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terça-feira, 2 de junho de 2009

Boa noite, minha princesa. Te amo!

por Carlos Davissara

“Isso, pode me olhar com esse seu carão de desprezo, sua vadia. Você nem imagina como eu gosto. Ah, como eu gosto! Tanto que seria capaz de trazer-lhe um lindo buquê de rosas só para lhe enfiar garganta adentro”, pensa Arnaldo, deitado na cama ao lado da esposa, Samantha. E, mesmo sabendo que ela está com raiva por conta de uma conversa que ele teve com a ex-mulher... Tudo bem, ao que ele chama de conversa, outros dão o nome de “brincar com fogo”, “descaramento”, “sem-vergonhice”, ou mesmo – oh, más línguas – “fornicação”. Mas o fato é que ela só está assim por conversas de terceiros, “pelos destruidores de lares” – como sempre enfatiza Arnaldo. Bem, mesmo sabendo do motivo do “carão de desprezo” da mulher, com naturalidade paradisíaca, ele pergunta:

– Aconteceu alguma coisa, minha flor?

“É claro, seu idiota! Por que acha que estou assim?”, responde, mentalmente, a mulher, porém, prefere resumir-se na fala:

– Não, nada.

Arnaldo sorri compassivamente e faz um carinho suave no rosto da esposa. Sabe que ela está mentindo. Interiormente, sente vontade de esganá-la para que diga a verdade e deixe de manhas e joguinhos. Ele está ciente de que ela sabe da conversa com a ex-mulher – apenas conversa! –, mas se ela não falar, ele também não vai dizer.

“Odeio esses seus joguinhos, Samantha! Se não tem nada, por que esta cara de velório? Pelo amor de Deus! Como eu pude casar com uma mulher tão feia!”, pensa, indignado, mas apenas diz:

– Você fica linda assim séria.

– Arnaldo, você sabe como eu amo esse seu cinismo...

– Não é cinismo. Você sabe que não.

– Eu estou gorda, Arnaldo.

Ao ouvir essas últimas palavras, Arnaldo responde prontamente. Tão rápido, que nem se lembra de como, no mês anterior, achou sua cunhada muita mais formosa que a esposa, chegando a pensar que Samantha poderia muito bem perder uns quilinhos freqüentando uma academia de ginástica.

– Você está ótima, meu amor – diz ele.

“Então, por que você vive olhando para outras mulheres, seu cretino?”, imagina-se perguntando Samantha, mas nada fala.

Um silêncio se instaura. Arnaldo acha que será gentil de sua parte encontrar algum assunto do agrado da esposa. Ele se lembra de uma notícia que viu recentemente na televisão sobre a morte de Machado de Assis. Como sabe que Samantha gosta de ler, acha que será uma conversa conciliadora, mesmo ele não conhecendo muito do autor.

– Você soube que Machado de Assis morreu? – pergunta ele, com expressão fingida, tentando demonstrar algo entre indignação e tristeza.

– Nossa! – responde, irônica, a mulher, enquanto pensa: “burro, idiota, imbecil!”, e continua – É, eu sei que ele morreu.

– Por isso que você está assim? Quer dizer, do jeito que você gosta de leitura e essas coisas...

Samantha lembra-se do rosto da ex-mulher de Arnaldo e se imagina esfaqueando-o, mas não, não, nunca teria coragem de fazer uma coisa dessas! Pensa: “Mas, que às vezes dá vontade, dá... só às vezes... ai credo, Deus me livre! Deus me livre!” Sente ainda mais raiva do que antes por perceber a tentativa do marido em agradá-la falando de um assunto que ele domina tanto quanto fala bem da sogra aos amigos. “Maldito homem com quem me casei... Eu te odeio, Arnaldo!”, pensa enfurecida, mas ao falar, parece que muda de opinião:

– Arnaldo, meu amor, obrigada pela tentativa da conversa, mas, deixa eu te contar um detalhe: Machado de Assis está morto há cem anos... – “...seu débil mental ignorante”, completa em sua mente.

