Marcia Szajnbok
Na primeira vez que subiu aquela escadaria, de mãos dadas com a mãe, João sentiu medo. O lugar lembrava uma casa mal-assombrada, dessas que aparecem nos filmes: pouca luminosidade, portas altas, a escada de madeira produzindo estranhos ruídos sob os pés. Depois de meses desempregada, Bete finalmente conseguira um trabalho: faxineira numa escola de música. Maestro Manfredo, o dono do conservatório, concordara com que Bete levasse consigo o filho pequeno, desde que o menino não atrapalhasse as aulas. Foi assim que João chegou ao universo da música: assustado pelos fantasmas que a velha casa evocava, pelo tal do Maestro, que imaginava ser um velho narigudo cheio de verrugas e muito bravo, e pela mãe – esta, um perigo bem real quando se zangava com ele. João tinha apenas cinco anos, e aparentava ainda menos com sua baixa estatura e magreza, as pernas finas, e os dentes grandes e brancos aparecendo demasiadamente no contraste com a pele escura.
À medida que os dias passavam, entretanto, João ia ficando mais à vontade. Descobrira um modo de passear despercebido pela escola: tirava os sapatos, andava de meias. Como todo o chão era de madeira, o garoto patinava nas tábuas largas e, assim silencioso, percorria todas as salas de aula como que invisível.
No que devia ter sido outrora um porão, havia um pequeno anfiteatro, onde os alunos tinham aulas de canto com o Maestro.
- Meninos, cantemos! O coração que canta não conhece tristeza! – era sempre com esse bordão e a batuta levantada, que ele dava início às sessões de cantoria.
Encolhido em alguma cadeira da última fila, João ouvia. Visto assim de longe, o Maestro nem parecia tão mau. Várias vezes em cada aula, ele interrompia, os alunos recomeçavam. E João ouvia. A partir de certo momento, seria capaz de cantar junto, mas só o fazia em pensamento, a voz da mãe com o indicador esticado em seu nariz, repetia-lhe na memória: - Nem um pio, entendeu bem? Nem um pio, senão você entra na piaba! João não sabia o que era uma piaba, mas pelo tom de sua mãe, não devia ser coisa boa.
No primeiro andar, havia a secretaria e duas salas de aula com carteiras e lousas. Ali os alunos aprendiam história da música, análise, folclore, teoria musical, solfejo, harmonia. Esse vocabulário iniciático tornou-se familiar para o menino. O que ele mais gostava de acompanhar eram as aulas de solfejo: as mãos ritmadas batendo nas mesinhas, a fala acompanhando o ritmo:
- La-á-Dó-Lá-Si-í-Dó-Ré-Si-Sol... João repetia mentalmente essa linguagem estranha e monossilábica. Mesmo sem ter nenhuma idéia do significado daquele amontoado de sons, achava bonito o grupo todo declamando aquela ladainha em uníssono.
No entanto, o melhor estava no andar de cima. Era preciso vencer a escadaria rangente, mas sempre valia à pena. Eram três salas, duas menores e uma grande, onde aconteciam as aulas de instrumentos: violão, violino, violoncelo, flauta e piano. Na sala maior, João encontrou um tesouro.
Certa vez viu a porta aberta, ninguém lá dentro, e entrou. Achou curioso que, numa sala tão ampla, houvesse um só móvel no centro. Ele era engraçado. Enxergou ali uma cabeça disforme: a boca ampla, dentes brancos e pretos num sorriso estático, a parte de trás com um formato irregular, como um crânio com a tampa aberta. Não resistiu. Puxou para perto daquela abertura o banco que ficava diante da boca, e espiou lá para dentro. Várias tramas de fios sobrepostos uns aos outros, pinos metálicos, tiras de feltro vermelho recobrindo pedaços de madeira de diferentes formatos. Era um quebra-cabeças incompreensível.
Ouviu vozes no corredor e passos que se aproximavam. Apavorado, João correu a se esconder atrás da cortina de uma das janelas. Respirava devagar para que ninguém notasse sua presença. E então, ouviu. Era um som límpido, suave, um som que parecia falar-lhe, lindo. Pôs um só olho para fora e viu que, diante do móvel estranho, uma menina mexia na grande boca aberta e, a seu lado, uma senhora lhe corrigia os erros. No final da aula, a professora indagou à aluna, se tinha gostado de tocar num piano de cauda. Era isso, então! Um piano de cauda!
