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terça-feira, 6 de janeiro de 2009

As Loucuras do Minotauro

Dalton Trevisan

— Sabe que toda família curitibana tem um louquinho fechado no porão?

— ...

— Não. Sente no sofá. Aqui é melhor.

— Estou com pressa doutor.

— É loiro natural teu cabelo?

— Clareio com xampu.

— Pensou na minha proposta?

— Não vim aqui para isso.

— De fato. É que a assinatura na procuração não confere.

— Uns rabinhos que inventei. Para enfeitar. Só de nervosa.

Pego na mãozinha — ela deixa.

— O que eu quero é isso. Por mim ficava a manhã inteira. Namorando você. Mãozinha dada. É o que me basta.

Longe o olhinho azul, quem está enjoada de ouvir elogio.

Me achego e beijo a face — sem pintura, que maravilha. Fagueira penugem de nêspera madurinha.

— Na boquinha? Bem de leve.

— Não.

— Hoje está cheirosa.

Perfumou-se para vir aqui. Mais indiferente que pareça.

— É francês.

— Nem precisa. Já viu macieira iluminada em flor toda suspirosa de abelha?
É você.

— ...

— Me conte a tua vida. Disse que trabalha desde os onze anos. O que aconteceu nos últimos dez?

— Primeiro a mãe veio morar aqui. Viúva, uma tropa de filhos. De oito sou a terceira. Ela não se acostumou. Daí eu fiquei. Como um traste esquecido.

— Morava com quem?

— Na casa de outra menina.

— Pagava com meu trabalhinho. Na vida nada é de graça. Daí fui mudando de emprego. E hoje aqui estou. Sofrida e triste.

— Esses anos terão sido difíceis. Não quer ou não gosta de falar? A palma de tua mão está úmida. Será de aflita?

Os dedos entrelaçados, vez em quando os aperto — uma em cinco ela responde.

— Acho que sim.

— De mim não tenha medo.

— E hei de ter?

— Já que não fala de tua vida. Me conte como você é. Que mãozinha linda. Quanto você tem de quadril?

— Não sei.

Afagando e medindo coxa acima.

— Calculo uns noventa.

— Emagreci bastante.

— E o teu peitinho? Posso pegar?

Alcanço o primeiro botão da blusinha branca, já se defende.

— Assim não.

— Como será que é? Muita vontade de ver o biquinho.

— Igual ao das outras.

— Aí que se engana. Cada peitinho é diferente. Um tem o bico mais escuro. Outro durinho e rosado. O teu deve ser assim.

— Nunca reparei.

— Sabe que um é mais pequeno que outro? Será o teu esquerdo?

— ...

— De uma, o seio raso da taça de champanha. De outra, bojudo copo de conhaque para aquecer na palma da mão.

— ...

— Pensou na minha proposta? Umas poucas de concessões.

— Como assim?

— Primeiro pego na tua mão. O que já deixou. Isso é bom. Me faz tanto bem.

Não me contenho e agarro uma e outra.

— Depois te apalpo. Aqui.

Em delírio apalpo a coxa trêmula.

— Daí te beijo. Não esse beijinho na face. Um turbilhão louco de beijos.

E dou um, dois, três. De leve, para não assustar.

— Enfim um beijo de língua. Que você retribui.

Dardejo a lingüinha de lagartixa sequiosa debaixo da pedra.

— Sabe o que é acabar?

— ...

— Sabe ou não?

— Para mim é terminar alguma coisa.

— Não é bem isso. Os livros dizem orgasmo. A parte mais gostosa do ato sexual. Já experimentou?

— Não sei o que é.

— Será que é fria? Ou não achou quem te entendesse. Te iniciasse com doçura e paciência. Sabe o que eu faria?

— ...

— Te ajudava a baixar essa calça azul. Abria as tuas pernas. E com este dedinho acordava o teu vulcão.

— Credo, doutor.

Interessada, quem sabe. Um tantinho incrédula.

— Nunca mais seria a mesma. Chamaria você de nuvem, anjo, estrela. O que alguém jamais disse a ninguém. Sabe, Maria?

— ...

— Você é a redonda lua verde do olho amarelo...

— Nossa, doutor.

— ...que, aos cinco anos, desenhei na capa do meu caderno escolar.

