Há uma máxima, atribuída a Schopenhauer por alguns, e a Heidegger por outros, que afirma que só existe duas línguas para se filosofar: o grego e o alemão.
Talvez insuflado por esta mentalidade, por anos alimentei uma certa animosidade por tudo que se fazia na França - notória rival da Alemanha quando se trata de cultura -, nada substituía Beethoven, Brahms, Wagner, Nietzsche, Heidegger, Schiller, Goethe, Thomas Mann ou Hermann Hesse.
Nada de bom poderia vir para o lado de lá da linha Maginot.
Também havia um ranço, pelo próprio modo como a Academia se baseava na estrutura educacional francesa, adotando uma linha estruturalista, com professores educados à base dos existencialistas, leitores de Sartre, defensores de Merleau-Ponty, e em parte pela reverência cultural que o Brasil sempre prestou à França, sendo a própria Academia Brasileira de Letras inspirada na correspondente francesa, e tendo quase todos os principais movimentos artístico-literários - o naturalismo, o realismo, o modernismo, o surrealismo, inclusive o pós-modernismo - se inspirado em artistas franceses, francófonos, ou residentes em Paris.
O que valia para mim, durante este período, era ser do contra.
O processo de reconciliação foi sutil. Começou com a leitura de "Gargântua e Pantagruel", obra genial de Rabelais, mas estagnou.
Voltei a ter contato com a literatura francesa mais ou menos um ano depois, quando li pela primeira vez Balzac, "O Pai Goriot", e esta foi uma epifania.
Retornando à dicotomia Alemanha-França, talvez Schopenhauer (ou Heidegger) tivesse razão, poucas línguas possuem a precisão do grego ou do alemão. A prefixação e a aglutinação de palavras permite uma criação ilimitada de conceitos específicos, delimitando os sentidos e estabelecendo um meio quase inequívoco de comunicação.
O alemão até pode ser uma língua poética, mas quando se trata de respeitar a composição duma frase, a criação duma imagem, a descrição dum cenário, não há o que se compare com as línguas latinas. E, nas mãos dos mestres franceses das Letras, a escritura deixa de ser apenas um modo de comunicação, transcende a instrumentalidade da língua.
Tanto Balzac quanto Flaubert observam suas épocas com olhar crítico. Balzac abarca todas as instâncias sociais, do camponês rústico até a aristocracia decadente, mas o foco é sempre a burguesia hipócrita. Flaubert é, por sua vez, mais incisivo; basta uma única personagem para aglutinar tudo aquilo que está disperso nas dezenas de obras de Balzac, esta personagem é Emma Bovary.
A jovem Emma era leitora de romances românticos. Tal formação a fez conceber relacionamentos ideais, uma vida quimérica. O casamento com Charles Bovary é uma frustração, a negação de tudo que ela havia imaginado na juventude. Charles era um homem sereno, sem grandes arroubos de paixão, com um emprego estável, porém medíocre - um médico provinciano sem grandes ambições.
Emma Bovary encontra no adultério a aventura e a emoção que tanto almejara. Primeiro com um fazendeiro dos arredores, posteriormente com um jovem promissor, com quem desfila de braços dados por Rouen.
Flaubert quer que odiemos Emma Bovary, tudo aquilo que ela representa, a hipocrisia, a baixeza, a futilidade, e ele atinge seu objetivo. Nunca antes desejei tanto que um personagem morresse num livro (nem mesmo Heathcliff de "O Morro dos Ventos Uivantes").
Todavia, nem mesmo este prazer Flaubert nos concede com plenitude. Emma morrerá, sabemos disto, antevemo-lo, contemo-nos por páginas e páginas apenas para presenciar sua agonia, porém a morte dela não é libertadora.
"Ela o corrompeu desde além da cova", diz-nos o narrador, referindo-se ao repreensível comportamento de Charles após a morte da esposa.
A corrupção de Emma ultrapassa seu desaparecimento, pois a corrupção de Emma é a corrupção de toda uma sociedade. Emma morre e parte do nosso ódio é aplacado, no entanto, o mundo não muda, outras Emmas, tanto do sexo feminino quanto do masculino, estão lá para ocupar a vaga deixada por ela.
A obra se encerra num tom pessimista, atormentando-nos com seu determinismo, com sua fatalidade.
Grego e alemão podem até ser a língua da Filosofia, mas foi em francês que se criou um dos maiores estudos da psiqué humana, das relações sociais, da mesquinharia, mascarada de Literatura, ou tornado possível justamente por não ser teórico, por não ser fatual, por ser mera ficção, e neste "mera" reside todo o segredo.
1 comentários:
Que beleza de texto, Henry. Me arrepiei todo, e confesso, fiquei até com uma pontinha de "inveja intelectual". Que orgulho sinto em trabalhar contigo.
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