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domingo, 9 de novembro de 2008

Enchendo Lingüística: Ficção sob pressão

Volmar Camargo Junior

 

Durante o mês de outubro, no tópico “Enchendo Lingüística” da comunidade da Oficina de Escritores, discutimos assunto da dificuldade de escrever sob alguma forma de pressão: de um prazo, de um tema, de um gênero.

           

Escrever sob pressão, assim como executar qualquer outra atividade, pode ser tanto um estímulo quanto um agente promotor de mal-estar — do desconforto ao pânico. Os oficineiros que participaram da discussão, todos confidenciaram como se relacionam com essas pressões. Como uma tarefa, os colegas pesquisaram sobre a vida e os métodos de trabalho e os hábitos de escrita de escritores conhecidos, aclamados, considerados literatos ou best-sellers.

 

Nessa pesquisa, pudemos comparar os hábitos dos “grandes” com os nossos, confirmarmos se organização e método influenciam ou não a atividade dos escritores. E também, para avaliarmos se nossas manias e nossas crises de desespero (quando temos que produzir contos dentro de um tema, um gênero e dispomos de poucos dias para entregá-los ao organizador da atividade...) estão dentro da normalidade. Ao menos, da normalidade que compartilham os escritores.

 

O resultado dessa pesquisa foi tão interessante que me senti na obrigação de dividi-lo com o leitor da SAMIZDAT. Como foi produzido a várias mãos, brasileiras e lusitanas, esse texto pode apresentar algumas diferenças de grafia entre um trecho e outro da biografia dos autores. Por hora, ainda não temos a reforma ortográfica a nos pressionar, mas essa também não tarda.

 

Boa leitura

 

 

 

 

Jorge Luis Borges (1899 - 1986) é um autor que sempre se considerou um preguiçoso. Num biografia que li dele, ele afirmava que não escrevia romances porque tinha preguiça, demorava muito tempo para serem escritos.

 

Uma citação que demonstra esta concepção (inclusive a preguiça) pode ser encontrada no prólogo de "Ficções":

 

"Desvarío laborioso y empobrecedor el de componer vastos libros; el de explayar en quinientas páginas una idea. cuya perfecta exposición oral cabe en pocos minutos. Mejor procedimiento es simular que esos libros ya existen y ofrecer un resumen, un comentario. (...) Más razonable,más inepto, más haragán, he preferido la escritura de notas sobre libros imaginarios."

 

 

Graciliano Ramos (1892 – 1953) era muito meticuloso em sua escrita. Ele costumava cortar todas as arestas e só considerava seus livros prontos quando estivesse completamente livres de excessos. Durante os anos em que ficou preso, Gracialiano Ramos escreveu num diário tudo que lhe ocorria. No entanto, tais notas se extraviaram, o que para o autor foi um bom sinal, pois livrou "Memórias do Cárcere" de informações desnecessárias:

 

"Deve-se escrever da mesma maneira como as lavadeiras lá de Alagoas fazem seu ofício. Elas começam com uma primeira lavada, molham a roupa suja na beira da lagoa ou do riacho, torcem o pano, molham-no novamente, voltam a torcer. Colocam o anil, ensaboam e torcem uma, duas vezes. Depois enxaguam, dão mais uma molhada, agora jogando a água com a mão. Batem o pano na laje ou na pedra limpa, e dão mais uma torcida e mais outra, torcem até não pingar do pano uma só gota. Somente depois de feito tudo isso é que elas dependuram a roupa lavada na corda ou no varal, para secar.

Pois quem se mete a escrever devia fazer a mesma coisa. A palavra não foi feita para enfeitar, brilhar como ouro falso; a palavra foi feita para dizer."

 

Mark Twain (1835 – 1910) era um escritor obcecado pela escrita. Escrevia muito e escrevia sempre.

"É um hábito meu manter em processo de construção quatro ou cinco livros duma só vez, e a cada verão adicionar uma fileira de tijolos em dois ou três deles, mas eu não posso prever qual destes dois ou três vingará. Demora uns sete anos para concluir um livro através deste método, mas mesmo assim é um bom método: permite que o público descanse."

(http://www.w2mw.com/marktwain.htm)

 

 

Guimarães Rosa (1908 – 1967) talvez seja o mais importante escritor brasileiro desde Machado de Assis. Com uma escrita própria e poderosa, ele criou alguns mitos literários. Dividia o tempo entre o ofício diplomático e a escrita. Morreu poucos dias após ter tomado posse duma cadeira na ABL. Dizem que era um forte candidato ao Nobel.