Depois que elas saíram, João se aproximou novamente. Encheu-se de coragem, e encostou um dedinho numa das teclas. Bem de leve e tão devagar, que não se produziu nenhum som. Desde então, sempre que podia, o garoto se punha em seu esconderijo atrás da cortina e acompanhava as aulas no piano de cauda. Do mesmo modo que acompanhava o solfejo e o canto orfeônico, aqui também ia aprendendo as músicas pela repetição. A diferença é que o piano não cantava, e por isso foi desenvolvendo um tipo de memória diferente, puramente musical, a seqüência melódica sem palavras, desvinculada de significados. E quando se via sozinho na sala, chegava perto e acariciava as teclas, maravilhado.
Um dia, inadvertidamente, apertou uma das teclas com mais força do que o habitual. O som produzido assustou-o, e não pôde conter uma gargalhada. Mas, cativado, repetiu o toque. O que ouviu lhe soou de algum modo familiar. Tateando, foi apertando outras teclas, até que obteve um par, e os dois sons em seqüência evocaram um trecho melódico. A partir daí, esqueceu a regra materna do nenhum - pio e despreocupou-se completamente. Depois do par, achou o terceiro som, e depois o quarto, e assim sucessivamente ia recompondo, por tentativa e erro, um pedaço de melodia muitas vezes ouvida na clandestinidade de seu posto atrás da cortina. Por instantes, o mundo se resumiu àquela sala: o menino, o piano, a música. Como se, para lá das paredes, nada mais existisse. Por estar assim, tão absorto, demorou um pouco para compreender que vinha da porta da sala a voz que lhe interrogava:
- O senhor pode me explicar o que é que está fazendo aí?
João, paralisado, não conseguia responder. Parado na soleira, as mãos postas na cintura e o cenho caricatamente franzido, estava o temido Maestro.
- Toque de novo, pediu ao menino. A música que você estava dedilhando, toque de novo.
João tocou, apesar do tremor que lhe agitava a mão. Sem saber o nome das notas que apertava, repetiu a seqüência: Dó-Ré-Mi-Fa-Re-Mi-Do-Sol. E parou. Maestro Manfredo, então, segurou gentilmente o indicador do garoto e guiou-o até a próxima nota da série, outro Dó, uma oitava acima. Olharam-se nos olhos, o menino esboçou um sorriso tímido, e encontrou a continuação da melodia: Si-Dó-Ré-Sol-Lá-Si-Dó-Lá-Si-Sol-Ré... E as horas foram passando. João aprendeu que o banco podia subir até que estivesse numa altura confortável, que aqueles sons se chamavam notas, que cada uma tinha o seu nome, e que poderia apertar cada nota com um dos dedos, fazendo a mão deslizar ao invés de pular sobre o teclado. E descobriu, principalmente, que Maestro Manfredo não era um velho cheio de verrugas e muito bravo, e sim um professor paciente que, acima de tudo, divertia-se muito ensinando crianças.
- Você sabe como se chama essa música que estamos tocando? perguntou-lhe às tantas o Maestro. João não sabia. Achou muito estranho quando lhe foi dito que aquela era uma Invenção a Duas Vozes. Como se lesse seus pensamentos, Maestro Manfredo completou: - É claro que todas as músicas são invenções de alguém... mas esta aqui faz parte de uma coleção de invenções bem difíceis de se inventar! E os dois riram muito.
As lições se repetiram por algum tempo, mas João não se tornou concertista. Seu estudo de piano terminou quando a mãe conseguiu outro emprego, dois anos depois. Ao se despedir do Maestro, ele abriu uma gaveta cheia de partituras antigas. Remexeu, procurou, até que tirou de lá umas folhinhas amareladas, cheirando a guardado, onde estava escrito “Johann Sebastian Bach: Inventio 1 C-Dur BWV 772”. Preparando-se para fazer uma dedicatória, perguntou ao garoto:
- Como é mesmo seu nome todo? João... ?
