Léo Borges
– Vou embora. Eu estou namorando a Silvia. Quero que você entenda a minha liberdade, porque estou procurando ser feliz.
Com essas palavras minha mulher se despediu de mim, alguns anos atrás. A incompreensão e a dor foram elementos que me acompanharam desde então, intensos como deveriam ser. Mas não foram maiores do que a reflexão que fiz sobre os núcleos daquela estrutura oracional: “liberdade” e “ser feliz”. Naquela época, eu poderia me declarar escritor, romancista de uma literatura esparsa, livre na acepção da palavra, mas que – depois descobri – não era verdadeira. Procurava levar entretenimento às pessoas, prendê-las a minha fantasia frugal. Falava muito disso, de liberdade, mas Laura propiciou-me, com aquele ato, a oportunidade do meu primeiro livro não-escrito de sucesso, o que mostrava, então, a verdade sobre essa palavra com a qual os poetas iludem os tolos: a derradeira obra sobre a inexistência da liberdade.
Laura saiu do matrimônio para poder entrar na vida de outra mulher e acreditou que assim seria feliz. A felicidade, embora seja um agente ilusório, é, paradoxalmente, passível de ser procurada. Liberdade, então, seria algum ânimo misterioso que nos mantém ativos nesta busca. De fato, seria mesmo terrível se todos se descobrissem presos. Por isso minha admiração por Laura nunca acabou, até porque com o rompimento pude descobrir, enfim, que estar livre é, em verdade, estar mantido sob engano. Ou seja, a liberdade seria o perfeito ópio da humanidade. Estarmos presos a conceitos dimensionais é melhor do que compreendermos as armadilhas de um mundo supostamente livre. E esta clausura transparente é que nos mantém esperançosos em algo que nunca chega, mas que nos auxilia em nossa submissão.
A fé nessa liberdade fictícia atrapalha nosso curso natural e nos aprisiona nesse deprimente cenário de falsas alegrias, impedindo que vidas se enveredem por cenas paralelas, fossem estas a plasticidade de um suicídio, conforme bem demonstrou Hemingway, ou através do prazer orgíaco, pecador por definição cristã, desde sempre confirmado por Calígula. Nesse sistema perverso onde democracias são impostas e necessidades são criadas, eu era apenas mais uma peça. Toda a cegueira nessa crença mentecapta fazia com que não deixassem de comprar meus livros medíocres sobre esse Mal. O último, então, com um belo e embusteiro título – "A liberdade que nos rege" – vendeu bastante.
Assim que Laura foi embora mergulhei no triunvirato que sublima a vida de qualquer escritor de sucesso: álcool, tabaco e bordéis. Essas experiências foram boas para minha metamorfose. Autodestruição, obviamente, não significa liberdade, mas é o melhor caminho para compreender sua inexistência. Chegava carregado por estranhos ao meu apartamento e vomitava sobre rascunhos de minha próxima obra, "Alavancando o sonho de ser livre". Meu público-alvo, normalmente mulheres na casa dos cinquenta, adora essas picaretagens literárias. E eu, o pilantra maior, preso ciente desta sina cruel de forjar histórias românticas e assépticas com o objetivo espúrio de ser reconhecido como "o escritor da liberdade". A imprensa soube de minha separação, mas não os detalhes. “Parece que sua esposa mantinha um caso homossexual há anos”. Alguns criticaram pesadamente a decisão de Laura, não conseguindo nem mesmo esconder a homofobia das declarações. Queriam ser solidários, mas eu sentia pena deles. Por sorte minha, escritores de uma forma geral não têm sua vida tão esmiuçada na mídia como os pobres artistas de TV. Estes sofrem muito mais com fotógrafos amaldiçoados, fãs histéricos e outros entes hediondos.
Foi quando resolvi que não iria mais sair do meu apartamento. A partir daí comecei a perceber algumas coisas não identificáveis do tempo em que eu acreditava na liberdade. Nesta pequena sucursal de cárcere da vida entendi melhor o formato deste perverso sistema. Minha sala era claramente claustrofóbica, mas, ao mesmo tempo, eficiente em me dar respostas: com meu corpo confinado, eu podia enxergar melhor a prisão da alma. Meu lar, então, se tornou o escritório ideal para meus livros não-escritos. Não saía para mais absolutamente nada. Abria a porta para pegar a comida com o entregador e pagava com cheques que eram trazidos, por sua vez, pelo contínuo do banco. Ninguém mais me visitava. Minha promotora tratava de minhas publicações através do telefone ou de mensagens pelo computador. Minha sogra, dona Célia, que infantilmente repudiou a idéia separatista de sua filha, morava no mesmo andar e insistia na tese de que eu estaria com a chamada Síndrome do Pânico e que precisava de auxílio médico.