 

"Quando escrevo, não penso na literatura: penso em capturar coisas vivas. Foi a necessidade de capturar coisas vivas, junta à minha repulsa física pelo lugar-comum (e o lugar-comum nunca se confunde com a simplicidade), que me levou à outra necessidade íntima de enriquecer e embelezar a língua, tornando-a mais plástica, mais flexível, mais viva. Daí que eu não tenha nenhum processo em relação à criação linguística: eu quero aproveitar tudo o que há de bom na língua portuguesa, seja do Brasil, seja de Portugal, de Angola ou Moçambique, e até de outras línguas: pela mesma razão, recorro tanto às esferas populares com às eruditas, tanto à cidade como ao campo. Se certas palvras belíssimas como’gramado’,’aloprar’, pertencem à gíria brasileira, ou como’ malga’, ‘azinhaga’,‘azenha’  só correm em Portugal - será essa razão suficiente para que eu as não empregue, no devido contexto? Porque eu nunca substituo as palavras a esmo. Há muitas palavras que rejeito por inexpressivas, e isso é o que me leva a buscar ou a criar outras. E faço-o sempre com o maior respeito, e com alma. Respeito muito a língua. Escrever, para mim, é como um acto religioso. E prova está em que tenho montes de cadernos com relações de palavras, de expressões. Acompanhei muitas boaidas, a cavalo, e levei sempre um caderninho e um lápis preso ao bolso da camisa, para anotar tudo o que de bom fosse ouvido - até o cantar de pássaros. Talvez o meu trabalho seja um pouco arbitrário, mas se pegar, pegou. A verdade é que a tarefa que me impus não pode ser só realizada por mim."

 

 

José Cardoso Pires  (1925 – 1998), escritor com uma vintena de obras publicadas e uma dúzia de prémios literários, dedicava-se exclusivamente à escrita nos últimos anos de vida.

Numa sua entrevista de há vinte anos, ele dizia que escrevia uma página por dia, todos os dias.

A ideia é simples e tem muita força, tanto que eu a ainda a lembro. Pensei, então, que escrever uma página num dia era coisa acessível e que, por esse método, ao fim de meio ano podia ter um romance completo.

 

 

Clarice Lispector  (1920-1977), em uma entrevista para a TV Cultura (janeiro de 1977, publicada na Revista Shalom), quando questionada sobre a periodicidade de sua produção literária, Clarice Lispector disse:

"Eu não sou uma profissional, eu só escrevo quando eu quero. Eu sou uma amadora e faço questão de continuar sendo amadora. Profissional é aquele que tem uma obrigação consigo mesmo de escrever. Ou então com o outro, em relação ao outro. Agora eu faço questão de não ser uma profissional... para manter minha liberdade. Tenho períodos de produzir intensamente e tenho períodos-hiatos em que a vida fica intolerável."

Segundo a autora, a questão da liberdade de escrever quando se quer e assim produzir material legítimo, isento de pressões mercadológicas.

A obrigação é vista como algo que inibe a beleza dos textos e torna o escritor um operário que teria em mãos, ao invés de peças de ferro, caneta e papel (máquina de escrever/PC). Isso significa que o ato de escrever com qualidade está ligado muito mais a um passatempo sem compromissos do que a um ofício regular, linear e imposto.

 

 

José Rodrigues dos Santos (1964) é um jornalista e escritor português best-seller. Tem, publicados, seis romances e alguns ensaios. Faz questão de frisar que os seus livros são baseados em informação científica actualizada, o que o obriga a extensas pesquisas e a consultas a especialistas das matérias abordadas. Publica, em média, um romance por ano, com uma média superior a 500 páginas, cada, e uma média de vendas superior a 100.000 exemplares, cada. Wow! 

 

O curioso é que a actividade principal dele é jornalismo; é, há muitos anos, um dos três principais pivots do principal jornal da emissora estatal de televisão, e já foi o director de informação da estação, durante vários anos. 

 

Um colega comum, intrigado com uma tão extraordinária gestão do tempo, que a sua, como para a maioria de nós, mal dá para se manter lavado e escanhoado, em certa oportunidade, perguntou-lhe:
– Zé, quando é que tu arranjas tempo para escrever livros?
A resposta foi de uma simplicidade desarmante:
– De manhã.

 

 

António Lobo Antunes (1942) é o escritor português vivo mais conhecido, a seguir a Saramago.
Publicou uma vintena de romances, desde 1979, tendo sido distinguido com vários prémios nacionais e internacionais. Médico psiquiatra, dedica-se em exclusivo à escrita, actualmente, 

Fico parvo quando vejo escritores que escrevem 30 ou 40 páginas por dia. Quando escrevo uma, é uma sorte.”

