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quinta-feira, 9 de julho de 2015

Sombras do Poder: uma ficção política


(Aviso: o conto abaixo é uma ficção. Nomes de personagens, cargos que ocupam, caráter, características emocionais e acontecimentos em nada refletem a realidade. Eventuais semelhanças devem ser encaradas como mera coincidência.)


[…] não podendo esses soberanos furtar-se ao ressentimento
deste ou daquele em particular, deviam, primeiro que tudo,
forçar-se a agir de modo a não serem odiados pela
coletividade, e, na impossibilidade de evitá-lo, deviam,
pelo envide de todos os esforços, escapar à ira das
corporações mais poderosas dessa coletividade [...]”

Nicolau Maquiavel, em O Príncipe



Não vamos deixar que o pessimismo vença a esperança.

Ao encerrar a frase, mesmo com o cenho franzido e tendo empregado naquele breve discurso num tom áspero, levantou a mão em um gesto automático de agradecimento e virou as costas em direção aos bastidores, deixando para trás uma torrente de perguntas de repórteres e as vaias já constantes do público, agora amplificadas.

A senhora acredita mesmo no que diz? - ainda ouviu antes de deixar completamente o palco, e teve vontade de retornar para encarar o dono daquela voz petulante, mas logo o assessor pousou a mão sobre seu ombro, conduzindo-a para dentro, e, ao pé do ouvido, lhe deu uma notícia que a fez imediatamente sobrepor aqueles angustiantes minutos passados.

A outra pesquisa saiu. Confirmou a tendência pra pior. Oitenta por cento, e essa não é a pior parte.

Ela deixou-se desabar sobre a primeira cadeira que viu à sua frente. Colocou as mãos embaixo das coxas, escondendo um tremor de nervosismo, e fitou o chão por um tempo. Quando conseguiu digerir, ao menos em parte, aquela informação, olhou para o assessor e viu o sentimento estampado naquele semblante que tanto repugnava quando os mais íntimos, nesses tempos de crise, lhe dirigiam.

Tira essa piedade do rosto. Preciso de um plano de comunicação estratégica, não de sentimentalismo barato. - sentenciou, de forma agressiva.

O homem, já de meia-idade e louvável carreira em gestão de comunicação política, enrubesceu. Enfiou a cara no tablet, em busca de mais detalhes sobre a pesquisa. Mesmo com a vasta experiência, nunca conseguia prever as reações de sua chefe. Os destemperos, como comumente chamava a idiossincrasia na articulação com aliados e na definição de metas fiscais e econômicas, já faziam parte do folclore em torno daquela mulher, e municiavam o arsenal bélico da oposição – sempre disposta a se ater em fatores emocionais.

Como som de fundo, as vaias continuavam. Ela se levantou, decidida, reclamando em voz baixa, até subitamente se autodirigir uma pergunta retórica:

Como eles podem não entender o que eu faço? - a humildade na voz disfarçava a altivez sublimada, durante toda sua trajetória política, como combatividade. - O que esperam que eu diga? - continuou, agora com o inconformismo.

Antes que o assessor pudesse abrir a boca e entrar em um choque desnecessário, a secretária, apressada, veio com o telefone celular na mão, e falou em tom urgente:

O senhor vice-presidente deseja falar com a senhora. - e estendeu-lhe o aparelho.

Quem disse que eu quero falar com ele? - retrucou, sabendo que seria ouvida, pois o bocal estava destampado.

A secretária puxou o telefone para junto de si, permanecendo ali, estática. O assessor baixou o tablet e decidiu que deveria intervir.

Presidente, ao menos ouça o que ele tem a dizer. Confiável ou não, ele é nossa única ligação com a base. - disse em tom firme mas apaziguador, tentando não gaguejar para ser imediatamente cortado. Continuou: - Só lendo as entrelinhas da retórica do homem pra tentarmos ter uma ideia de como estão as coisas às nossas costas. - finalizou, finalmente conseguindo respirar novamente.

Nossas costas? - indagou, irônica – O meu tá na reta e você quer se livrar de responsabilidade? Aliás, você e esses outros que estão por aí e se dizem meus assessores, não conseguem passar na frente desses macacos velhos da politica nem com reza brava. Que turma de incompetentes que eu tenho. Isso que eu fui herdar… - arrependida de ter usado a palavra herdar, desconversa, se dirigindo à secretária: - Diga pra esse senhor que eu falo com ele daqui há alguns minutos. - Voltando-se para o assessor – Vamos embora, isso aqui já deu!

Ela marchou a passos firmes seguida por sua pequena comitiva, que trocava olhares furiosos entre si. Tentavam creditar a culpa por aquele comportamento histriônico sobre as costas um do outro, como uma maneira de tirar um pouco do fardo do pesado dia a dia, mas sabiam que aquela mulher podia ser pior que uma força da natureza – se no Brasil ocorresse furacão, certamente teria um com seu nome.

Ao colocar os pés na rua, alguns poucos apoiadores que se aventuraram a ir até aquela verdadeira panela de pressão que se tornara o ginásio de esportes da cidade governada pelo seu partido, lhe gritavam palavras de apoio. Ela não pode deixar de abrir um largo sorriso; afinal, há quem me compreenda, pensou, e logo foi trocar cumprimentos com as pessoas que disputavam espaço por entre os seguranças.

Em poucos segundos, os primeiros manifestantes que estavam dentro do ginásio começaram a se deslocar para a rua por outra porta, e, ao verem a cena de afagos, precipitaram-se correndo para lá, já gritando palavras de ordem e, um ou outro, soltando as já corriqueiras vaias.

Precisamos partir. A situação vai ficar crítica. - falou o assessor, em tom grave, já empurrando-a em direção ao carro presidencial.

