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sexta-feira, 10 de julho de 2015

Anatomia de um Ateu

Henry Alfred Bugalho

Quem são os ateus? Onde vivem? Quais são seus hábitos e como se reproduzem?

Eu teria dificuldades para apontar um momento exato no tempo em que me reconheci como ateu.
Não há batismos nem rituais emblemáticos. Não há fotos para registrar o evento. Não há padrinhos nem sacerdotes.
No fundo, foi um afastamento lento e gradativo, cada vez mais distante dos dogmas, das religiões e das crenças. Um desvio racional, metódico e lógico.
Esta é uma tarefa de desconstrução, de abandono, de esvaziamento. E a sensação é como a de andar nu no meio de uma rua lotada.
Pois as certezas, mesmo que ilusórias, são reconfortantes. Já a dúvida é uma angústia, pelo menos no começo.
O Nada é aterrador, mas, depois, é a única coisa que realmente faz sentido.

Doutrinação

Toda minha família é católica. Fui batizado, fiz primeira-comunhão e crisma. A noção do pecado sempre me atormentou e eu tinha um medo tremendo do diabo e do inferno.
Acho que devia ter medo de Deus também, pois foi Ele quem criou tudo, incluindo o diabo. Alguém que estabelece um mundo tão desigual e cruel e, mesmo sendo capaz de realizar milagres para transformar tudo isto numa maravilha, insiste na merda que criou, boa pessoa não deve ser...

Vocação

Eu ia à missa todos os domingos e cheguei até a pensar em ser padre. Não que eu fosse lá muito devoto. Era uma opção mais prática mesmo.
Eu era vagabundo, queria uma vida de ociosidade, lendo livros antigos e empoeirados, dormindo, talvez aprendendo grego e latim. Pensava nos grandes sábios da Idade Média, como Santo Agostinho, São Tomás de Aquino e Duns Scotus, e parecia-me que a vida monástica era particularmente propícia à reflexão e à erudição. Aliás, hoje penso que a vida monástica também deve ser bastante propícia para a indecência, pois, como certa vez um professor meu que havia sido franciscano disse: "há tempo de sobra para pensar em putaria".

Deus está morto

Obviamente, não me tornei padre.
A primeira bomba foi quando li que Jesus poderia não ter ressuscitado, ou, pasmem!, sequer existido.
Eu tinha quinze anos e nunca havia parado para pensar muito sobre isto, sempre assumindo como uma verdade revelada, que simplesmente prescindia de análise.
Virgem Maria, anjos, multiplicação de pães e peixes, água em vinho, voltar dos mortos, Santíssima Trindade, Reino dos Céus, tudo isto estava entranhado, colado à pele, além de qualquer dúvida.
Então, cumprindo a minha vocação para vagabundo, fui estudar Filosofia.
O mergulho no abismo.
Hume. Schopenhauer. Nietzsche. Marx. Sartre. Foucault.
O percurso da dúvida. A trilha do Nada.

No creem os ateus?

No que creem os ateus?
A resposta mais óbvia, e a mais falsa, é: "na ciência".
Óbvia porque quase todo ateu parece se refugiar em argumentos científicos para explicar a realidade. Falsa, porque não se trata de uma crença, posto que crenças se baseiam na aceitação de supostas verdades sem a necessidade de evidências, enquanto a ciência funda-se nas evidências para a elaboração de suas hipóteses.
A religião tenta encaixar a realidade em seus dogmas. A ciência tenta elaborar teorias que nos aproximem da realidade.
São pontos de partida completamente opostos.
Poderíamos extrapolar e seguir o argumento de Hume, de que a ciência se funda no hábito de aceitarmos a regularidade de causa e efeito, a tal causalidade, sendo que não há nada que nos garanta que as mesmas causas resultarão sempre nos mesmos efeitos.
Boa parte da Filosofia da ciência e da epistemologia pós-Hume teve de tentar resolver este problemão. A saída mais charmosa foi, sem dúvida, a de Kant, que aceitou que não havia como garantir a validade da causalidade, mas como a mente humana é projetada para pensar deste modo, é o que nos resta. É como uns óculos através dos quais vemos o mundo e que não podem ser retirados.
Mas se me perguntassem se eu me fio nas explicações científicas sobre o mundo, eu não saberia bem o que responder.
Sou cético, o que significa que duvido até da ciência, pois compreendo os limites do conhecimento humano e como nossas respostas são quase sempre provisórias e insatisfatórias.
Oscilo entre a suspeita de que haja uma verdade, mas que não tenhamos acesso a ela, e o temor de que não haja verdade alguma, apenas uma interminável cadeia de interpretações equivocadas e mal-entendidos.
Pode-se argumentar que isto é praticamente a mesma coisa, não haver verdade e não ter acesso a ela, mas há uma sutil gradação. Não ter acesso à verdade neste momento não significa que não possamos acessá-la em algum momento futuro. Não haver verdade... bem, isto quer dizer que estamos num mundo de areia movediça, no qual tudo flutua, tudo é incerto.


