James Joyce
trad.: Henry Alfred Bugalho
trad.: Henry Alfred Bugalho
Ela se sentou à janela, assistindo a noite invadir a avenida. A cabeça reclinada contra as cortinas da janela e em suas narinas o odor de cretone empoeirada. Ela estava cansada.
Pouca gente passava. O homem da última residência passou em seu caminho para casa; ela ouviu os passos dele ressoando pelo chão de concreto e, depois, calcando a trilha cinzenta antes das novas casas vermelhas. Antigamente, havia um campo ali no qual eles costumavam brincar todas as noites com as crianças dos outros vizinhos. Então, um homem de Belfast comprou o campo e construiu as casas nele — não como as casas marrons deles, mas casas de tijolos brilhantes com telhados reluzentes. As crianças da avenida costumavam brincar juntas naquele campo — os Devines, os Waters, os Dunns, o pequeno Keogh o aleijado, ela, os irmãos e irmãs dela. Contudo, Ernest nunca brincava: ele era grande demais. O pai dela costumava caçá-los com frequência pelo campo com sua varinha de abrunheiro; mas geralmente o pequeno Keogh os alertava e gritava quando via o pai dela vindo. Mesmo assim, eles pareciam ter sido bastante felizes naquela época. O pai dela ainda não era tão ruim; e, além disto, sua mãe ainda vivia. Isto aconteceu há muito tempo; ela, seus irmãos e irmãs haviam crescido, sua mãe estava morta. Tizzie Dunn havia morrido também, e os Waters haviam regressado à Inglaterra. Tudo muda. Agora ela partiria como os outros, deixaria sua casa.
Casa! Ela contemplou a sala, examinando todos seus objetos conhecidos, que ela havia espanado uma vez por semana por muitos anos, imaginando de onde na terra vinha toda a poeira. Talvez ela nunca mais visse aqueles objetos conhecidos, dos quais ela nunca sonhou se apartar. E, mesmo assim, durante todos estes anos, ela nunca descobriu o nome do padre cuja fotografia amarelada pendia na parede sobre um harmônico quebrado, ao lado do pôster colorido das promessas feitas à Abençoada Margaret Mary Alacoque. Ele havia sido um colega de escola de seu pai. Sempre que ele mostrava a fotografia a uma visita, o pai costumava passá-la com uma frase casual:
— Ele está em Melbourne agora.
Ela havia concordado em partir, em deixar sua casa. Havia sido sábio? Ela tentou pesar cada lado da questão. Em sua casa, de qualquer modo, ela tinha abrigo e comida; ela tinha por perto aqueles a quem conhecia por toda sua vida. É claro que ela tinha de trabalhar duro, tanto em casa quanto no trabalho. O que eles diriam dela na loja quando descobrissem que ela havia fugido com um sujeito? Diriam que ela era uma tola, talvez; e sua vaga seria ocupada através dum anúncio. Senhora Gavan ficaria feliz. Ela sempre a incomodava, especialmente quando havia pessoas ouvindo.
— Senhorita Hill, não vê que aquelas senhoras estão esperando?
— Anime-se, Senhorita Hill, por favor.
Ela não verteria muitas lágrimas por deixar a loja.
Mas em sua nova casa, num distante país desconhecido, não seria deste jeito. Então ela se casaria — ela, Eveline. As pessoas a tratariam com respeito, então. Ela não seria tratada como fora sua mãe. Mesmo agora, apesar de ter mais de dezenove anos, ela sentia-se, às vezes, ameaçada pela violência do pai. Ela sabia que era isto que lhe dava palpitações. Enquanto cresciam, ele nunca havia se voltado contra ela como costumava contra Harry e Ernest, porque ela era uma garota, mas recentemente ele havia começado a ameaçá-la e dizer o que faria com ela se não fosse pela mãe morta. E não havia ninguém para protegê-la. Ernest estava morto e Harry, que estava no ramo de decoração de igrejas, estava quase sempre em algum lugar no sul do país. Além disto, as invariáveis discussões por dinheiro aos sábados à noite havia começado a exauri-la indescritivelmente. Ela sempre entregava seu salário inteiro — sete xelins — e Harry sempre mandava o que podia, mas o problema era conseguir algum dinheiro de seu pai. Ele dizia que ela desperdiçava o dinheiro, que ela não tinha miolos, que ele não daria a ela o dinheiro suado dela para esbanjar na rua, e muito mais, porque ele estava geralmente muito mal aos sábados à noite. No fim, ele lhe daria o dinheiro e perguntaria a ela se tinha alguma intenção de comprar o jantar do domingo. Então, ela tinha de correr o mais rápido que podia e fazer as compras, segurando com força na mão sua bolsa preta de couro, enquanto ela se acotovelava através da multidão e voltava para casa tarde sob sua carga de provisões. Ela trabalhava duro para manter a casa ajeitada e se certificar se as duas crianças pequenas que haviam sido deixadas a seu encargo iam à escola regularmente e se alimentavam regularmente. Era trabalho duro — uma vida dura —, mas, agora que ela estava prestes a abandoná-la, não lhe parecia de todo uma vida indesejável.