— ...

— Mimosa flor com duas tetas. Dália sensitiva com bundinha.

— ...

— Uma empadinha recheada de camarão e premiada com azeitona preta.

— ...

— Já viu canarinha branca se banhando de penas arrepiadas na sua tigela florida?

— ...

— Você faz de mim uma criança com bichas que come terra.

— Assim eu encabulo, doutor.

— No meio das pernas um botão chamado cli-tó-ris. Ali é que meu dedinho ia bulir.

Cada vez mais afrontada e afogueada.

— Depois te beijava da ponta do cabelo até a unha encarnada do pé. Cada pedacinho escondido de teu corpo. Afastava essa coxa branquinha de arroz lavado em sete águas. E me perdia no teu abismo de grandes lábios de rosa.

Agora a mãozinha quente e molhada.

— Sou homem de certa idade. Com a minha vivência faria você sentir prazer até no terceiro dedinho do pé esquerdo. De tanto gozo sairia flutuando pela janela sobre os telhados da praça Tiradentes.

— ...

— E virgem, se quiser, você continua.

—...

— Juro que te respeito. Como está me vendo assim eu fico: todinho vestido. De colete abotoado e gravata.

— ...

— Até de óculo. Só tiro o paletó. Nenhum perigo para você.

— ...

— Em troca dessa alegria lhe ofereço um prêmio. Duas notas novas.

—...

— Quer experimentar hoje?

— Próxima vez eu resolvo.

— Por que não agora? Já está aqui. Tão fácil. Até chovendo. Mais aconchegante.

— Hoje, não.

— Você que sabe. Só não creio na tua frieza. Tudo me diz que é moça fogosa. Essa boca vermelha e carnuda. É de quem gosta. Mais uma coisa, anjo. Enquanto eu falava, o teu narizinho abria e fechava.

— ...

— Veja. Como está fremente.

— ...

— Ninguém te diz nada? O noivinho não te canta?

— Cantar, todos cantam. Eu sei me defender.

— Por que a cisma da virgindade? Se gosta dele, algum mal em deitar no sofá?

— Prefiro assim. Ele é ciumento. Sempre está brigando.

— Monstro moral. Só quer para ele. Já provou beijo de noventa segundos?

— Não contei.

— Ao teu noivo falta imaginação. Fico um dia inteiro olhando você. De joelho e mão posta. Louvado essas graças que Deus te deu. Agora um beijinho. Na boca.

Seguro o rosto, forcejo, ela resiste.

— Ah, ingrata. Que tamanho o teu pé. Isso você sabe.

— Trinta e cinco.

— Bonitinho deve ser. Aposto que sem joanete. Sabe que as moças se masturbam? Você não tem experiência? Todas têm. De noite pensa num rapaz bonito e brinca com o dedinho. Nunca fez isso?

Sem resposta.

— Teu noivo é bonito?

— Nem tanto.

— Então algum artista famoso. Deixa ler a palma da mão.

De repente muito curiosa.

— Este xis é uma boa notícia. Que não esperava.

— O quê?

— Rolar comigo no tapete.

Nem sorri.

— Você não sonha, amor?

— Todos sonham. Eu, ter o meu cantinho.

— Não é isso. De olho aberto. Visões eróticas. Em toda família...

— É tarde. Preciso ir, doutor.

-- Então me dá um abraço. Assim.

Envolvo-a nos braços. Ela não corresponde.

— Ai, me deixa. Beijar essa carinha mais santa.

E osculo as duas faces rosadinhas.

— Agora a tua vez.

Um furtivo beijo. Seco, unzinho só.

— Aqui o teu presente.

— Não posso, doutor.

-— Sabe que toda família curitibana...

— Sou moça de princípios.

— ...tem um louquinho fechado no porão?

— Cruzes, doutor.

Ó maldito Minotauro uivando e babando perdido no próprio labirinto.

— Me trate de você. Doutor já não sou. Apenas um doidinho manso. De paixão cativo.

Indecisa, morde o beicinho.

— De mim o que vai pensar?

Guarda na bolsa as duas notas. E concede o primeiro sorriso.


Conto extraído da revista Playboy, Dezembro/1982.

