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sábado, 8 de março de 2008

O Causo do Dilúvio

Volmar Camargo Junior
Publicado no Recanto das Letras em 05/02/2008


O Patrão criou o homem com a tabatinga da beira de um açude. Depois, para o índio ter o que fazer, resolveu criar a mulher, rachando o bonequinho de barro no meio (aquela história de costela e de “imagem e semelhança” são só algumas das teorias). Deu um assoprão e saíram andando. Batizou os bonequinhos de Adão e Eva. Daí por diante, os dois trataram de se conhecer e de dar cagada. Desobedeceram o Criador, se incomodaram com os filhos, tiveram uma porção de netos flor de bagaceiros, e por aí vai. Entre a peonada celestial, que muita gente chama de anjos, corria o boato de que aquele bicho novo, o tal de ser humano, não ia prestar pra nada.

Quem não gostou nada dessas conversas foi o Dono da Querência. Mandou chamar os linguarudos que passavam mais tempo proseando do que nas lides do Universo. Já que a indiada terrena estava ficando sem-modos, o Altíssimo deu aos anjos a incumbência de encontrar, no meio da criação, um bicho que fosse bom o suficiente para ajudar a endireitar a tribo dos filhos de Adão. Muito dotados nas artes da conversa-fiada, a peonada não hesitou em pedir a Ele que elegesse o mais eloqüente para ser o embaixador do céu entre a bicharada. A proposta pareceu justa, e de pronto, escolheu-se um capataz mui conhecedor da Estância chamado Gabriel. Os outros foram enviados para arrumar o alambrado da Via-Láctea que andava caótico uma barbaridade.

O diplomata foi sem reclamar. Apreciava a campereada, e sobretudo, andar solito pela imensidão do pago, que naqueles tempos era muito maior. Caminhando a despacito, mascando uma folhinha de hortelã, Gabriel teve uma idéia. Fez um chamado, desses que só o pessoal que trabalha pra Ele consegue. Num vá, apareceram três bichos detrás de uma macega: um gato-do-mato, um cachorro e um cavalo. Sentaram e prosearam — dizem que o gato conhecia a erva-mate, e essa pode ter sido a primeira roda de chimarrão da história. O Emissário, mui respeitoso, disse-lhes: “O Patrão quer que um de vocês seja o camarada do homem e da mulher”. Bicho é um tipo de gente muito honesta, e se gosta ou não da proposta, já mostra logo de cara. Pois aceitaram os três. O capataz passou a tarefa, e lá se foram pra onde os homens moravam.

Em pouco tempo, a parentada dos que gostam de comer maçã afeiçoou-se muito aos animais. Os homens, porque eram úteis: o cachorro era companheiro pra caça, o gato limpava a casa dos roedores e o cavalo, mesmo precisando domar antes, virou instrumento de trabalho. As mulheres, porque os bichos eram fofinhos, dava pra pentear, botar fita mimosa, vestir aquelas roupinhas e dar nomes para eles. A coisa desembestou quando os “camaradas” se acostumaram com o jeito de viver dos donos. O gato virou num inútil que só dormia e ainda se sentia o dono da casa. O cachorro só fazia o que mandavam se lhe dessem comida ou brincassem com ele (em geral as duas coisas). E o cavalo, bem, o cavalo continuou trabalhando; porém a indiada se coçava e puxava o ferro branco, e descobriram que guerrear montado era muito mais divertido.

Gabriel ficou guspindo formiga de tão brabo. Resolveu mudar de tática.

Enveredou-se pra cidade mais próxima. Saiu perguntando se alguém conhecia um único homem que valesse a bóia que comia. Pra sua surpresa, existia um: o Seu Noé. Este o recebeu muito bem, ofereceu um mate — ah, sim; o gato ensinou pra todo mundo o hábito de tomar chimarrão — proseou um pouco sobre seus guris, Sem, Cam e Jafé, sobre a morte do Seu Abel, contra-parente que foi morto ainda moço pelo irmão — tem gente que gosta de uma desgraça... O Embaixador Gabriel, firme no seu propósito, botou o talento à prova e inventou, na hora, uma história do arco da velha. Disse mais ou menos assim:

“Olha, Seu Noé. A coisa não ta fácil pros lados de vocês, os herdeiros do Seu Adão. O Patrão Velho anda indignado com as malcriações da humanidade e resolveu botar a casa abaixo. Só que tu, vivente, tem crédito com o Altíssimo! Ele sabe que tu é bom, generoso, correto e tem uma mão boa pra cuidar da criação. Entonces, sem delongas, Deus quer que tu faça o seguinte: junta um casal de cada tipo de bicho, acolhera todos eles mais tu, tua mulher e os teus piá e as prenda deles, constrói uma balsa de madeira de lei que caiba esse povo todo. Despois, pinta a dita com betume pra cobrir as fresta. E providencia umas galocha, porque ta vindo uma tormenta daquelas.”

Inflaram-se feito uns perus, de orgulho de si mesmos. O Noé porque tava grandão com Jeová, e o querubim, porque daquela vez parecia que o plano ia dar certo. Ora, se passar dias e dias enfurnado só com os bichos e a família não endireitasse o homem, então era porque não tinha jeito mesmo. Dias depois sucedeu o tal do Dilúvio que tanto falam. Há quem diga que foi mais ou menos por essa época que nasceu o Ariri Pistola, que não viu o Dilúvio, mas pisou no barro.
O resultado da empreitada foi que o Gabriel, além de tomar uma baita mijada, deixou de ser capataz e virou estafeta. Ninguém mandou sair inventando história e inundando mundo por conta. Depois disso, cada vez que tinha que mandar um recado pra gauderiada cá na Terra, o Patrão Velho mandava o Gabriel falar timtim por timtim o que Ele tinha dito.

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2 comentários:

Muito interessante, Junior, a mescla entre o Gênese e o "dialeto" gauchesco.

Não chega a ser tão difícil de entender quanto Simão Lopes Neto, mas, para que não está acostumado com um CTG, pode complicar a leitura. Nada que um glossário não resolva.

Neste caso específico, creio ter entendido tudo. :D

Glossário... nem me passou pela cabeça. Vou incluir um. Bah, que gauchada! (como os baianos diriam "que baianada!"... foi um lapso!)

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