Ah, os médicos! Descompromissados com o calor dos sentimentos, assim como os cientistas que inventam remédios, passam suas vidas trancados em frios e limpos ambientes ministrando pílulas que, pretensiosamente, seriam a cura de todos os males. A indústria farmacêutica é um dos tentáculos desse monstro invisível que aprisiona nossas almas, que fomenta esse massivo ataque a seres inofensivos como a dona Célia. Dava pena ver as suas tentativas de me “salvar” desta doença perniciosa. Como eu não queria encontrá-la, ela, vez por outra, soltava o Guardião, seu gato preto, para que, sorrateiramente, ele viesse me fazer companhia. O que mais me causava comoção, porém, era outra curiosa iniciativa sua: ela comprava e mandava o entregador da farmácia trazer para mim uma caixinha de Rivotril a cada quinze dias. A atitude da Laura fez com que dona Célia se roesse em remorsos e, então, ela procurou esforçar-se para cuidar do maluco aqui. Quando estava cansado de escrever minhas baboseiras líricas sobre liberdade eu deitava no sofá, arrancava uns comprimidos da cartela e ficava tentando acertar Libertad, um pequeno camundongo que resolveu fazer morada entre o amontoado de livros, reboco de parede, papéis rasgados e roupas por lavar que eu zelosamente mantinha num dos cantos da sala. O alvoroço desesperado de Libertad, ao ser incomodado pelo bombardeio de remédios, era sempre angustiante, pois sugeria que ele precisava de alguém o acossando para se manter vivo, como se estar sendo perseguido fosse a melhor, ou talvez única, saída para a sua sobrevivência. Uma perfeita parábola sobre liberdade.
Na tal “vida livre” que eu levara até poucos anos atrás nunca havia refletido com seriedade sobre a praça em frente ao meu edifício e nem sobre os casais de namorados que esculpiam coraçõezinhos no corpo das árvores rodeadas por cercas metálicas. Para eles, tatuagens como aquelas deveriam significar o chamado "amor infinito"; coisa tão besta quanto a liberdade que os solteiros se regozijam em acreditar que saboreiam. As grades circundando os troncos, antes de serem incongruentes celas para caules depredados, representavam um modelo de prisão empírica, não da planta como estava óbvio, mas de seus reais detratores – nós. A clausura em maior amplitude, aliás, podia ser contemplada com um mínimo de esforço: prédios cercados por telas eletrificadas, o comércio repleto de cadeados e travas eletrônicas, paredes e muros cobertos com arames farpados. A própria alameda se encontrava asfixiada em meio às cinzentas construções, entrecortadas por agressivos neons de publicidade.
O mendigo catando lixo para comer, um cachorro acompanhando-o de perto; crianças correndo entre os tubos de ferro do brinquedo enferrujado; o vendedor de algodão-doce com olhar triste; a babá sem expressão empurrando o carrinho de bebê; o executivo engravatado apressado com sua maleta marrom. Havia ali o espectro de uma sociedade desconfiada, aprisionada dentro de si. Claro estava que aquele imaculado e entediante espaço arborizado necessitava – em caráter de urgência – de uma tragédia que o livrasse da angustiante e demoníaca candura a que fora submetido. Algo que reconduzisse todos aqueles passantes de comportamento mecânico, e as complacentes copas das árvores artesanalmente podadas, a um estado natural; que interrompesse todo aquele burocrático ciclo no qual pessoas lutavam, minuto a minuto, por coisas supostamente indispensáveis, cumprindo destinos como se lobotomizadas estivessem. Mas o conceito de liberdade funciona desta forma, com esse ardil – uma filosofia difícil de ser enxergada e que não admite nenhum tipo de contestação.
De minha janela eu passava muitas horas observando aquele aflitivo vai-e-vem de personagens do meu livro não-escrito, principalmente dona Célia, cuja vida era olhar vitrines de lojas. Naquela noite pensei muito em minha sogra enquanto mirava, com um remédio entre o polegar e o indicador, uma camisa roída no chão, local por onde o ratinho aparecia. A gola suja de sangue lembrou-me do incidente: Libertad já não vivia entre nós. Ele havia sido destruído por Guardião numa de suas visitas, e eu me esquecera disso. Eu não costumava sentir o coração apertado por qualquer coisa, mas naquela tarde senti. Pela saudade do camundongo e, depois, por dona Célia. Minha cabeça estava presa nela por isso: a frequência de seu gato em meu cárcere diminuíra bastante desde que ele destroçara o pequeno roedor. Teria ela descoberto o assassinato e proibido o bicho de vir-me fazer companhia? Era uma idéia absurda, mas deveria ser respeitada.
