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quinta-feira, 6 de março de 2008

O Estripador, de Dalton Trevisan

" — Não vou responder às perguntas simplesmente porque não posso, é verdade; sou arredio, ai de mim! Incurávelmente tímido (um pouco menos com as loiras oxigenadas!)." Já se escreveu e se comprovou que os demais vampiros não podem encarar, sem pânico, um crucifixo. Ou réstias de alho, água corrente cristalina... Dalton não pode ver um jornalista. Vendo, foge, literalmente foge, apavorado. Suas raras fotos surgidas na imprensa foram feitas às escondidas, como a que utilizamos para ilustrar esta página.

Nascido em 14 de junho de 1925, o curitibano Dalton Jérson Trevisan sempre foi enigmático. Antes de chegar ao grande público, quando ainda era estudante de Direito, costumava lançar seus contos em modestíssimos folhetos. Em 1945 estreou-se com um livro de qualidade incomum, Sonata ao Luar, e, no ano seguinte, publicou Sete Anos de Pastor. Dalton renega os dois. Declara não possuir um exemplar sequer dos livros e "felizmente já esqueci aquela barbaridade".

Entre 1946 e 1948, editou a revista Joaquim, "uma homenagem a todos os Joaquins do Brasil". A publicação tornou-se porta-voz de uma geração de escritores, críticos e poetas nacionais. Reunia ensaios assinados por Antonio Cândido, Mario de Andrade e Otto Maria Carpeaux e poemas até então inéditos, como O caso do vestido, de Carlos Drummond de Andrade. Além disso, trazia traduções originais de Joyce, Proust, Kafka, Sartre e Gide e era ilustrada por artistas como Poty, Di Cavalcanti e Heitor dos Prazeres.

Já nessa época, Trevisan era avesso a fotografias e jamais dava entrevistas. Em 1959, lançou o livro Novelas Nada Exemplares - que reunia uma produção de duas décadas e recebeu o Prêmio Jabuti da Câmara Brasileira do Livro - e conquistou o grande público. Acresce informar que o escritor, arisco, águia, esquivo, não foi buscar o prêmio, enviando representante. Escreveu, entre outros, Cemitério de elefantes, também ganhador do Jabuti e do Prêmio Fernando Chinaglia, da União Brasileira dos Escritores, Noites de Amor em Granada e Morte na praça, que recebeu o Prêmio Luís Cláudio de Sousa, do Pen Club do Brasil. Guerra conjugal, um de seus livros, foi transformado em filme em 1975. Suas obras foram traduzidas para diversos idiomas: espanhol, inglês, alemão, italiano, polonês e sueco.

Dedicando-se exclusivamente ao conto (só teve um romance publicado: "A Polaquinha"), Dalton Trevisan acabou se tornando o maior mestre brasileiro no gênero. Em 1996, recebeu o Prêmio Ministério da Cultura de Literatura pelo conjunto de sua obra. Mas Trevisan continua recusando a fama. Cria uma atmosfera de suspense em torno de seu nome que o transforma num enigmático personagem. Não cede o número do telefone, assina apenas "D. Trevis" e não recebe visitas — nem mesmo de artistas consagrados. Enclausura-se em casa de tal forma que mereceu o apelido de O Vampiro de Curitiba, título de um de seus livros.

"O "Nélsinho" dos contos originalíssimos e antológicos, é considerado desde há muito "o maior contista moderno do Brasil por três quartos da melhor crítica atuante". Incorrigível arredio, há bem mais de 35 anos, com com um prestígio incomum nas maiores capitais do País. Trabalhador incansável, fidelíssimo ao conto, elabora até a exaustão e a economia mais absoluta, formiguinha, chuvinha renitente e criadeira, a ponto de chegar ao tamanho do haicai, Dalton Trevisan insiste ontem, hoje, em Curitiba e trabalhando sobre as gentes curitibanas ("curitibocas", vergasta-as com chibata impiedosa) e prossegue, com independência solene e temperamento singular, na construção e dissecação da supra-realidade de luas, crianças, amantes, velhos, cachorros e vampiros. E polaquinhas, deveras."

Em 2003, divide com Bernardo Carvalho o maior prêmio literário do país — o 1º Prêmio Portugal Telecom de Literatura Brasileira — com o livro "Pico na Veia".

fonte: Releituras


O Estripador


No sábado, pelas cinco da tarde, a moça voltava da Igreja Adventista Filhos de Jesus. Pouco antes da casa da patroa, viu o tipo mal-encarado. Correndinha atravessou a rua.

A casa tem muros altos e um pequeno corredor na entrada. Com a chave na mão, diante da porta, foi alcançada pelo cara, que lhe encostou uma faca na cintura:

- Nem um pio. Que eu te furo!

Um dia frio, ela estava de jaqueta, mesmo assim doeu fininho. O cara apertou mais a arma:

- É um assalto. Dá a bolsa.

Ela estendeu a pobre bolsa: sete reais em notas e moedas. O tipo achou pouco.

Graças a Deus, vinha um casal na sua direção.

- Bem quieta, você. Feche a bolsa.

Daí passou o caminhão do lixo. Ela tentou fazer um sinal. O cara percebeu, e cutucando o punhal:

- Olha pra cá.

Disfarçando, ele acenou para o lixeiro, pendurado ali no estribo:

- Oi, tudo bem?

Em seguida surgiu um ônibus amarelão. Ele ignorou. À espera do seguinte, no sentido bairro. Voz forte e grossa:

- Você vem comigo. Ou te sangro aqui mesmo!