Ela estava prestes a explorar uma outra vida com Frank. Frank era muito gentil, másculo e amoroso. Ela iria embora com ele no barco da noite para ser sua esposa e viver com ele em Buenos Aires, onde ele tinha uma casa esperando por ela. Quão bem ela se lembrava da primeira vez que o vira; ele estava hospedado numa casa na rua principal que ela costumava visitar. Isto parecia ter sido semanas atrás. Ele estava parado no portão, seu chapéu pontudo pendendo para trás da cabeça e seu cabelo tombado para frente do rosto de bronze. Então, eles passaram a se conhecer um ao outro. Ele costumava encontrá-la fora da loja todas as noites e acompanhá-la até em casa. Ele a levou para assistir à “Garota Boêmia” e ela se sentiu elevada ao se sentar com ele numa parte do teatro na qual não estava acostumada. Ele era tremendamente atraído por música e cantava um pouco. As pessoas sabiam que eles namoravam e, quando ele cantava sobre a rapariga que amava um marujo, ela se sentia sempre agradavelmente confusa. Ele costumava chamá-la de Poppens de brincadeira. Inicialmente, foi uma comoção para ela ter um namorado e então ela começou a gostar dele. Ele contava histórias de países distantes. Ele havia começado como moço de convés por uma libra ao mês num navio da Allan Line indo para o Canadá. Ele lhe dizia os nomes dos navios nos quais esteve e os nomes dos diferentes serviços. Ele havia navegado pelo Estreito de Magalhães e contou a ela história dos terríveis patagônios. Ele fincou os pés em Buenos Aires, disse, e havia vindo ao velho país apenas para umas férias. É claro, o pai dela havia descoberto o romance e a proibiu até de falar com ele.
— Eu conheço bem estes marujos, ele disse.
Um dia, ele discutiu com Frank e, depois disto, ela tinha de encontrar seu amor em segredo.
A noite se aprofundava na avenida. O branco das duas cartas em seu colo crescia indistintamente. Uma era para Harry; a outra era para seu pai. Ernest havia sido seu favorito, mas ela também gostava de Harry. Ultimamente, ela percebeu que seu pai estava envelhecendo; ele sentiria falta dela. Às vezes, ele conseguia ser muito legal. Não muito tempo antes, quando ela ficou de cama por um dia, ele leu para ela uma história de fantasma e preparou uma torrada para ela no fogo. Outro dia, quando a mãe ainda vivia, todos eles haviam ido a um piquenique na Colina de Howth. Ela se lembrava de seu pai vestindo o boné de sua mãe para fazer a crianças rirem.
O tempo dela estava se esvaindo, mas ela continuou sentada à janela, reclinando a cabeça contra a cortina da janela, inalando o odor de cretone empoeirada. De lá do fim da avenida ela podia ouvir um realejo tocando. Ela conhecia estes ares. Estranho que aparecesse exatamente nesta noite para relembrá-la da promessa feita à mãe, sua promessa de cuidar da casa o quanto pudesse. Ela se lembrou da última noite da doença de sua mãe; ela estava de novo no quarto escuro fechado do outro lado da sala e ela ouvia o melancólico ar da Itália vindo de fora. Mandaram o tocador de realejo embora e deram a ele seis pence. Ela se lembrava do pai trotando de volta para o quarto da enferma dizendo:
— Malditos italianos! Vindo até aqui!
Enquanto ela refletia, a triste visão das condições de sua mãe lançou seu encanto sobre seu ser — aquela vida de sacrifícios medíocres encerrando-se numa sandice final. Ela tremeu ao ouvir novamente a voz de sua mãe dizendo constantemente com tola insistência:
— Derevaun Seraun! Derevaun Seraun!
