaro, com o pedófilo, corruptor de adolescentes, depravado, assassino, eu terei desaparecido no Paraguai. Arranjarei um emprego, tentarei me virar com meu parco espanhol, conhecerei uma chinoca e terei filhos com ela.
E, um dia, quem sabe, eu volto para esta cidade desgraçada e mate também o escroto que me fotografou com Talita, e o repórter sem caráter que arruinou minha vida. Não por causa da foto do beijo, pois era apenas um mero beijo, igual e insignificante a todos os demais dados em Talita. Só o perdoaria se a foto minha fosse do instante em que espiei a calcinha da menina; este sim foi o momento crucial, responsável por tudo. Se eu tivesse de ser acusado de algo, a única acusação plausível seria esta: ter encontrado as pernas dela aberta, convidando-me.
De nada mais sou responsável.

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