(Jornal de Notícias, 20.01.2008)

Quando estou a escrever não existe nada a não ser o livro. Isso é muito bom.”

“...ao acabar-se um dia de trabalho, no dia seguinte o livro inflecte. Às vezes dá-me vontade de continuar a escrever por mais horas. O que eu faço, então, é parar, se possível, a meio de uma frase. Se possível, a meio de uma palavra. Para tentar não torcer muito o rumo ao livro, para usar a sua expressão.”

Tinha contado fazer esta página em quatro ou cinco dias e fi-la em dois. Isto para mim é uma coisa muito rara.”

Tenho que me impor uma data para começar. Fui ver ao calendário: 25 de Fevereiro. Não sei porquê. Não é uma data que tenha, para mim, nada de especial. Calhava a uma segunda-feira. Normalmente, o que eu fazia antigamente era esperar que houvesse um mês em que o dia um fosse a uma segunda-feira, para começar. Era uma forma de atrasar o começo do livro.”

Foi sempre a mesma coisa. Eu não escrevia por estar motivado. Escrevia porque tinha que escrever. Não era uma questão de destino, nem de obrigação.”

(Revista Ler – nº 69 - Maio de 2008. http://www.ala.nletras.com/entrevistas/LER0508.htm)

 

 

Fernando Pessoa (1888 – 1935), sobre o próprio processo de escrita:


Em eu começando a falar – e escrever à máquina é para mim falar –, custa-me a encontrar o travão. Basta de maçada para si, Casais Monteiro! Vou entrar na génese dos meus heterónimos literários, que é, afinal, o que V. quer saber. Em todo o caso, o que vai dito acima dá-lhe a história da mãe que os deu à luz.)

Aí por 1912, salvo erro (que nunca pode ser grande), veio-me à ideia escrever uns poemas de índole pagã. Esbocei umas cousas em verso irregular (não no estilo Álvaro de Campos, mas num estilo de meia regularidade), e abandonei o caso. Esboçara-se-me, contudo, numa penumbra mal urdida, um vago retrato da pessoa que estava a fazer aquilo. (Tinha nascido, sem que eu soubesse, o Ricardo Reis.)

 

Ano e meio, ou dois anos depois, lembrei-me um dia de fazer uma partida ao Sá-Carneiro – de inventar um poeta bucólico, de espécie complicada, e apresentar-lho, já me não lembro como, em qualquer espécie de realidade. Levei uns dias a elaborar o poeta mas nada consegui. Num dia em que finalmente desistira – foi em 8 de Março de 1914 – acerquei-me de uma cómoda alta, e, tomando um papel, comecei a escrever, de pé, como escrevo sempre que posso. E escrevi trinta e tantos poemas a fio, numa espécie de êxtase cuja natureza não conseguirei definir. Foi o dia triunfal da minha vida, e nunca poderei ter outro assim. Abri com um título, O Guardador de Rebanhos. E o que se seguiu foi o aparecimento de alguém em mim, a quem dei desde logo o nome de Alberto Caeiro. Desculpe-me o absurdo da frase: aparecera em mim o meu mestre. Foi essa a sensação imediata que tive. E tanto assim que, escritos que foram esses trinta e tantos poemas, imediatamente peguei noutro papel e escrevi, a fio, também, os seis poemas que constituem a Chuva Oblíqua, de Fernando Pessoa. Imediatamente e totalmente... Foi o regresso de Fernando Pessoa-Alberto Caeiro a Fernando Pessoa ele só. Ou, melhor, foi a reacção de Fernando Pessoa contra a sua inexistência como Alberto Caeiro.

 

Aparecido Alberto Caeiro, tratei logo de lhe descobrir – instintiva e subconscientemente – uns discípulos. Arranquei do seu falso paganismo o Ricardo Reis latente, descobri-lhe o nome, e ajustei-o a si mesmo, porque nessa altura já o via. E, de repente, e em derivação oposta à de Ricardo Reis, surgiu-me impetuosamente um novo indivíduo. Num jacto, e à máquina de escrever, sem interrupção nem emenda, surgiu a Ode Triunfal de Álvaro de Campos – a Ode com esse nome e o homem com o nome que tem.

Criei, então, uma coterie inexistente. Fixei aquilo tudo em moldes de realidade. Graduei as influências, conheci as amizades, ouvi, dentro de mim, as discussões e as divergências de critérios, e em tudo isto me parece que fui eu, criador de tudo, o menos que ali houve. Parece que tudo se passou independentemente de mim. E parece que assim ainda se passa. Se algum dia eu puder publicar a discussão estética entre Ricardo Reis e Álvaro de Campos, verá como eles são diferentes, e como eu não sou nada na matéria.

