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segunda-feira, 10 de março de 2008

Obra Incompleta



Diante de si, Hubrecht Van Dijk tinha moinhos, tulipas, o vilarejo lá atrás, o campanário da igreja e o mar.
Ele traçou o esboço, apertou as bisnagas e pincelou as primeiras cores na tela.
Após primavera e verão de trabalho, a administração do vilarejo começou a construção dum moderno prédio de escritórios, completamente destoante do bucólico cenário, mas acorde com o espírito vanguardista do prefeito. Van Dijk comparou a pintura com a paisagem, não ficou satisfeito. Sua obra representava uma realidade não mais existente, precisava alterá-la, incluir o novo edifício.
Tendo feito isto, nova insatisfação: um moinho havia pegado fogo, ato criminoso ou não, nunca foi esclarecido, mas Van Dijk modificou o antes alegre moinho, por outro enegrecido de fuligem.
O vermelho do outono chegou, as tulipas morreram, o céu nublado. As cores do quadro de Van Dijk mentiam. Apressado, desesperado para concluir sua obra, o artista lançou tons pastéis sobre a tela.
Porém, o cinzento inverno, com neve, gelo e árvore secas, também adveio. E o vermelho, ocre, marrom deram lugar ao branco e ao cinza.
Sempre algo diferente, sempre a mutação da realidade, sempre a verdade de Heráclito estapeando Van Dijk na cara. Ele era incapaz de capturar o real.
Por trinta anos o artista lutou com sua obra, quando foi diagnosticado com câncer terminal, seis meses de vida, Van Dijk queimou a pintura inacabada e inacabável. Numa tela em branco, começou tudo de novo e pintou aquela primeira paisagem, sem prédio moderno, sem moinho queimado, sem folhas vermelhas nem neve nas árvores.
Pintou a única pintura real, a das cores, não da realidade.

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