Volmar Camargo Junior
João, chamado João Bico-doce, tinha um poder mágico. Sempre que olhava nos olhos de uma mulher, por mais resistente que esta fosse, e a ela dissesse “Olá, minha boneca”, no tempo e no tom de voz corretos, a tal jogava-se em seus braços, levava-o ao canto escondido mais próximo e, ali mesmo, dava vazão aos seus instintos de fêmea. Se ele proferisse qualquer outra palavra, ou as mesmas com uma entoação diferente, o encanto não funcionava. Como efeito colateral, João ficava alguns dias afônico, e a mulher, por dias sonhava com lagartixas.
Um dia, chegou à cidade uma certa Margot, criatura deslumbrante, capaz de provocar no mais recatado dos homens uma avassaladora e incontrolável ânsia de estar entre suas pernas – ou onde mais a curiosidade permitisse. Naturalmente, a notícia chegou aos ouvidos do insaciável João Bico-doce.
Tendo feito de tudo para encontrá-la, João percorreu todos os lugares aonde os boatos o levavam. “Viste a tal?”, perguntava ele, ao que os perguntados respondiam suspirosos, “Ah, divina Margot...”, que era o mesmo que um sim. Para João, o pior foi ter andado a cidade toda, de inferninho em inferninho, de boate em boate, de bar em bar, e de todos os notívagos, ébrios, desvalidos, viúvos, policiais, qualquer um – segundo sua própria opinião – muito menos digno que ele, ouvir o mesmo regozijo tardio, quase um novo gozo, “Ah, divina Margot...”.
A cisma de João Bico-doce com a misteriosa e então cobiçada Margot chegou a um ponto que ele, que nunca havia achado necessário, gratificou a si mesmo por muitas horas, ora com a mão direita, ora com a esquerda, imaginando-se a penetrar a “maldita divina Margot”, por trás que era como ele gostava de fazer. E fez isso com tanta intensidade, com tanto afinco que após seis vezes ter derramado o gozo pela casa, desfaleceu, totalmente sem forças.
Mal sabia ele que Margot também já sabia da existência do garanhão, e que a fama de sua lábia irresistível, e quem poderá dizer, também de seus atributos de homem, ultrapassara os limites da cidade. Também ignorava João o fato de que ela, a “divina” Margot, o estava arrastando para uma armadilha.
Dias depois, tendo recuperado vigor suficiente para ir até o boteco da esquina tomar um café preto, eis que João Bico-doce encontrou, sentada a uma das mesas, ninguém menos que a própria, a criatura que lhe estava roubando o sossego. Mesmo sem nunca tê-la visto, pelas tantas e repetidas vezes que lhe ouviu a descrição, soube sem ter dúvidas de quem se tratava. E, mentalmente, congratulou a capacidade de observação dos convivas e à sua própria imaginação: a mulher não devia em nada à imagem que fazia dela – a quem, em sonho, fizera gemer como uma gata no cio.
(Para a preservação da saúde dos nossos leitores, e evitar que nossas leitoras possam sentir-se menosprezadas, deixo-os à vontade para imaginar Margot como uma Vênus, uma Afrodite, uma Sherazade, ou como a encarnação do que possa ser a mulher mais apta a fazer um homem querer tê-la como amante, ou, caso contrário, jogar-se de um viaduto.)
Num instante de ímpeto, desses em que o homem parece receber uma carga extraordinária de coragem, da mesma que os faz abrir túneis nas montanhas, mandar foguetes ao espaço e pedir aumento de salário, João aproximou-se de sua musa. Puxou a cadeira oposta, sentando-se com malemolência diante dela; eram os preparativos para a dança do acasalamento. Passando de leve o indicador na ponta da língua e endireitando a sobrancelha, João sentiu subindo-lhe pela garganta as palavras de seu encantamento. Então, quando já penetrava no minúsculo vácuo entre “Olá” e “ minha boneca”, Margot revidou: era uma contra-mágica.
Dessas coisas que Deus fez por acaso e que acabam dando muito certo, a mulher foi munida das armas que, ao natural, são equivalentes muito mais eficazes que as usadas pelos machos, e que para eles, só funcionam depois de muito treino, como é o caso do “bico-doce” de João. Pois, Margot, sem contrariar o que se dizia dela, era “divina”. E como uma força da natureza, Margot deu aquela mexida no cabelo, seguida daquele olhar, meio de viés, inquisitivo, perscrutador e convidativo, aquele ligeiro abrir e fechar de lábios como quem engole o último naco de sorvete, deixando os lábios levemente umedecidos daquele jeito. Claro está, todas as mulheres fazem isso desde o primeiro casal – que só foi expulso do paraíso por causa dessa, ou melhor, daquela mexida no cabelo. Mas, para Margot, a divina, tais eram os movimentos ritualísticos de seu feitiço. E João, como se podia esperar, foi enfeitiçado.
Sem se importar com o dono do boteco, livraram-se das roupas e, apoiados na mesa, João Bico-doce e Margot, a divina, amaram-se como só dois amantes tão peculiares, dotados de poderes mágicos fariam. Digo amaram-se, porque foi o exatamente o que fizeram nos primeiros trinta minutos. Mas, nas vinte e quatro horas seguintes, depois que a multidão aglomerou-se dentro e fora do boteco, de um jeito que nenhum carro pode passar na rua, João e Margot fizeram coisas para que amar é um delicado eufemismo. Era sim, amor, mas era coisa muito humana também. Nenhuma baixeza, que se diga, porque entre quatro paredes nada pode ser baixo desde que se esteja de acordo. E aos que observavam, com admiração, algumas vezes aplaudiam, outras vezes arregalavam os olhos, outras riam-se, outras até se emocionavam, era a inspiração que precisavam para os dias, os anos que se seguiam. João Bico-doce, quando sentia que sua fêmea arrefecia, dizia-lhe como só ele sabia dizer, sussurrado ao ouvido, “Olá, minha boneca”. E ela, quando sentia que seu vigor diminuía, bastava, ainda sentada e cavalgando nele, encará-lo e abrir os lábios como quem diz “vem”, daquele jeito. E assim foi, por um dia inteiro, no piso xadrez, em cima das toalhas também xadrez de todas as mesas, no balcão entre os potes de ovos coloridos, na pia do banheiro, escorados nas paredes do boteco, entre quatro paredes, de portas escancaradas, cercados pela multidão agradecida que não arredou o pé antes que, sobre os seios molhados de suor de Margot, João deixasse cair uma última e tímida gota branca.
O sol já nascia outra vez, e as pessoas, que nem lembravam ter perdido um dia inteiro de trabalho, seguiram suas vidas normalmente. O dono do bar ofereceu ao casal um revigorante café pingado por conta da casa, o que foi gentilmente negado.
Nus, Margot e João foram andando até a casa dele, pelo asfalto que ainda não havia começado a aquecer. Sem acender as luzes ou abrir a janela que dava para o mar de telhados, deitaram-se na cama de solteiro, e, muito juntos, como só os enamorados conseguem, dormiram por dias a fio. Ela sonhou ininterruptamente com simpáticas e multicoloridas lagartixas que caminhavam pela cidade, tornando-a muito mais alegre. Ele, como acontece aos que dormem vencidos pela exaustão, balbuciou não poucas vezes, com a voz rouca, quase inaudível: “Ah, divina Margot...”.
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