Evolucionismo

Certa vez, visitando uma igreja construída sobre o local onde nasceu São Francisco, um evangélico me perguntou se eu era católico.
"Sou ateu", respondi.
"Então você acredita que o homem veio do macaco?", ele perguntou, dando uma risadinha sarcástica.
"Não sei se veio do macaco", eu disse, "por mim, pode até ter vindo do lagarto que não faz diferença. Só tenho certeza que não veio de Adão e Eva".

Minoria

Estima-se que 89% das pessoas no mundo acreditam em algum tipo de divindade.
Isto é uma prova da existência de um ser superior?
O que a maioria pensa ou deixa de pensar não é a melhor defesa para um ponto de vista. Até não muito tempo atrás, a maioria acreditava que os negros e as mulheres eram seres inferiores, que a Terra era plana, que os homossexuais eram degenerados, e uma porção de outros absurdos. Aliás, ainda tem muita gente que acredita em algumas destas coisas, e muitos deles são religiosos...

O Universo

"Tem de haver um Criador. Como explicar a perfeição do Universo, então?"
Talvez este seja um dos argumentos que mais ouvi em minha vida.
Tudo bem; aceitemos provisoriamente que deve haver um deus, mas qual deles?
Se contarmos todas as religiões, incluindo as antigas, existem mais de 28.000 divindades. Quando você fala na existência de Deus, refere-se somente ao Deus de sua religião, ou aos deuses de todas as demais religiões?
Só você é o seguidor da verdadeira religião, ou quem acredita em Alá ou em Brahma, ou acreditava em Zeus ou Osíris, também têm razão?
E por mais que alguns tentem ser conciliadores e afirmem que, no fundo, todas as religiões pregam os mesmos valores, isto é claramente incorreto. As religiões costumam ser muito diferentes, com dogmas contrastantes, com mensagens bastante particulares.
Mesmo na própria Bíblia há diferentes noções de Deus, referido como "Senhor dos Exércitos" (Salmos 46:7) no Antigo Testamento, mas que também é visto como um ser bondoso, como em "quem não ama não conhece a Deus, porque Deus é amor." (João 4:8)
O Deus cristão é o quê, afinal de contas? Uma entidade que protege seu povo escolhido e destrói seus inimigos, ou um pai bondoso que nos instiga a dar a outra face?
E quem criou a perfeição do mundo? Amom-Rá, Urano, Ahura mazda, Jeová, Alá, ou Búri? Ou é um Deus amorfo, impessoal e que permeia todas as coisas, sendo que, neste caso, é indiferente se existe ou não, pois seria apenas uma espécie de energia que originou tudo e que pouco se importa conosco?
E, mais uma vez, caímos da relação de causalidade. Se todo efeito tem uma causa, e se Deus é a causa do Universo, quem criou Deus?
Não é difícil percebermos que isto nos força a uma redução ao infinito, sempre buscando por uma causa que tenha sido a causa de todas as causas, o que é uma contradição.
O meu raciocínio é simples: apenas uma religião pode ser a verdadeira, ou todas estão equivocadas.
A segunda opção parece-me a mais provável.

Ateus versus Religiosos


O ateísmo não é um movimento organizado. Não possui templos nem papas, não há teorias dominantes, não possui um programa comum.
Inclusive, percebo que o princípio essencial entre os ateus é a investigação individual do mundo, que cada pessoa extraia suas próprias conclusões e avalie-as criticamente.
Até há alguns expoentes, como o britânico Richard Dawkins, mas ele está longe de ser um consenso mesmo entre os ateus. Na minha opinião, o comportamento agressivo e militante dele presta mais um desfavor à imagem do ateísmo do que contribui.
Sinceramente, penso que debates entre religiosos e ateus só servem para reforçar ainda mais as posições contrárias. Pessoalmente não conheço ninguém que tenha se tornado ateu por força de argumentos racionais neste tipo de discussões. Se quem é religioso levasse em consideração a racionalidade, dificilmente seria religioso em primeiro lugar; não é à toa que costuma se dizer "fé cega".
Há ateus militantes, que se prontificam a eliminar a "ignorância" do mundo, mas há também aqueles que pouco se importam com o que os outros pensam.

