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segunda-feira, 20 de julho de 2015

O fêmur de Odete

Jamilson e Nildete se tratavam de Jajá e Nininha.
Estavam em vias de fazer 60 anos de casados e reuniram a família para
um aviso prévio. Estariam dispensadas solenemente de comemorações filhos,
netos, bisnetos, amigos e parentada em geral, frustrando todos que desejavam
rodear uma mesa no quintal, farta de leitão assado, maionese, farofa,
arroz de forno, macarronada, pastel, barris de chope e um bolo pré encomendado
com dois velhinhos arqueados no topo, noivo de jaquetão, noiva de véu e buquê.

- Mas, papai! São 60 anos! Disse Neuzinha, a primogênita.
- Já disse. Nada de festa, minha filha. Quero fazer uma surpresa à Nininha. 
A dois. E só.

Era uma quarta-feira útil e normal, não fosse uma data tão especial para os dois
velhinhos e seus derivados, quando Jajá e Nininha pegaram o ônibus que subia
o Alto da Boa Vista, rumo ao Parque da Tijuca.

- A última vez que pegamos esse caminho foi de bonde, Jajá. 
- Foi por isso que eu quis tirar você de casa. Desde que as crianças foram embora, 
você nunca mais saiu do Grajaú. 
- Faz tanto tempo assim?
- Faz, minha filha. Faz muito tempo.

O ônibus parou aos solavancos na Pracinha do Alto. Jajá segurou Nininha para não cair.
Lembrou da comadre Odete que quebrou o fêmur ao escorregar  no descer apressado da condução.

- Eu não sou a Odete, não me segura. Eu ainda me lembro o que é andar. 
Primeiro um pé, depois outro.

Jajá e Nininha se deram às mãos em direção à entrada da Floresta da Tijuca.
Era uma longa caminhada, mas devagar, com esforço e cuidado, algumas topadas
e sem muitos sobressaltos, e assim como na jornada do casamento, chegaram.

- Lembra, Nininha?
- Claro, Véio.
- Véio, não: Jajá. Você sempre me chamou de Jajá.
- Ah, tantos anos... vai que esqueci seu nome. E aproveita: vai pentear macaco. 
- Aqui deve ter famílias deles. Olha a copa dessas árvores. Que exuberância! 
Mata Atlântica pura.
- Pura nada. Dizem que D. Pedro replantou tudo.
- Pedro Primeiro ou Pedro Segundo?
- Sei lá, Véio, desculpe, Jajá.   Eu li num almanaque  que essa floresta foi toda refeita. 
Os homens do café destruíram tudo.  Acho que foi Pedro II que replantou, muda a muda. 
Tinha um retrato deles onde eu li. A família Imperial: Pedro Primeiro, Pedro Segundo, 
Princesa Isabel. Tudo tinha testa de mamão. E os pequenos, cabeça de amendoim.
- Para de falar, Nininha, vai se cansar, perder o equilíbrio. Olha a comadre Odete.

A trilha começava a ficar íngreme e fofa de húmus e folhagem.
Percorreram o tempo e as árvores bem devagarinho. Viram esquilos fugidios, micos saltitantes,
passarinhos de todas as espécies tropicais, plantas exóticas, flores de todos os matizes.
Sentiram um ar puro raro e saudoso, parecia que o relógio tinha parado,
ao som das águas batendo nas rochas paleozoicas escondidas pela vegetação densa.

- Psssssshhh..., Nininha. Ouve só. A sinfonia da Cascatinha.

O casal estava ofegante, por euforia ou cansaço. Amparavam-se, mas seguiam.

- É aqui, Nininha.
- Jajá! Como há 60 anos!

Tinham acabado de chegar numa clareira, circundada por uma mata diversa e alguns
pedregulhos revestidos de limo, cipó e raízes insinuantes. Como se ocupasse o lugar
de um altar, uma jaqueira imensa espalhava sombras e lembranças.

- Vem Nininha, vem.
- Jajá. Não me faça tirar a roupa e deitar na folhagem, Véio safado.
- Não se anime, Nininha. Olha a jaqueira.

Os dois se aproximaram do tronco robusto, envolto por uma casca dura.
A árvore se exibia nuns vinte metros de altura, de copa mais ou menos piramidal e cheia,
folhas simples, alternas, inteiras fixadas aos ramos através de um curto pecíolo
de cerca de um centímetro de comprimento. Não era uma jaqueira jovem,
tinha quase cem anos. Seus gordos frutos pendiam junto ao tronco, bem no alto,
o que facilitaria um abraço de Jajá e Nininha àquele ser familiar.