Suplicante, ela retorcia as mãos:

- Sou a babá do menino. Ele está doentinho. Precisa de mim.

Girava no dedo o anel: confessar que era noiva?

Em pânico, obrigada a subir com ele no ônibus. Perna trêmula, abriu a boca para gritar... E tinha perdido a voz. Da boca aberta nadinha de som.

Mas o seu coração dava berros.

Ficaram de pé. Ela sentia a faca ali furando a jaqueta nova de couro. No terceiro ponto, ele tocou a campainha. Os dois desceram.

Andaram duas quadras. Ele viu o terreno baldio. Lá nos fundos, uma e outra casa. Ainda era dia claro:

- Não. Aqui, não.

O tempo inteiro rezava muda. Todas as preces nu­ma só palavra - Jesus. Entregou a alma ao Filho e ao Pai.

Ele caminhava depressa. Agarrava-a com força pelo braço. Outro terreno vazio. Só uma casa de porta e janelas fechadas. Assim que avançaram, a luz da varanda foi acesa. Ele bateu em retirada.

Mais um terreno com pessoas nas casas. Ele continuou a busca.

Lá adiante:

- É aqui.

Tudo deserto. Noitinha. Um barraco sem ninguém.

Até então, fé e esperança haviam-na amparado. Caiu em desespero.

- Tire a roupa.

Ela não queria. Fechou bem as pernas. Ele ergueu a lâmina e rasgou a manga do blusão.

- Pra mim, matar é fácil. Escolha.

A moça tremia toda. Chorava muito. De joelho e mão posta:

- Tenha dó. Em nome de Jesus Cristinho. Leve a bolsa e a jaqueta. Por favor. Só me deixe ir.

Pensa que teve dó, o bruto? Daí ela foi obrigada. Tan­ta confusão, a pobre tinha andado pra cá pra lá, sem parar. Assim cansada, onde as forças de lutar e se defender?

E fez com ela o que bem quis. Fez isso.

- Os dentes, não. Sem os dentes, sua...

Mais isso.

- Abra. Mais. Senão eu...

Rasgou e rebentou. Uma brasa viva entre as pernas. Mais aquilo.

- Se vire. Não. Assim.

Estripou. A coitada que, virgem, se guardava para o noivo, cuja vida era de casa para a igreja e da igreja para casa.

Só a deixou depois de toda ensangüentada. Foi de tal violência. Aproveitou o mais que pôde. Uma carnificina.

Já era noite. Mas tinha gente passando ao longe. Um casal de conversa lá na rua. Se ela gritasse, alguém devia escutar e acudir. O bandido adivinhou na hora:

- Nem pense nisso!

E espetando a maldita faca no peito nu:

- Quer ver sangue?

Sem ela esperar, começou tudo outra vez. O tipo se serviu bem direitinho. Ainda mais ferida e ma­chucada.

Um carro parou adiante na rua. Faróis apagados. Ele achou perigoso. Mandou que ela se vestisse.

Já arrumados, o cara bem sério:

- Abra o Livro no Salmo 130.

Tal o espanto, a moça ergueu os olhos. E primeira vez ela viu quem era: grandão, meio gordo, bigodão negro.

Certo que abriu a Bíblia, mas você tem voz? Nem ela, ainda mais no escuro. Ele então buscou a sua no bolso, pequena assim. Ao clarão da lua, movia os lábios, sem palavras - estava lendo ou sabia-o de cor?

Disse que também era evangélico. Abandonado em criança pela mãe. E, depois de casado, pela Maria - a única de quem gostou. O amor, essa coisa, sabe como é. Todas as mulheres eram vagabundas. Ele disse outra palavra. Para se vingar, caçava as moças na rua. Se não fosse ela, tinha sido outra. Às vezes, atacava duas no mesmo dia.

- Não tenho nada a perder.

Foram andando a par. Já não a tocava. De repente:

- Agora vá.

Devia ficar contente por deixá-la viva. E agradecida ao Menino Jesus, podia ter sido pior.

- Não olhe pra trás.

A pobrinha chegou em casa pelas onze e meia da noite. Arrastava os pés, toda torta e gemente. Sangrando pelos nove orifícios do corpo.

Trazia o relógio de pulso e o anel de noiva. Por eles o tipo não se interessou. Só pelo dinheiro. Achou pouco sete reais. Mas levou assim mesmo.

Foram umas três semanas até sarar das rupturas, lesões e remendos. Não sabe ainda a resposta do exame para aids e hepatite.

A patroa não a quis mais de babá. O noivo, esse? Sumiu. Está custoso achar novo emprego. E nunca pôde reler o Salmo 130. Quando chega a sua vez, fecha os olhos e salta a página.

Dá uivos, meu coração nu. Esse bigodão negro e a golfada de fel e cinza na boca.

Do Salmo 130 se livrou.

E como evitar a hora fatídica das cinco da tarde? Que se repete, sem falta. O dia inteiro são sempre cinco da tarde. Cinco horas paradas no seu reloginho de pulso.

Os ferimentos cicatrizaram, é verdade. Mas nunca ficou boa. E nunca mais foi a mesma.

Fonte: Revista Época

Este conto integra a obra 33 Contos Escolhidos

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4 comentários:

Cara... e o que a gente diz depois disso?

É... o Dalton é pedreira mesmo.

Eu tive certa dificuldade para entendê-lo no começo, mas depois que li "O Vampiro de Curitiba" comecei a admirá-lo mais.

O Henry falou certo... pedreira.

Perfeito. Muito bom. Pedreira mesmo.

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