Inquisidores

Para mim, tanto faz se você acredita no deus que for da religião que for.

Aceito até que, para muitas pessoas, a religião pode ser bastante benéfica, dando-lhes um propósito, um sentido, estimulando-as a praticar o bem. Há muitos que se tornam melhores ao acreditarem que cada ato seu está sendo vigiado por um Ser onisciente.
Por outro lado, se você é cristão, de uma religião que originalmente prega o extremo da tolerância, aceitação, perdão e amor, mas está sempre julgando e apontando o dedo para os outros, considerando-se mais puro e santo porque frequenta a missa ou o culto e lê a Bíblia, eu lhe digo que você é um dos males do mundo, é um dos que utilizam e deturpam as religiões para fins destrutivos; é exatamente como, ou até pior do que, os fariseus e saduceus contra os quais Jesus se insurgiu.
O problema é que as religiões e as igrejas são compostas por homens, e os homens são imperfeitos, gananciosos e se deslumbram pelo poder.
Os mártires facilmente se convertem em inquisidores quando surge a oportunidade.

Quem são os ateus?

Talvez você esteja bastante decepcionado a terminar de ler este artigo e constatar que não há seita alguma de ateus, que queima criancinhas e acende velas em um altar para Darwin.
Há apenas indivíduos, que pelas mais distintas razões não encontram justificativas para acreditar em Deus.
São apenas pessoas que descobrem o sentido da vida em coisas muito mais palpáveis, que não esperam redenção após a morte, que praticam o bem sem pensar em ser recompensados depois, que respeitam o próximo porque suas consciências lhes ditam e não porque é o que regozijaria um deus.
Ateus não são necessariamente mais inteligentes, nem mais ricos ou influentes. Não são mais bondosos nem mais malévolos.
Ateus são apenas seres humanos, exatamente como você.

Crédito das imagens:
Primeira Comunhão http://4.bp.blogspot.com/-SD9loNucay8/U15kn7jU6FI/AAAAAAAAJHk/Nmm74hwg7f4/s1600/St+Marys+First+Communion+Photo+(Large).jpg
São Tomás de Aquino http://www.angelicwarfareconfraternity.org/wp-content/uploads/AquinasInTheLouvre.jpg
Ressurreição, de El Grecco http://www.normanviss.com/wp-content/uploads/2015/04/The-Resurrection.gif
Diário de Albert Einstein http://www.mpiwg-berlin.mpg.de/resrep00_01/images/Jahresbericht_img.large/48.jpg
Evolução http://www.bostonglobe.com/rw//Boston/2011-2020/WebGraphics/Ideas/BostonGlobe.com/2012/10/ascent/img/evolution_early_man.jpg
Mapa das religiões https://upload.wikimedia.org/wikipedia/commons/7/79/Prevailing_world_religions_map.png
Galáxia https://blogger.googleusercontent.com/img/b/R29vZ2xl/AVvXsEje3ue8M48mh8PpuTWMWE5EDPRMSb2eFnbqKsdLj63cdxPKhmBear_UO5xxzV5lM0Pj96f0SNJaaDdUIeNv8JrX9jWS1IrgNhZUbfEJz9k1hgrV0Q5CDvpZJsJh81LI4PCxF4B-iRxVuEE/s1600/galaxy_universe-normal.jpg
Charles Darwin http://www.brainpickings.org/wp-content/uploads/2014/08/charlesdarwin1.jpg)

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2 comentários:

"... o princípio essencial entre os ateus é a investigação individual do mundo, que cada pessoa extraia suas próprias conclusões e avalie-as criticamente".

Realmente, ser ateu é um exercício de solidão. Descobri-me ateu cedo demais. Daí, tive que administrar em segredo dois pecados terríveis para minha família católica: Minha homossexualidade e meu ateísmo. A decisão de admitir que não creio em divindades e também de não me sujeitar à "autoridade que delas emana" transformou-me para sempre em alguém que vê o mundo com seus próprios olhos, que não segue o cardume e descobre o oceano seguindo correntes ignoradas por uma maioria que acredita deter em si uma verdade incontestável.

Excelente texto, Henry! Cabe não só no meu dia, mas em minha vida!

O fato é que realmente não é nada fácil pensar (e defender ideias) que não estejam de acordo com o que os demais aceitam.
Perdoam até a ovelha desgarrada, mas ninguém perdoa o lobo...

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