Notei que o entregador da farmácia também passou a entregar o Rivotril em datas incertas, com intervalos maiores. Achei que dona Célia estava, finalmente, esquecendo seu genro escritor. Ela era uma leitora assídua de minhas “liberdades para dondocas” e gostava de mim com uma sinceridade maternal. Estaria certa ela em querer esquecer um cara pessimista, possivelmente doente, intimamente derrotado e ir atrás da pseudo felicidade da filha e seu bonito amor homossexual? Um amor condenado pela sociedade não poderia ser também repudiado por nós. Sabíamos da leviandade dos sentimentos e engrossar essa lista seria seguir o script mundial da hipocrisia. Naquele instante me senti profundamente infeliz; uma tristeza torpe, totalmente incompatível com o que eu vinha descobrindo desde a minha separação.
Tentava escrever mais alguma bobagem para preencher o último capítulo de mais uma obra, mas o cursor não saía do lugar e deixava estática na tela a única frase daquela página: “E aquela doença parecia livrá-la da prisão conjugal”. Eu não sei se teria coragem de concluir esse livro. Eu não aguentava mais trapaças, desonestidade e incompreensão comigo mesmo. O fim de um escritor miserável estava perto. Despejado de meu cárcere, iria viver como uma das personagens que criei, catando restos para sobreviver.
Meus dedos se afastaram do teclado e apertaram meus ouvidos. Aturdido dentro de mim, por pouco não escutei a campainha. Eram três horas da manhã. Quem iria importunar um escritor em pleno horário de trabalho? Todos sabiam que eu não recebia quem eu não esperava – normalmente os entregadores de comida ou de remédio. Porém o barulho da campainha insistiu e uma curiosidade mórbida levou-me até à porta. Não acreditei quando, pelo olho mágico, vi Laura chorando do outro lado. Chorava como se ela própria também houvesse acabado de descobrir que a liberdade realmente não existe.
– Minha mãe! Minha mãe... ela está com Alzheimer... meu Deus... ela não lembra da Silvia, nem quando está ao meu lado... e só lembra de meu nome quando falo dos seus livros. Meu Deus! Ela se tornou uma prisioneira em si...
Laura me abraçou apertado. Seu choro era tão estridente e convulsivo que mal conseguia respirar. Tentei acalmá-la levando-a para o sofá e oferecendo um comprimido que ainda não havia sido arremessado sobre o camundongo. Fomos até o apartamento da dona Célia e lá eu tomei uma de suas mãos com carinho. Guardião, cujo penetrante olhar felino era detentor de uma acusatória expressão, acompanhava o pesaroso arrastar de corpos pela sala de sua dona. Silenciosamente e sem lhaneza, éramos apontados pelo taciturno animal como os verdadeiros culpados por toda aquela incômoda situação. Quem sabe culpados até por toda a mesquinhez humana.
Minha sogra desenterrou um sorriso como se estivesse diante de alguém que, inadvertidamente, fugira de sua prisão. Naquele quarto de paredes escurecidas pelo tempo eu percebi, com uma alguma felicidade, que novamente Laura errara: dona Célia não estava virando refém de sua doença, não estava se tornando uma prisioneira dentro de si. Ao contrário, estava ela própria se libertando de toda a uma doutrina nefasta, impiedosamente sistematizada, que nos humilha desde que nascemos.
– Trouxe o seu último livro?
A pergunta da minha sogra fez com que eu iniciasse meu segundo livro não-escrito. A doença de Célia a estava fazendo entrar em contato com algo que não podemos conquistar por nossa vontade. Na verdade, ela estava me provando que a liberdade, sim, a liberdade existe. O desligamento lento e progressivo da mente daquela mulher me apresentava uma nova percepção do que seria a cristalina possibilidade de se estar livre. Quando questionara – em minha mente – o seu esquecimento sobre os remédios e sobre a soltura do gato, estava, mais uma vez, a serviço desse Império que procura arruinar a verdadeira liberdade, liberdade esta que agora estava sendo provada. A dor de todos a sua volta não iria encontrar alicerce em sua felicidade interior. Dona Célia estava, ela própria, construindo o prefácio de minha nova obra fantasmagórica, enfim, livre de dogmas, culturas, verdades e certezas.
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