“Senhora sabe tudo, se acha a intelectual, a sabichona, não é? Para o inferno com sua arrogância, maldita!”, explode em pensamento Arnaldo, porém, apenas fala:

– Minha linda, obrigado a você, por esclarecer, com tanta delicadeza e humildade, que o Machado já está morto há tempos. Cem anos! Meu Deus! E eu aqui pensando que o cara tinha morrido ontem! – e sorri, meio sem graça, tentando entender o porquê de ainda deitar-se com tal mulher.

Samantha fica refletindo, inconformada por ainda estar presa a um infeliz como Arnaldo. Sente vontade de socá-lo, atirá-lo dali para longe. “Como Machado de Assis pode ter morrido ontem, seu animal?”, pergunta calmamente ao marido, enquanto imagina-se dizendo:

– Tudo bem, meu amor. Ninguém pode saber de tudo.

“Melhor ser animal do que uma sabichona ranzinza que, vira e mexe, está derramando feiúra por aí”, diz Arnaldo, julgando ter medido as palavras, e pensa:

– Que mulher maravilhosa! Por isso que a amo.

“Seu ogro hipócrita! Como pode falar isso de mim, depois de tudo que agüentei? E, inclusive, você sabe muito bem por que estou com esta cara! É a cara de uma chifruda otária que tem um baita de um filho-da-puta de marido que vem, com a cara mais lavada do mundo, fingir que entende de Machado! Ah, tenha dó!”, fala Samantha, quase sem acreditar em suas próprias palavras, mas sentindo certo alívio de algo que lhe apertava a garganta. Na cabeça, um só pensamento:

– Você é o homem da minha vida!

– Você é a pessoa mais especial do mundo! – pensa, por sua vez, Arnaldo.

“Sua vagabunda fofoqueira! É nisso que dá ficar escutando conversa fiada dessas putinhas que se dizem suas amigas. Amigas do diabo! Bando de putas, isso sim!”, diz, enfurecido, à mulher, mas em seu coração, pergunta:

– Vamos ter um filho?

­– Agradeço a Deus todos os dias por ter você, Arnaldo – pensa ela.

– Vamos tornar esta família maior, mais feliz? – ele a indaga em pensamento.

– Te amo do fundo do meu coração – pensa ela.

“Não suporto mais essa sua cara de enterro eterno, Samantha!”, ele fala.

“E eu não suporto nem mais escutar sua voz! Já esgotei minha conta das merdas que tenho que agüentar de você!”, ela fala enquanto, na mente, diz:

– Adoro ouvir suas frases inocentes, meu bebê.

“Vadia! É isso que você é: uma vadia orgulhosa! Pensa que sabe de tudo, sempre se achando a superior. Eu te odeio!”, grita Arnaldo para a mulher, sentindo vontade de estapeá-la. Não contendo o desejo, desfere-lhe um golpe no rosto. Parte da mão espalmada fica desenhada na vermelhidão da face de Samantha. Ele ainda se imagina falando:

– Não consigo viver sem você, minha deusa!

A bofetada deixa Samantha sem reação. Antes de encerrar a conversa, opta, ainda, por demonstrar um último carinho ao marido. “Filho-da-puta”, diz. E vira-se, dando as costas para Arnaldo. Já com os olhos fechados, pensa:

– Boa noite, meu anjo. Te amo!

Arnaldo, bufando de nervosismo, parece não mais se incomodar com as palavras carinhosas da esposa. “Isso mesmo... Vai dormir, menininha mimada”, diz, e completa num tom sinistro, “E nunca mais me provoque ou eu acabo com você de vez, vagabunda!” Depois, vira-se para o lado oposto de Samantha. Antes de adormecer, ainda pensa:

– Boa noite, minha princesa. Te amo!

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