Fonte: Releituras

***

" — Não vou responder às perguntas simplesmente porque não posso, é verdade; sou arredio, ai de mim! Incurávelmente tímido (um pouco menos com as loiras oxigenadas!)." Já se escreveu e se comprovou que os demais vampiros não podem encarar, sem pânico, um crucifixo. Ou réstias de alho, água corrente cristalina... Dalton não pode ver um jornalista. Vendo, foge, literalmente foge, apavorado. Suas raras fotos surgidas na imprensa foram feitas às escondidas, como a que utilizamos para ilustrar esta página.

Nascido em 14 de junho de 1925, o curitibano Dalton Jérson Trevisan sempre foi enigmático. Antes de chegar ao grande público, quando ainda era estudante de Direito, costumava lançar seus contos em modestíssimos folhetos. Em 1945 estreou-se com um livro de qualidade incomum, Sonata ao Luar, e, no ano seguinte, publicou Sete Anos de Pastor. Dalton renega os dois. Declara não possuir um exemplar sequer dos livros e "felizmente já esqueci aquela barbaridade".

Entre 1946 e 1948, editou a revista Joaquim, "uma homenagem a todos os Joaquins do Brasil". A publicação tornou-se porta-voz de uma geração de escritores, críticos e poetas nacionais. Reunia ensaios assinados por Antonio Cândido, Mario de Andrade e Otto Maria Carpeaux e poemas até então inéditos, como O caso do vestido, de Carlos Drummond de Andrade. Além disso, trazia traduções originais de Joyce, Proust, Kafka, Sartre e Gide e era ilustrada por artistas como Poty, Di Cavalcanti e Heitor dos Prazeres.

Já nessa época, Trevisan era avesso a fotografias e jamais dava entrevistas. Em 1959, lançou o livro Novelas Nada Exemplares - que reunia uma produção de duas décadas e recebeu o Prêmio Jabuti da Câmara Brasileira do Livro - e conquistou o grande público. Acresce informar que o escritor, arisco, águia, esquivo, não foi buscar o prêmio, enviando representante. Escreveu, entre outros, Cemitério de elefantes, também ganhador do Jabuti e do Prêmio Fernando Chinaglia, da União Brasileira dos Escritores, Noites de Amor em Granada e Morte na praça, que recebeu o Prêmio Luís Cláudio de Sousa, do Pen Club do Brasil. Guerra conjugal, um de seus livros, foi transformado em filme em 1975. Suas obras foram traduzidas para diversos idiomas: espanhol, inglês, alemão, italiano, polonês e sueco.

Dedicando-se exclusivamente ao conto (só teve um romance publicado: "A Polaquinha"), Dalton Trevisan acabou se tornando o maior mestre brasileiro no gênero. Em 1996, recebeu o Prêmio Ministério da Cultura de Literatura pelo conjunto de sua obra. Mas Trevisan continua recusando a fama. Cria uma atmosfera de suspense em torno de seu nome que o transforma num enigmático personagem. Não cede o número do telefone, assina apenas "D. Trevis" e não recebe visitas — nem mesmo de artistas consagrados. Enclausura-se em casa de tal forma que mereceu o apelido de O Vampiro de Curitiba, título de um de seus livros.

"O "Nélsinho" dos contos originalíssimos e antológicos, é considerado desde há muito "o maior contista moderno do Brasil por três quartos da melhor crítica atuante". Incorrigível arredio, há bem mais de 35 anos, com com um prestígio incomum nas maiores capitais do País. Trabalhador incansável, fidelíssimo ao conto, elabora até a exaustão e a economia mais absoluta, formiguinha, chuvinha renitente e criadeira, a ponto de chegar ao tamanho do haicai, Dalton Trevisan insiste ontem, hoje, em Curitiba e trabalhando sobre as gentes curitibanas ("curitibocas", vergasta-as com chibata impiedosa) e prossegue, com independência solene e temperamento singular, na construção e dissecação da supra-realidade de luas, crianças, amantes, velhos, cachorros e vampiros. E polaquinhas, deveras."

Em 2003, divide com Bernardo Carvalho o maior prêmio literário do país — o 1º Prêmio Portugal Telecom de Literatura Brasileira — com o livro "Pico na Veia".

fonte: Releituras

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