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quarta-feira, 12 de março de 2008

HERÓI

As duas magnuns escorregaram macias para o descanso dos coldres. Ainda sopravam um fio de fumaça dos longos canos prateados.

O esquadrão de elite entrou pela porta giratória, tomando conta de todo o hall do banco. Reféns correndo, alguns chorando, outros ainda imóveis pela tensão.

- Caceta! – disse Joe tocando o ombro do herói. – Quem precisa da Elite quando se tem na equipe o grande Marko?!

Há meia hora, o alarme daquele banco havia soado. Em seguida, policiais de todas as escalas estavam cercando o prédio. Os bandidos ameaçavam matar um refém a cada quinze minutos, caso suas exigências não fossem atendidas.

Marko não apostaria no blefe, pois o preço era a vida de inocentes.

Abriu um mapa do prédio, localizou um duto de ventilação. Entrou por ele e despencou no centro do hall. Antes que seu corpo tocasse o chão, fez cinco disparos. Precisava esperar o tambor rodar e oferecer o rabo da bala para o cão morder.

Quando aterrissou, cinco bandidos estavam estirados no chão. Uma bala para cada. Enquanto caia e atirava, pode sentir o cheiro da carne – “A carne!” – de cada um.

- Qual é seu segredo? Como você conseguiu matar todos eles? – perguntou Joe.

- Sorte – sorriu-lhe Marko. – Pura sorte.

Estaria nos jornais de amanhã – “Mais uma vez” –, como um herói – “De novo”. Mas a noite era sempre solitária – “E muito fria, não esqueça de contar isto. As noites agora são mais frias.” – Ligou a tv e jogou o controle no sofá.

Da geladeira, retirou um bife cru e jogou para dentro do prato – “Carne!”

Sentou-se e sorriu para a tela. Uma mulher em látex negro pairava no ar e golpeava com os pés – “Matrix, seu porra. Diz logo que é a Trinity da Matrix e qualquer mané vai saber.”

Às vezes – “sempre” – sentia-se flutuando daquela forma, como se o mundo estivesse em câmara lenta. Mirava tão rápido que precisava esperar a bala sair pelo cano para, só então, mirar no próximo alvo.

Após comer a carne – “crua” – lambeu o fundo do prato – “sangue”. – Recostou-se no sofá – “Mr. Anderson fugindo do agente Smith na tela” – e puxou a calça da perna esquerda até o joelho.

“Vou ter que mostrar a merda da ferida pra você continuar com a porra da história?” – No começo, Marko sentia-se enojado com a carne aberta na altura da canela. O roxo, misturado com o negro apodrecido, empurrava a infecção que subia numa veia, até perto da virilha – “Chupa minhas bolas.”

Não contara para ninguém sobre aquilo. Sabia muito bem o que fariam com ele. Viraria cobaia em algum laboratório com cientistas loucos. Tomou medicamentos por conta própria. Nada adiantou. A infecção subia num ritmo lento – “em câmara lenta, como todo o mundo” – mas ainda chegaria ao coração.

Há dois meses, recebera um chamado na viatura. Duas garotas haviam sumido num bairro pobre. Suspeitavam que Mandrax, um serial killer, estivesse envolvido nos sumiços – “sim, neste e em todos os outros que a polícia não conseguia desvendar.”

Marko – “o herói” – foi para o local e, investigando, encontrou ao lado de um poço uma tira de pano, na cor da roupa descrita pela mãe da garota.

Conferiu a largura do poço e calculou que conseguiria descer – “E desceu, otário.” – Chegando ao fundo seco, percebeu que havia uma passagem. Entrou por ela; numa mão a arma, na outra, a lanterna – se tivesse outra mão, estaria segurando o cu.

A passagem foi alargando. De gatinho, passou a andar agachado, depois abaixado. Finalmente estava em pé, rodeado por paredes de rocha e terra úmidas. Escutava o constante gotejo, até conseguir distinguir, muito ao longe, choramingos. Eram as garotas – “A carne”.

Marko não mudou o ritmo dos passos. A luz da lanterna na mira da arma – “uma automática, naquela época não gostava de ver miolos explodindo e carne dilacerando. Ou fingia não gostar.”

Ao fundo, pode distinguir a figura de duas meninas abaixadas. Se abraçavam uma à outra e, ao lado delas, uma estranha figura se levantou. Lívida como um pilar de mármore; olhos fundos e esbranquiçados em cima de narinas afundadas até o osso. A boca sem lábios lhe conferia um sorriso macabro, manchado de sangue ressecado.

A criatura se levantou lentamente – “em câmara lenta, como o mundo”. Com passos trôpegos – “arrastados. Diz arrastados que descreve melhor” – caminhou em direção ao policial.

- Pare! – gritou Marko. – Pare, ou atiro! – insistiu mirando na criatura.

Não foi obedecido. Gotas, choramingos, e agora grunhidos, ecoavam pelas paredes.

O dedo de Marko afundou no gatilho, saraivando o peito da criatura que arquejou sobre os joelhos e debruçou no chão.

Caminhou pelo túnel, fazendo mira na cabeça morta – “Ah sim, ele realmente estava morto. Não duvide disto. Mas, mesmo assim, vem aquela patética cena de todo filme de terror. Vai, conta...”

Ao passar pela criatura, Marko só tinha olhos para as garotas – “a carne” – que choravam ainda mais alto. Ao pisar entre os braços do morto, a criatura agarrou-lhe as pernas e cravou as mandíbulas, rasgando a calça e a carne. Por puro reflexo, Marko descarregou o que sobrara no pente na cabeça do monstro.

Sentou-se ao chão, puxando a calça e sentindo a dor lacerante na perna. Arrastou-se até as vítimas.

- Está tudo bem, não se preocupem. Ele está morto agora – tentou acalmar as meninas.

Voltou pelo túnel com as duas e, do poço, chamou ao rádio. Foram resgatados, mas algo dentro dele – “eu?” – dizia para não comentar nada sobre a ferida. Seria seu – “nosso” – segredo.

As primeiras noites foram horríveis, mas a dor passou. Algo em seu sangue, misturado com seja lá o que havia naquela mordida, o fez acelerar seus instintos – “suas necessidades primais” – e reflexos. O mundo ao seu redor ficou mais lento – como o andar de um zumbi.

Agora Marko – “e eu” – assistia a infecção galgar por sua veia. Não revelaria para ninguém o segredo de sua atual agilidade. Sua mente era assolada com o mistério sobre o que aconteceria quando chegasse ao seu coração – “Ah, senhor escoteiro metido a escritor, quando o veio negro chegar ao coração, será tudo bem simples: Eu vou estar lá e, então, vou querer carne.”

Texto por Denis da Cruz

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