Enquanto se ajeitou no banco traseiro, com a secretária ao lado e o telefone celular na mão, a porta fora fechada com força, e o assessor correu para entrar no banco do carona. Quando olhou pelo vidro traseiro, enquanto o carro partia, viu que o local onde estava tinha se tornado um palco de batalha entre seus defensores e acusadores.

Mas onde isso vai parar? - lançou no ar, apenas por desabafo.

Isso nós já sabemos, presidente. - asseverou-lhe o assessor, irritado.

Ela girou o corpo para frente com uma rapidez que ele nunca antes conhecera, e o encarou pelo retrovisor dianteiro. Ele desviou o olhar, em sinal de respeito, mas deixou-se ficar quieto. Sabia que tinha lhe atingido a espinha dorsal, e não havia sido por maldade. Apenas constatou uma realidade que ela fingia não ver. E ela sabia, por isso não retrucou de imediato.

A presidente abriu um pouco a janela para deixar o ar entrar, mas parecia mesmo querer anuviar o ar pesado que se instalara dentro daquele veículo, e que já vinha respirando desde as eleições. Tentando acertar no timing, a secretária tomou coragem:

Presidente, - indicou-lhe o telefone assim que ela olhou – o senhor vice disse que esperaria na linha.

Contrariada, pegou o celular nas mãos, passando-a de uma para outra, até que o levou ao ouvido.

- Escuta aqui, Médicis, se vocês acham que vão me intimidar mandando o cachorrinho de vocês cagar sobre a minha imagem em tudo que é mídia golpista, estão muito enganados! - cospe as palavras.
- Com o perdão da palavra, senhora presidente – inicia, do outro lado da linha, o homem que é chamado pelos partidários de sua imediata, jocosamente, de ´Mordomo de Cemitério` -, a dona do canil é quem precisa, primeiro, tratar bem os seus cachorrinhos, para que eles não saiam por aí em busca, dentro da matilha, da liderança que todo animal está fadado a se submeter ou conquistá-la para si. - fez uma pausa dramática, escutando a respiração cada vez mais apressada de sua interlocutora – É a lei da natureza e também da política, presidente.
- Essa pode ser a lei de vocês, mas a minha é a do povo que me elegeu. - gritou, fazendo o assessor balançar a cabeça em negativa.
- Que nos elegeu, a senhora quer dizer. - corrigiu-a, com ironia.
- Vice no Brasil não é nada. O que você é? Um assessório eleitoral, e só. - riu-se da zombaria que foi capaz de criar sem precisar de um marqueteiro político.
- Eu não definiria como assessório alguém a quem se precisa com urgência, mas posso estar enganado. Afinal, com cinquenta anos de vida pública e mais uns tantos de idade, é normal que a senilidade nos afete aos poucos.
- Afeta a você, porque eu estou em plena capacidade das minhas faculdades mentais.
- Mais uma vez, peço perdão, mas nesse momento preciso discordar da senhora.
- Como ousa? Está querendo dizer que eu sou maluca?
- Jamais. Não foi essa minha intenção. O ponto é que a senhora se colocou dentro de uma redoma, intransponível por dentro e por fora, e não se deixa afetar nem toma atitudes de repercussão externa, o que, a meu ver e ao entender do meu partido, é uma falta de discernimento de sua parte em relação a situação que se encontra. Se é de forma deliberada ou não, só o tempo mostrará.
- Você me causa repugnância, Médicis. - foi a única frase que encontrou mais parecida com um rebate dentro de seu atual repertório.
- Lamento saber. Mas certamente esse não é o pior sentimento que a senhora terá sobre mim e o carregará consigo durante seus anos de limbo.
- Isso é uma ameaça, Médicis? - frisou bem o nome de seu contendor, como se o tom usado pudesse lhe causar medo.
- De maneira alguma, senhora presidente. Mas pode-se dizer que é uma notícia em primeira mão. - pausou por um instante, e deixou-se saborear aquele silêncio – Seu padrinho é um homem muito generoso, e realmente é alguém que sabe negociar.
- Você está me passando a perna, seu enteado da ditadura… - falou entre os dentes, furiosa.
- Gosto dos refletores, não posso negar, e dou lá meus espetáculos, mas a minha verdadeira vocação é para os bastidores. Convivo melhor às sombras. É lá onde recarrego minha vitalidade política!
Agora, com a sua licença, presidente, preciso desligar.

Ela permaneceu com o celular ao ouvido, ainda tentando digerir as últimas palavras. Já havia compreendido o mote daquela bizarra conversa, se é que podia chamá-la assim, mas o que não encaixava era o ponto onde seu padrinho entrava nessa história. Estaria o ´Mordomo de Cemitério` jogando-a contra seu único alicerce?, perguntou-se, ou há uma jogada de mestre para me tirar dessa situação?, ponderou, quase deixando escapar um sorriso de canto de boca.

Saiu do devaneio quando o assessor fez menção de lhe entregar o tablet. Ante o olhar inquisidor, ponderou:

Do seu padrinho. E-mail.

Pegou o equipamento nas mãos e puxou os óculos do bolso da camisa. Colocou-os e leu. O assessor a fitou novamente pelo retrovisor dianteiro. A secretária, curiosa, conseguiu firmar os olhos e ler as miúdas palavras. A presidente leu e releu aquela breve mensagem, continuando com o olhos grudados na tela, mas já sem prestar atenção, perdida em conturbados pensamentos.


Fim da linha. - brincou o motorista, informando que haviam chegado ao hotel onde passariam a noite.





Foto: Palácio do Planalto, por Flávio Serafini. Usada sob licença Creative Commons - modificada para negativo. Original: https://www.flickr.com/photos/serafa/8249712637



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