- Olha, Jajá, nossas mãos quase não se encontram.
- A jaqueira cresceu, Nininha, mais ainda cabe nos nossos braços.

O abraço se desfez e Jajá passou a acariciar sua casca.

- Aqui, Nininha, aqui. Achei!

Estava lá. Um coração marcado a canivete. Uma flecha transpassada, os dizeres:
Jajá e Nininha, 8.7.1953.

- Me lembro desse dia, Jajá. Você me pediu em casamento. E me deixei beijar 
até a hora de você tentar levantar meu vestido.
- Mentira, Nininha. Sempre respeitei suas virtudes.
- Eu sei, Véio. Era o que minha imaginação desejava.

Jamilson tirou do bolso o mesmo canivete, testemunha da história.
Chamou Nildete para bem perto e começou a riscar o tronco, bem ao lado do coração.
Surgia um outro coração com os mesmos nomes e a data atualizada.

-Está lindo, Jajá. Vai levantar meu vestido agora, Véio?

Neste momento, ouvem um barulho na folhagem na margem da clareira.

- Pshhhhhhhhiii. Deve ser macaco prego. Fica parada, Nininha, não corre, 
lembra da comadre Odete.

Um susto.

- Velhos safados, machucando a natureza!

Jajá e Nininha petrificaram. Era uma espécie humana de cabelos desgrenhados,
barbas grandes e sujas, roupas maltrapilhas e um facão de mato na mão.

- Sou o dono da floresta. E vocês feriram minha cria.

Jamilson destemido protegeu Nildete.

- Calma, meu rapaz. Só estamos comemorando 60 anos de casados.
- Não quero saber. Riscar árvores tem multa. Passa a carteira, a bolsa, 
o relógio, as alianças. 

O ser humano imprensou Jajá e Nininha contra a jaqueira. Seu bafo era podre.

- Passa tudo, passa logo. E a velha tira a roupa. Quero ver essa velha nua.

E num rompante, recuou até à distância do seu braço imundo esticado com o facão roçando
o queixo de Nininha. E soltou uma gargalhada, transformando o bucólico em terror.

No mesmo segundo eterno, ouve-se um barulho no alto da copa da jaqueira.
Os três olham para cima instintivamente. Sem que desse tempo a correr, uma jaca madura
e gorda despenca de uns 12 metros de altura. Explode bem em cheio na cabeça do homem.
Nininha treme nos braços de Jajá. Jajá treme nos braços de Nininha.
Os dos veem o sujeito ensanguentado entre gomos da jaca espatifada cair estonteado no chão,
tentar levantar de facão à meia bomba, e cair novamente. De costas, com a nuca direto na
ponta de um pedregulho semi entranhado na terra. E lá ficou estrebuchando de olhar aberto
e com um gomo de jaca na barba suja de sangue e gosma. Até que, num imediato tremelique,
soltou um urro e parou de vez, de língua para a fora e olhos esbugalhados. Foi rápido.

- Vamo embora, Nininha. Vamo sumir daqui. Daqui a pouco aparece alguém para dizer 
que a gente matou o diabo.

E correram trilha abaixo como nunca, tal foguetes de mão dadas, saltando sobre raízes,
chutando tocos, equilibrando-se entre a folhagem lamacenta, por pouco não escorregando
no limo das pedras encobertas, até o ponto de ônibus.
Chegaram suados, sôfregos e taquicárdicos.
Nem se lembraram do fêmur de Odete.


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José Guilherme Vereza
Carioca, botafoguense, pai de 4 filhos. Redator, publicitário, professor, roteirista, escritor, diretor de criação. Mais de mil comercias para TV e cinema. Uma peça de teatro: “Uma carta de adeus”. Um conto premiado: “Relações Postais”. Um livro publicado “30 segundos – Contos Expressos”. Mais de 3 anos na Samizdat. Sempre à espreita da vida, consigo modesta e pretensiosamente transformar em ficção tudo que vejo. Ou acho que vejo. Ou que gostaria de ver. Ou que imagino que vejo. Ou que nem vejo. Passou pelos meus radares, conto, distorço, maldigo, faço e aconteço. Palavras são para isso. Para se fingir viver de tudo e de verdade.
todo dia 20


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