 

(trecho duma carta de Fernando Pessoa a Adolfo Casais Monteiro)

 

Kafka (1883 – 193=24) era um autor atormentado pelo passado, pela opressora presença paterna e por uma constituição física doentia. A escrita para ele era um exercício de abnegação e martírio. Mesmo após a rotina dioturna no escritório, Kafka atravessava a noite escrevendo.

 

É fácil reconhecer a concentração de todas minhas forças na escrita. Quando ficou claro ao meu organismo que a escrita era a mais produtiva direção para o meu ser, tudo se apressou em tal direção e esvaziou toda as outras habilidades que eram direcionadas para as alegrias do sexo, da alimentação, da bebida, da reflexão filosófica e, acima de tudo, da música. Atrofiei-me em todas estas direções. Isto foi necessário porque a totalidade das minhas forças era tão tênue que apenas coletivamente elas poderiam servir, mesmo que a meio caminho, ao propósito da escrita.”

 

(Diários, 1912)

 

 

Marguerite Duras (1914 – 1996):

 

A escrita é o desconhecido. Antes de escrever não sabemos nada acerca do que vamos escrever. Com toda a lucidez.

 

É o desconhecido de nós mesmos, da nossa cabeça, do nosso corpo. Não é sequer uma reflexão, escrever é uma espécie de faculdade que temos ao lado da nossa pessoa, paralelamente a ela, de uma outra pessoa que aparece e que avança, invisível, dotada de pensamento, de cólera, e que, por vezes, pelos seus próprios factos, está em perigo de perder a vida.

 

Se soubéssemos alguma coisa do que vamos escrever, antes de o fazer, antes de escrever, nunca escreveríamos. Não valeria a pena.

 

Escrever é tentar saber aquilo que escreveríamos se escrevêssemos - só o sabemos depois - antes, é a interrogação mais perigosa que nos podemos fazer. Mas é também a mais corrente.”

 

 ("Écrire")

 

 

José Saramago:

 

Nunca andei à procura de ideias para os meus livros. As ideias vêm ter comigo, algumas não servem, outras talvez, outras são como um amor à primeira vista.
Não sistematizo, não faço planos, não escrevo 30 páginas para as converter depois em 300. Os meus livros crescem naturalmente, tal como uma árvore cresce. Quando a árvore atinge o tamanho próprio, deixa de crescer. É muito simples, como vê
.”

 

(http://revistaepoca.globo.com/Revista/Epoca/0,,EMI16184-15220,00-NUNCA+ANDEI+A+PROCURA+DE+IDEIAS.html)

 

 

Honoré de Balzac (1799 – 1850) era tão doido que chegava a escrever por dias a fio. Sua rotina diária era absurda, como escrever por quinze horas ininterruptas, regadas a muito café. Além disso, Balzac sofria de um irreparável perfeccionismo. Diz-se que fazia pré-impressões dos livros – ao ponto de ele próprio adquirir uma pequena gráfica - ocupando apenas o espaço central da página. Assim, fazia inúmeras correções, e tornava a imprimir. No caso do Balzac, cuja obra é monumental, sofria a pressão de si mesmo.

(http://en.wikipedia.org/wiki/Balzac)


O nipo-brasileiro Ryoki Inoue entrou para o Guiness Book por ser o escritor mais prolífico do mundo: segundo ele, produz hoje uma média de três romances por ano, mas chegou a produzir três por dia para cumprir as exigências das editoras. Para citar um exemplo:

 

Ao ver Ryoki no Guinness Book, Matt Moffett, jornalista americano do Wall Street Journal, teve sua curiosidade despertada para o processo de criação do escritor, querendo ver pessoalmente para crer, como alguém poderia produzir histórias de sucesso em tão pouco tempo. Assim, lançou um desafio ao escritor e aportou em São José dos Campos (onde Ryoki morava na época), no final de janeiro de 1996. Uma semana depois, Moffett contou como nasceu o livro de Ryoki Inoue - Seqüestro Fast Food, elaborado em uma noite, mais precisamente das 23h30 às 4h - num dos jornais mais famosos do mundo.”  

 

(http://www.ryoki.com.br/biografia.htm)

 

  

 

 

 

 

Participaram desta pesquisa os Oficineiros:

 

Henry Alfred Bugalho

Joaquim Bispo

Léo Borges

Maria de Fátima Santos

Volmar Camargo Junior

 

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