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quarta-feira, 12 de março de 2008

A frase

   Francisco chega a casa molhado e cansado. Como nos últimos dias, pouco depois de entrar liga o “laptop” e fica à espera. Aguarda até que vê o aparelho encher-se de cor, as letras pequenas comunicando necessidade de receber uma identificação e a respectiva palavra passe. Está inquieto, algo preocupado e, também… o caso não é para menos!

  Lá fora, a chuva bate com força na vidraça e o vento sopra forte, provocando ruídos esquisitos. A água escorre veloz por calhas estreitas de eléctricos, incomodando poucos, descendo desgovernada para os lados do Cais do Sodré. Há muito que o cenário se despiu de artefactos humanos, estando agora recolhidos e aconchegados quase todos os transeuntes.

  A máquina fora dada assim de repente e por isso acha normal encontrar ainda a conta antiga - alienígena, os “folders” com lixo e algumas, muitas manias. Mas aquilo, aquela coisa não esperava. E não se dará a cuidados de informar ninguém sobre o comportamento estranho. “Se o fizer que irão dizer? O mais provável será o descrédito das suas afirmações. Chamá-lo-ão louco, considerá-lo-ão um chalado e ele não quer que isso aconteça”. Tem medo porque sabe (considera) que a maior parte das vezes os dementes dão-se mal.

  Passa dedos por teclas, introduzindo as informações necessárias. Primeiro, surge a saudação composta pela frase “Bem Vindo” escrita em letras grandes e vistosas. Depois é a vez do “ícone” em forma de ampulheta marcar a passagem de um tempo morto para desaparecer logo em seguida, cedendo lugar à janela de fundo negro onde se alinham os símbolos (escritos a vermelho) de palavras das três linhas. Lê.

   Como nos últimos dias, a face ganha um tom vermelho rubro, tenso e o coração começa a bater descompassadamente e mais depressa. O juízo identifica rapidamente a necessidade de acção. Como nas horas primas das noites dos três últimos dias, o corpo ergue-se, curvando-se um pouco para a frente. Carrega no botão. A mão fecha a tampa.

  “Dona Hermínia, vou sair. Não se preocupe comigo. Devo voltar tarde”
Diz, voz cava e ninguém lhe responde.

  Desce os quatro lances de escadas com descer desengonçado, aos tropeções. Firma os óculos, aperta o casaco e abre o guarda-chuva para proteger-se das bátegas que descem incessantemente.

  Atravessa e entra na Travessa do Grémio Lusitano. Ao fundo, dobra a esquina e vira à direita para a Rua da Atalaia. Bate a uma porta de madeira. Pequenina. Ninguém abre.

  Passam-se várias horas. Quase um dia, muitas horas…

  Volta a casa molhado e cansado. Como nos últimos tempos, pouco depois de entrar liga o “laptop” e fica à espera até que vê o aparelho encher-se de cor, as letras pequenas comunicando necessidade de receber a identificação e a palavra passe. Está inquieto, algo preocupado e, também… o caso não é para menos!

  Lá fora chove e o vento sopra. A escuridão é rasgada apenas pela percepção de traços de gotas. A água corre velozmente por calhas estreitas. Na rua já não se vê vivalma.

  Abre a máquina e introduz um nome de conta e a respectiva senha. Decorrem poucos segundos até que aparece uma janela com a frase.

  “Vai à mercearia da Tia Joana comprar um litro de leite!”

  Preocupado, desliga o computador, vocifera qualquer coisa para o vazio e sai batendo com a porta. Desce a correr os lances de escadas.

  (Quase) toda a gente sabe que as mercearias estão fechadas à noite. Mas aquela, nas próximas semanas, nem de dia dará as caras. Porque (como práticamente todos sabem no bairro) os donos estão de férias e partiram outro dia para uma aldeola longínqua que fica lá para os lados de Trás-os-Montes.

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