Ela se levantou subitamente num impulso de terror. Fugir! Ela deveria fugir! Frank a salvaria. Ele lhe daria uma vida, talvez amor também. Mas ela queria viver. Por que ela deveria ser infeliz? Ela tinha o direito à felicidade. Frank a tomaria em seus braços, ele a envolveria em seus braços. Ele a salvaria.
Ela estacou em meio à multidão serpenteante na estação de North Wall. Ele segurava sua mão e ela sabia que ele falava com ela, dizendo mais uma vez algo sobre a passagem. A estação estava cheia de soldados com malas marrons. Através das largas portas do barracão, ela capturou um vislumbre da massa negra do barco, jazendo para além do molhe, com iluminadas escotilhas. Ela não respondeu nada. Ela sentiu suas bochechas pálidas e frias, desde um labirinto de ansiedade, ela orou a Deus que a guiasse, que lhe mostrasse qual era sua obrigação. O navio soltou um longo silvo pesaroso em meio à névoa. Se ela partisse, amanhã estaria no mar com Frank, navegando rumo a Buenos Aires. A passagem estava reservada. Ela poderia desistir depois de tudo que ele havia feito por ela? Sua angústia despertou uma náusea em seu corpo e ela continuou movendo seus lábios numa silenciosa oração fervorosa.
Um sino ressoou dentro de seu coração. Ela sentiu ele segurar sua mão:
— Venha!
Todos os mares do mundo despencaram sobre seu coração. Ele a estava conduzindo em direção a eles: Ele a afogaria. Ela se agarrou com ambas as mãos na grade de ferro.
— Venha!
Não! Não! Não! Era impossível. Suas mãos cravadas no ferro em frenesi. Do interior dos mares ela emitiu um grito de angústia.
— Eveline! Evvy!
Ele avançou para além da barreira e a chamou para segui-lo. Gritaram para ele prosseguir, mas ele ainda a chamava. Ela lhe voltou o rosto branco, passivo, como um animal indefeso. Seus olhos não lhe davam nenhum sinal de amor, de despedida, ou reconhecimento.
Conto extraído da obra "Dublinenses"
***
James Augustine Aloysius Joyce (Dublin, 2 de Fevereiro de 1882 — Zurique, Suíça, 13 de Janeiro de 1941) foi um escritor irlandês expatriado. É amplamente considerado um dos autores de maior relevância do século XX. Suas obras mais conhecidas são o volume de contos Dublinenses (1914) e os romances Retrato do Artista Quando Jovem (1916), Ulisses (1922) e Finnegans Wake (1939) - o que se poderia considerar um "cânone joyceano".
Embora Joyce tenha vivido fora de seu país natal pela maior parte da vida adulta, suas experiências irlandesas são essenciais para sua obra e fornecem-lhe toda a ambientação e muito da temática. Seu universo ficcional enraíza-se fortemente em Dublin e reflete sua vida familiar e eventos, amizades e inimizades dos tempos de escola e faculdade. Desta forma, ele é ao mesmo tempo um dos mais cosmopolitas e um dos mais particularistas dos autores modernistas de língua inglesa.
James Augustine Aloysius Joyce (Dublin, 2 de Fevereiro de 1882 — Zurique, Suíça, 13 de Janeiro de 1941) foi um escritor irlandês expatriado. É amplamente considerado um dos autores de maior relevância do século XX. Suas obras mais conhecidas são o volume de contos Dublinenses (1914) e os romances Retrato do Artista Quando Jovem (1916), Ulisses (1922) e Finnegans Wake (1939) - o que se poderia considerar um "cânone joyceano".
Embora Joyce tenha vivido fora de seu país natal pela maior parte da vida adulta, suas experiências irlandesas são essenciais para sua obra e fornecem-lhe toda a ambientação e muito da temática. Seu universo ficcional enraíza-se fortemente em Dublin e reflete sua vida familiar e eventos, amizades e inimizades dos tempos de escola e faculdade. Desta forma, ele é ao mesmo tempo um dos mais cosmopolitas e um dos mais particularistas dos autores modernistas de língua inglesa.
1 comentários:
Adoro meu nome e adorei descobrir um conto que me tem por título! rs
E o melhor é que o conto é realmente muito bom!
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