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domingo, 9 de novembro de 2008

A Tese na Literatura

Todo texto defende uma tese.

Quando afirmamos isto, não nos referimos apenas a textos acadêmicos, ou teóricos, mas a todo e qualquer texto, incluindo o texto literário.

Antes de tudo, devemos explicar o que se entende por “tese”. Thesis é uma palavra grega derivada do verbo tithemi, cujo sentido nada mais é do que “colocar em algum lugar, apresentar algo”. Este é praticamente o mesmo sentido da palavra latina propositio, ou proposição, em português.

A tese, ou a proposição, é aquilo que é posto diante dos olhos do leitor, aquilo que o autor deseja apresentar.

Numa carta de amor entre namorados, a tese é provar os sentimentos amorosos dum para o outro; num texto teórico universitário, a tese é a demonstração e comprovação duma hipótese; em qualquer texto, existe uma tese, uma idéia a ser defendida, mesmo que ela esteja diluída e pareça ser inexistente.

Na Literatura, a tese costuma transparecer de duas maneiras mais comuns: explicitamente, quando a proposta do texto é convencer o leitor a aceitar a tese, ou implicitamente, quando o texto estimula o leitor a concluir, por si só, qual é a tese.

A Literatura Panfletária

A narrativa literária que defende explicitamente uma tese e que utiliza todos os recursos necessários para persuadir o leitor de sua veracidade é conhecida por “panfletária”.

A literatura panfletária não possui orientação política específica, pode tanto defender ideais esquerdistas quanto de direita, pode ser tão reacionária quanto revolucionária, tão anárquica quanto conservadora.

O “panfleto” não diz respeito às idéias que estão presentes numa obra literária, mas ao modo como elas são apresentadas. O texto panfletário não esconde a que veio, não mascara seus objetivos.

A Literatura panfletária atrai os correligionários da tese defendida, ao mesmo tempo em que repele quem a ela se opõem. Não aceita meio termo.

Um exemplo é “O Último Dia dum Condenado à Morte” de Victor Hugo. Nesta obra, acompanhamos um prisioneiro pouco antes de sua execução na guilhotina. Victor Hugo se opunha à pena capital e tanto nesta obra como em outras, ele defenderá este ideal. No entanto, o que diferencia “O Último Dia dum Condenado à Morte” de “Os Miseráveis” é exatamente a opção do autor em, na primeira obra, tornar a tese evidente, isto é, o repúdio à pena de morte.

Como dissemos anteriormente, esta escolha do autor delimita o leitor que acolherá o texto, alguns concordarão com ela, outros discordarão e, aquele que estiver indeciso, poderá ser convencido pelos argumentos, ou se constrangerá por causa da tentativa do autor em manipulá-lo.

A Tese Implícita

Uma narrativa literária também pode apresentar a sua tese sem evidenciá-la.

Na verdade, a Literatura panfletária aborda uma tese sob a mesma ótica dum texto teórico. A tese precisa ser demonstrada, para tanto, apresenta-se casos nos quais ela pode ser aplicada. A ficção situa então a tese num caso ficcional, que através do enredo visa comprovar a tese que a motiva. Retornando ao exemplo da obra de Hugo, para provarmos que a pena de morte é cruel, apresentamos um personagem sofrendo por causa da expectativa da execução.

Já no caso duma obra na qual a tese esteja implícita, o autor geralmente tenta falsear a tese defendida, ou apresenta uma tese contrária que será, no decorrer da narrativa, refutada.

Podemos utilizar outra obra de Hugo como exemplo: em “Os Miseráveis” a tese inicial parece ser a de que “um criminoso nunca se recupera, nunca mais pode ser reinserido na sociedade”.

Como Hugo introduz esta falsa tese?

Jean Valjean é libertado da prisão, mas como ele é um ex-condenado, ele é obrigado a carregar um passaporte amarelo, o que faz com que ele seja estigmatizado pela sociedade. Nem teto para dormir ele consegue encontrar.

No entanto, um bispo o abriga em sua casa. Naquela mesma noite, Jean Valjean resolve roubar a casa de seu anfitrião, ou seja, a tese parecia ser: “Jean Valjean (e, por extensão, todos os demais ex-condenados) sempre será um criminoso”.

Mas o protagonista é capturado e reconduzido à presença do bispo, que, ao invés de acusar Jean e enviá-lo novamente para a prisão, mente para a polícia, dizendo que os bens roubados eram, na verdade, presentes seus para Jean.

Esta atitude do bispo é um ato de perdão que Jean jamais poderia imaginar. Daquele ponto em diante, ele decide que será um homem correto. Todo o restante do enredo trata de luta de Jean para apagar seu passado e provar que ele está mudado.

Victor Hugo compreende que esta é a maneira mais eficaz para abordar tal tese. Através dos atos de Jean Valjean, o autor acaba conduzindo o leitor à conclusão de que um homem pode mudar, que um criminoso pode se recuperar.

Através da negação, através de caminhos tortuosos, o autor pode conduzir o leitor até a tese defendida.

Outro bom exemplo é a obra-prima de Dostoievesky, “Crime e Castigo”. Nela acompanhamos o personagem Raskolnikov, um estudante russo que elabora uma teoria: “as pessoas estão divididas em duas categorias: as ordinárias, para quais as leis e normas morais valem, e as extraordinárias, que estão acima do bem e do mal”. Raskolnikov acredita fazer parte da segunda categoria, acredita ser extraordinário. No entanto, quando ele assassina sua senhoria, ele começa a constatar que talvez estivesse equivocado, que ele também faz parte dos homens ordinários. Em Dostoievsky, quase sempre a tese é a antítese do que ele apresenta no início de suas obras.

Tese Explícita ou Implícita?

Todo texto defende uma tese. Contudo, a abordagem desta tese faz parte do planejamento duma obra literária. O autor deve saber, de antemão, qual será a tese defendida, e como ele fará para que o leitor a perceba.

A opção entre um texto panfletário ou um com tese implícita nunca é descompromissada. A abordagem dependerá do público para o qual a obra se destina, da proposta do autor e também da própria tese defendida.

Não é tão simples estabelecermos uma hierarquia de valores e considerarmos as obras panfletárias como piores do que aquelas com tese implícita. Na verdade, para alguns leitores, apenas uma obra com objetivo explícito é compreendida; nem todos possuem o refinamento para ler as entrelinhas dum texto cuja tese esteja disfarçada.

Entretanto, a História da Literatura costuma destacar os autores que conseguem defender suas idéias sem dogmatismo, sem proselitismo. Via de regra, uma obra de Arte é aquela capaz de tocar, de algum modo, todas as pessoas, concordem elas ou não com a tese apresentada.

E, para muitos leitores, desvendar os mistérios, desencavar os porões duma obra literária para desvelar seu sentido é uma grande recompensa. Prêmio comumente recusado por obras panfletárias.

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