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quinta-feira, 13 de novembro de 2008

Para lá do muro

A cada ser a sua arte. A da barata é resistir, contornar,
encontrar novos caminhos rodeando os obstáculos. Só
não a virem de cabeça para baixo!

                                                                                Anónimo


A enorme massa branca e sólida estava ali desde que me conheço. Fria e imponente com seus sessenta metros de altura, numa vizinhança próxima, em frente a minha janela, travando com sucesso silencioso o ímpeto expansionista das nossas modestas construções. Tão perto... tão à bica! No topo um longo corredor feito calha servia de auto-estrada por onde deslizavam velozes e silenciosos os pequenos “robot”.

Cresci brincando em redor deste monstro marco de fronteira, habituando-me gradualmente à sua presença. Meus pais e avós referiam o artefacto nas suas histórias de nossos serões dos domingos de inverno quando, reunidos em volta da lareira aquecíamos os ossos e alimentávamos a alma com tudo o que conseguíamos escutar.

Parece que alguns loucos tentaram escalá-lo ou contorná-lo. De alguma forma vencer aquela barreira, esgotá-la, encontrar-lhe um fim. Foi assim com o homem que chegou um dia vindo do horizonte feito de pó para logo partir duas horas após chegar à nossa cidadela. Com o seu ar cansado e a longa barba branca, deixou a voz fraca confidenciar que já andava naquela demanda desde os vinte anos. E assim comeu, bebeu, descansou um pouco, ganhou fôlego e logo proferiu “não há tempo a perder que a vida é curta” e foi-se em busca do fim da coisa, da extremidade de cauda de bicho feito cobra, cobra feito muro, muro feito obstáculo e omnipresença, qual navegador incansável, Gil Eanes com o seu cabo Bojador para dobrar!

As tentativas de subida não colheram melhor sorte. Depressa colocaram em evidência o propósito dos nossos companheiros metálicos. Ao invés do frio cortante na chegada ao cume de um qualquer Everest, os alpinistas desgraçados encontravam o calor de um raio quente fulminante ficando reduzidos a menos nada naquela fracção de segundo.

Só o mistério sobreviveu a todos estes fracassos. Mistério mal recebido, mal acolhido, tornando-se adubo eficaz para crescimento rápido da especulação e crença ignorante. Logo apareceram para a festa os hábitos e rotinas pouco racionais, os dogmas, os pecados, as remissões e auto flagelações, o poder dos poucos em função da dormência dos muitos.

O dia de leitura e escrita é um desses hábitos que não apela muito em prol de nosso bom senso e sanidade mental. Todos os anos naquele dia – o último, a massa humana de crentes inicia jornada e vai colar-se junto ao enorme paredão. Cada qual tem primeiro de encontrar um espaço para si (apagando se necessário escritos antigos) e escreve os seus desejos, as suas aspirações para o ano vindouro. E o “senhor do muro”, o “magnífico que tudo pode”, em toda a sua bondade não tardará a satisfazer tal ensejo conferindo a cada um o seu cada qual.

Talvez seja perfeccionista, detalhista, até um pouco chato mas sempre me conheci muito observador. O meu olho treinado e mente atenta depressa me revelaram as diferenças, a revolução silenciosa que ocorria no topo fronteiriço. E a diferença estava no tempo, no aumento de tempo entre cada chegada e cada paragem em frente a minha janela. O minuto e meio entre chegadas no fim de mês passado tinha-se alongado. No início da semana – estamos na segunda semana do mês, já íamos em dois minutos. Nesse dia decidi: se as coisas continuassem da mesma forma, ao fim de três meses teria todo o tempo que necessitava – trezentos segundos, cinco longos minutos.

Ninguém excepto Patrícia sabia das minhas intenções. Minha vizinha e confidente desde sempre, ela daria uma ajuda essencial no projecto. Nesses meses muni-me de tudo o que era necessário e preparei-me com rigor e afinco. A estratégia era simples – aproveitar a multidão em dia da excursão anual de tolos, partir com eles e não regressar, ficando junto ao muro como lapa na rocha, bem encostado, fora de ângulo de visão dos guardas cibernéticos. Depois, com a ajuda do equipamento sofisticado, escalar cerca de cinquenta e cinco metros e ficar esperando o sinal. Ao notar que “a costa estava livre” a minha companheira fecharia a janela e eu subiria rapidamente o que restava.

Finalmente o dia chegou e eu estava preparado. Escalei, a janela fechou-se e então subi os últimos metros. Triunfante, cheguei ao topo e olhei para o lado. Nem sinal de “robot”. Respirei fundo. Observei. Foi com estranheza que minha vista encontrou o outro eu, qual imagem minha no espelho que também subia, que respirava fundo, que me fitava. Ficamos examinando as nossas caras incrédulas, incrédulos por um momento. Olhámos para o horizonte de edifícios em cada lado, para as janelas em frente, para as Patrícias que acenavam. Então, decidimos preservar nossa sanidade mental e descemos. O que vimos, nunca contámos a ninguém. Hoje pensamos certamente eu e ele (ou deveria dizer eu e eu) como para desvendarmos um mistério encontrámos outro bem maior e fugimos voltando rapidamente à realidade de nossa toca. 

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