Receba Samizdat em seu e-mail

Delivered by FeedBurner

segunda-feira, 17 de novembro de 2008

A Festa de São Simão Esgaratujo

Ricardo Palma

Trad.: Henry Alfred Bugalho

Faustino Guerra cumpria a condição de soldado raso durante a batalha de Ayacucho. Assegurada a independência, obteve licença definitiva e recolheu-se à província de seu nascimento, onde conseguiu ser nomeado professor da escola do vilarejo de Lampa.

Certamente, o bom Faustino não era um homem de letras; mas para desempenhar seu cargo e deixar os pais de família contentes, bastava-lhe saber ler medianamente, ter uma caligrafia regular e ensinar de cor a doutrina cristã aos meninos.

A escola estava situada na rua Ancha, numa casa que, na época, era propriedade do Estado e que hoje pertence à família Montesinos.

Contra o costume geral dos mestres daqueles tempos, Seu Faustino pouco utilizava o látego, o que fez com que fosse batizado com o apelido de São Simão Esgaratujo. Ele o ostentava mais como um sinal de autoridade do que como instrumento de castigo, e era necessário que a falta cometida fosse muito grave para que o professor aplicasse um par de açoitadas, do tipo que nem tira sangue, nem deixa roxo.

Em 28 de outubro de 1826, dia de São Simão e Judas para ser mais exato, grandes festejos foram celebrados nas principais cidades do Peru. As autoridades estavam empenhadas e mandaram oficialmente que o povo se alegrasse. Bolívar estava, então, em todo seu apogeu, mesmo que seus planos de vitaliciedade começassem a eliminar o afeto dos bons peruanos.

Apenas em Lampa não houve manifestação alguma de regozijo. Para os lampeanos este foi um dia de trabalho, como qualquer outro do ano, e os meninos foram, como de costume, à escola.

Já havia passado do meio-dia quando Seu Fastino mandou fechar a porta pra rua, dirigiu-se ao curral da casa, fê-los ficar em fila e, chamando dois índios robustos que lhe serviam, ordenou-lhes que agarrassem os meninos. Do primeiro ao último, todos levaram uma dezena de chicotadas, com as bermudas arriadas, aplicadas pela mão do professor.

A gritaria foi ensurdecedora e houve pranto coletivo por mais de hora.

Quando chegou o momento de fechar a escola e mandar os meninos para a casa de seus pais, disse-lhes Seu Faustino:

— Falem, pícaros godos, como vocês contarão o que acabou de acontecer! Coureio vivo ao primeiro que eu descobrir que saiu a me caluniar.

“Terá ficado louco?", perguntavam-se os pequenos; mas não contaram a suas famílias o ocorrido, se bem que as escoriações das chibatadas os haviam deixado acabrunhados.

— Que bicho mordeu o professor, que era tão manso de temperamento, para distribuir tão furioso açoitamento? Já descobriremos.

No dia seguinte, os meninos chegaram à escola, não sem recear que a sessão se repetisse. Por fim, Seu Faustino fez sinal que iria falar.

— Meus filhos — ele lhes disse — tenho certeza de que se recordam do rigor com que os tratei ontem, contra meu hábito. Tranqüilizem-se, que só faço estas coisas uma vez por ano. E vocês sabem por quê? Sinceramente, filhos, digam-me se souberem.

— Não, senhor professor — responderam em coro os meninos.

— Pois vocês hão de saber que ontem foi o dia do santo do libertador da pátria, e não tendo nenhuma outra maneira para festejar isto, já que os lampeanos têm sido tão ingratos para com aquele que os tornou gente, eu recorri ao chicote. Assim, enquanto vocês viverem, terão gravado na memória a lembrança do dia de São Simão. Agora estudem sua lição e viva a pátria!

E a verdade é que os poucos que ainda vivem daquele grupo de meninos se reúnem em Lampa em 28 de outubro e celebram com um banquete, no qual brindam por Bolívar, por Seu Faustino Guerra e por São Simão Esgaratujo, o mais milagroso dos santos em matéria de refrescar a memória e esquentar as partes posteriores.

(1871)
Fonte: Tradições Peruanas, http://www.cervantesvirtual.com/


Biografia
Ricardo Palma era filho de Pedro Palma Castañeda e de dona Guillermina Soriano Carrillo; neto paterno de Juan de Dios Palma e de Manuela Castañeda. Nasceu em Lima em 7 de fevereiro de 1833. Desde jovem teve envolvimento com a política junto a ala dos liberais, a qual o incitou a participar em um malfadado levante contra o presidente Ramón Castilla, que levou a seu desterro ao Chile por três anos. A política o conduziu aos cargos de cônsul do Peru, senador por Loreto e funcionário do Ministério de Guerra e Marinha. Mas foi nas Letras a atividade em que se destacou. Desde jovem começou a escrever poesias e peças teatrais, inclusive a realizar colaborações em jornais do país. Teve grande presença na imprensa satírica, na qual foi um prolífico colunista e um dos baluartes da sátira política peruana do século XIX. Começou colaborando na folha satírica El Burro, para ser posteriormente um dos principais redatores de La Campana. Mais adiante, fundou a revista La Broma.

Também foi um colaborador assíduo de publicações sérias como El Mercurio, El Correo, La Patria, El Liberal, Revista del Pacífico e Revista de Sud América. Também atuou com correspondente de periódicos estrangeiros durante a Guerra do Pacífico.

Em 1872, foi publicada a primeira série de sua principal obra: "Tradições Peruana".

Ao longo de sua vida, publicou artigos históricos, trabalhos de investigação como Anais da Inquisição de Lima e inclusive estudos lexicográficos sobre a variedade peruana do espanhol.
O êxito conquistado por suas Tradições e sua incansável capacidade intelectual o converteram em uma figura reconhecida em vida, não apenas em seu país, como em todo o mundo hispanófono, que o acolhe como um dos escritores clássicos de prosa mais acessível do continente americano. Foi membro correspondente de La Real Academia Española, La Real Academia de la Historia e de la Academia Peruana de la Lengua, assim como membro honorário da Hispanic Society de Nova York. Em 1881, participou da defesa de Miraflores durante a batalha de Miraflores de 15 de janeiros de 1881, no Forte Nº 2, sob o comando do coronel Ramón Ribeyro, quando as tropas invasoras incendiaram a cidade, incluindo sua casa. Em 1883, foi nomeado diretor e restaurador da Biblioteca Nacional do Peru.

Casou-se com Cristina Roman Olivier, com quem teve vários filhos. Seu filho, Clemente Palma, foi um escritor de destaque, autor de contos fantásticos, geralmente de terror, sob influência de Edgar Allan Poe, e sua filha, Angélica Palma, foi uma das fundadoras do movimento feminista peruano. Morreu no distrito limenho de Miraflores, em 1919.

Share




0 comentários:

Postar um comentário