- João Sebastião Ribeiro, respondeu o menino.
Maestro Manfredo, então, abraçou-o afetuosamente e abriu um sorriso largo, que João nunca tinha visto naquele rosto. Seu significado, só compreendeu muitos anos depois. Mas, aquela imagem e o calor daquele abraço guardou para sempre, bem junto com a partitura, a dedicatória, e o amor pela música, sobretudo pela música de Bach.
À medida que os dias passavam, entretanto, João ia ficando mais à vontade. Descobrira um modo de passear despercebido pela escola: tirava os sapatos, andava de meias. Como todo o chão era de madeira, o garoto patinava nas tábuas largas e, assim silencioso, percorria todas as salas de aula como que invisível.
No que devia ter sido outrora um porão, havia um pequeno anfiteatro, onde os alunos tinham aulas de canto com o Maestro.
- Meninos, cantemos! O coração que canta não conhece tristeza! – era sempre com esse bordão e a batuta levantada, que ele dava início às sessões de cantoria.
Encolhido em alguma cadeira da última fila, João ouvia. Visto assim de longe, o Maestro nem parecia tão mau. Várias vezes em cada aula, ele interrompia, os alunos recomeçavam. E João ouvia. A partir de certo momento, seria capaz de cantar junto, mas só o fazia em pensamento, a voz da mãe com o indicador esticado em seu nariz, repetia-lhe na memória: - Nem um pio, entendeu bem? Nem um pio, senão você entra na piaba! João não sabia o que era uma piaba, mas pelo tom de sua mãe, não devia ser coisa boa.
No primeiro andar, havia a secretaria e duas salas de aula com carteiras e lousas. Ali os alunos aprendiam história da música, análise, folclore, teoria musical, solfejo, harmonia. Esse vocabulário iniciático tornou-se familiar para o menino. O que ele mais gostava de acompanhar eram as aulas de solfejo: as mãos ritmadas batendo nas mesinhas, a fala acompanhando o ritmo:
- La-á-Dó-Lá-Si-í-Dó-Ré-Si-Sol... João repetia mentalmente essa linguagem estranha e monossilábica. Mesmo sem ter nenhuma idéia do significado daquele amontoado de sons, achava bonito o grupo todo declamando aquela ladainha em uníssono.
No entanto, o melhor estava no andar de cima. Era preciso vencer a escadaria rangente, mas sempre valia à pena. Eram três salas, duas menores e uma grande, onde aconteciam as aulas de instrumentos: violão, violino, violoncelo, flauta e piano. Na sala maior, João encontrou um tesouro.
Certa vez viu a porta aberta, ninguém lá dentro, e entrou. Achou curioso que, numa sala tão ampla, houvesse um só móvel no centro. Ele era engraçado. Enxergou ali uma cabeça disforme: a boca ampla, dentes brancos e pretos num sorriso estático, a parte de trás com um formato irregular, como um crânio com a tampa aberta. Não resistiu. Puxou para perto daquela abertura o banco que ficava diante da boca, e espiou lá para dentro. Várias tramas de fios sobrepostos uns aos outros, pinos metálicos, tiras de feltro vermelho recobrindo pedaços de madeira de diferentes formatos. Era um quebra-cabeças incompreensível.
Ouviu vozes no corredor e passos que se aproximavam. Apavorado, João correu a se esconder atrás da cortina de uma das janelas. Respirava devagar para que ninguém notasse sua presença. E então, ouviu. Era um som límpido, suave, um som que parecia falar-lhe, lindo. Pôs um só olho para fora e viu que, diante do móvel estranho, uma menina mexia na grande boca aberta e, a seu lado, uma senhora lhe corrigia os erros. No final da aula, a professora indagou à aluna, se tinha gostado de tocar num piano de cauda. Era isso, então! Um piano de cauda!
Depois que elas saíram, João se aproximou novamente. Encheu-se de coragem, e encostou um dedinho numa das teclas. Bem de leve e tão devagar, que não se produziu nenhum som. Desde então, sempre que podia, o garoto se punha em seu esconderijo atrás da cortina e acompanhava as aulas no piano de cauda. Do mesmo modo que acompanhava o solfejo e o canto orfeônico, aqui também ia aprendendo as músicas pela repetição. A diferença é que o piano não cantava, e por isso foi desenvolvendo um tipo de memória diferente, puramente musical, a seqüência melódica sem palavras, desvinculada de significados. E quando se via sozinho na sala, chegava perto e acariciava as teclas, maravilhado.
Um dia, inadvertidamente, apertou uma das teclas com mais força do que o habitual. O som produzido assustou-o, e não pôde conter uma gargalhada. Mas, cativado, repetiu o toque. O que ouviu lhe soou de algum modo familiar. Tateando, foi apertando outras teclas, até que obteve um par, e os dois sons em seqüência evocaram um trecho melódico. A partir daí, esqueceu a regra materna do nenhum - pio e despreocupou-se completamente. Depois do par, achou o terceiro som, e depois o quarto, e assim sucessivamente ia recompondo, por tentativa e erro, um pedaço de melodia muitas vezes ouvida na clandestinidade de seu posto atrás da cortina. Por instantes, o mundo se resumiu àquela sala: o menino, o piano, a música. Como se, para lá das paredes, nada mais existisse. Por estar assim, tão absorto, demorou um pouco para compreender que vinha da porta da sala a voz que lhe interrogava:
- O senhor pode me explicar o que é que está fazendo aí?
João, paralisado, não conseguia responder. Parado na soleira, as mãos postas na cintura e o cenho caricatamente franzido, estava o temido Maestro.
- Toque de novo, pediu ao menino. A música que você estava dedilhando, toque de novo.
João tocou, apesar do tremor que lhe agitava a mão. Sem saber o nome das notas que apertava, repetiu a seqüência: Dó-Ré-Mi-Fa-Re-Mi-Do-Sol. E parou. Maestro Manfredo, então, segurou gentilmente o indicador do garoto e guiou-o até a próxima nota da série, outro Dó, uma oitava acima. Olharam-se nos olhos, o menino esboçou um sorriso tímido, e encontrou a continuação da melodia: Si-Dó-Ré-Sol-Lá-Si-Dó-Lá-Si-Sol-Ré... E as horas foram passando. João aprendeu que o banco podia subir até que estivesse numa altura confortável, que aqueles sons se chamavam notas, que cada uma tinha o seu nome, e que poderia apertar cada nota com um dos dedos, fazendo a mão deslizar ao invés de pular sobre o teclado. E descobriu, principalmente, que Maestro Manfredo não era um velho cheio de verrugas e muito bravo, e sim um professor paciente que, acima de tudo, divertia-se muito ensinando crianças.
- Você sabe como se chama essa música que estamos tocando? perguntou-lhe às tantas o Maestro. João não sabia. Achou muito estranho quando lhe foi dito que aquela era uma Invenção a Duas Vozes. Como se lesse seus pensamentos, Maestro Manfredo completou: - É claro que todas as músicas são invenções de alguém... mas esta aqui faz parte de uma coleção de invenções bem difíceis de se inventar! E os dois riram muito.
As lições se repetiram por algum tempo, mas João não se tornou concertista. Seu estudo de piano terminou quando a mãe conseguiu outro emprego, dois anos depois. Ao se despedir do Maestro, ele abriu uma gaveta cheia de partituras antigas. Remexeu, procurou, até que tirou de lá umas folhinhas amareladas, cheirando a guardado, onde estava escrito “Johann Sebastian Bach: Inventio 1 C-Dur BWV 772”. Preparando-se para fazer uma dedicatória, perguntou ao garoto:
- Como é mesmo seu nome todo? João... ?
- João Sebastião Ribeiro, respondeu o menino.
Maestro Manfredo, então, abraçou-o afetuosamente e abriu um sorriso largo, que João nunca tinha visto naquele rosto. Seu significado, só compreendeu muitos anos depois. Mas, aquela imagem e o calor daquele abraço guardou para sempre, bem junto com a partitura, a dedicatória, e o amor pela música, sobretudo pela música de Bach.
1 comentários:
Lindo e comovente. As imagens são tranquilas..exatamente o que eu estou precisando no momento. Belo momento de inspiraçao.
Este conto ficaria lindo gravado em Cd.
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