Receba Samizdat em seu e-mail

Delivered by FeedBurner

terça-feira, 14 de julho de 2015

dois crimes




  Maria dos Anjos foi encontrada morta na azinhaga de Santa Luzia, uma vereda que serpenteava pelos terrenos entre as actuais avenidas Gago Coutinho e Rio de Janeiro.

Foi o cabouqueiro António da Silva quem encontrou o corpo.

***

António da Silva terá estremecido a ver o cadáver. Terá mesmo apressado o passo a dar a volta longe do corpo ali estendido.
Tão novinha! Quase uma menina!
Seria António da Silva ensimesmando e logo a dirigir-se para a esquadra mais próxima, ele que nem saberia que muitas varinas vinham da Murtosa, de Estarreja, de Ovar e da cidade onde havia uma ria. Vinham por aí abaixo no comboio que tinha sido inaugurado.
António da Silva nunca tinha andado de comboio.
Nem de carro ele tinha andado a não ser, uma vez, no carro de mula do senhor Aniceto para quem trabalhou na construção duns caminhos.
Gente da faina do mar, vinham em busca de melhor pão e melhor vida. Muitos alugavam um canto naquela zona da cidade ao pé do Tejo, ao pé do descarrego de peixe da Ribeira. Havia muitas varinas a morar na Madragoa.
varinas de Lisboa 1909
Não saberia disso António Silva nesse fim de Julho do ano de mil novecentos e oito, ele que tinha assistido a tudo o que se dera no Terreiro do Paço.
Tinha sido em Fevereiro, e tinham sido os tiros e os corpos ensanguentados.
O cabouqueiro tinha presenciado, ele que iria congeminando que talvez a rapariga também lá tivesse passado naquele fim de tarde. Que talvez ela também tivesse visto.
Talvez o seu pregão tenha ressoado com os tiros!
Era António Silva entaramelando pensamentos enquanto ia buscar quem olhasse pelo corpo descomposto jogado, morto, numa curva mais sombria da azinhaga.
António Silva perturbado desde que presenciara o regicídio.
Talvez a rapariga também lá tivesse estado, mas nem tivesse visto o que ele tinha presenciado, que ela estaria distraída a olhar uma água furtada de onde lhe atiravam um cordelinho e que enchesse a cestinha com carapau miúdo.
Fresquinhas, teria apregoado a referir umas cavalas, e o pregão teria ribombado juntamente com o som dos disparos.
António Silva a tecer tamanhas conjecturas nem saberia de homens a quererem mudar o curso da História e, no entanto, tinha visto os corpos sangrando ao lusco-fusco das cinco da tarde, daquele mês de Fevereiro de dias ainda curtos.
Vinha atravessando a também chamada Praça do Comércio, o sachinho ao ombro e, nesse por acaso, ouviu os disparos e depois viu o sangue e viu os cadáveres ainda estremecendo.
Dormia mal, desde então, que ele acordava a ouvir silvos de balas e sonhava com os corpos tombados da vida que se lhes esvaia com o sangue.
António Silva a deixar a azinhaga e a seguir em direcção à esquadra do Campo Grande. Leva nos pés uns sapatos mancos e rotos e sem cordões. Vai estonteado e receoso e confundido. Àquela hora o sol ainda abrasa e ele cola-se aos muros na busca nem que seja de uma nesga de sombra.
E devaneia.
Como desejava ter visto a varina, ali, quase esquartejada, na tarde em que assassinaram D. Carlos!
António Silva teria fugido com ela até à Rua das Pretas, e nem ele teria presenciado tanta morte, nem teria permitido que a varina fosse, agora, apenas mais um cadáver.
António Silva que dali a nada há-de contar ao guarda: está um corpo morto na azinhaga. E, a dizê-lo, abrirá o rosto num sorriso tolo.
E o guarda, com um bigode ainda farto do almoço a avaliar pelos restos que lá estão dependurados, dirá, apenas: acompanhe-nos, e já a chamar para dentro: Russo! que será o outro guarda, e irão com António fazer o caminho de volta à azinhaga.
Irá António Silva contrafeito, que ele quereria ter dito, como viera ensaiando pelo caminho: o corpo é duma varina e é quase uma menina.
O cabouqueiro que, a anunciar que tinha encontrado um corpo morto, riu com o mesmo riso que ficou para todo o sempre na fotografia que a revista Ilustração Portuguesa publicou a dezanove de Agosto dando notícia do crime. No cabeçalho: Crimes célebres; e, por baixo, o título: A varina Maria dos Anjos. 
António Silva que depressa lhe esquecerá o nome.

***

Debruçado sobre o cadáver descomposto, o guarda comove-se: reconheceu a filha de Ana Augusta. Tenta cerrar-lhe os olhos verdes muito esbugalhados, e grita ao outro guarda que corra a buscar a mãe da defunta. Que a busque na rua do Cura, à Madragoa, que ela venha identificar o corpo. Reclama, ordena, explica, dá pressa.
Ana Augusta que há-de espantar-se que a sua menina tenha ido para tão longe, que se tenha afastado dos locais onde costuma fazer venda.
Nas hortas, sim, mas mais perto da cidade, dirá ela entre dois choros, ainda não sabendo que o corpo da filha, encontrada no brejo, tem as saias, que elas usavam sempre longas, alçadas sobre o ventre e nuas, escancaradas, as coxas e as virilhas.
Descalça era como andavam as varinas, mas não seria o caso de Maria dos Anjos, ao menos no dia do crime. Ali assassinada, tinha, repuxadas aos tornozelos, umas meias pretas, e no pé direito, ainda calçada, uma soca. Uma dessas socas com sola de madeira e uma tira cravada com brochas. Uma tira vermelha, presa com doirados, a traçar o pé de menina de Maria dos Anjos.
As socas que lhe deu o Ramiro, dirá a mãe, e os guardas hão-de inquiri-la: quem é esse Ramiro e qual a relação com Maria dos Anjos.
Ana Augusta que comentará que o peixe espalhado na azinhaga é quase todo o que a sua menina trouxe para o giro. Ela mesma ajudara a fazer a canastra, ela mesma arrematara o preço de cada variedade. E Ana Augusta clamará, que a filha nem terá tido ensejo de vendê-lo.
Nessa manhã de sexta-feira, criadas e senhoras, das casas e das hortas, terão estranhado que o ar não tivesse estremecido com os pregões da varina, e ao almoço desse dia trinta e um de Julho terá faltado peixe em algumas mesas.
Maria dos Anjos que, no entanto, tinha ido cedinho a fazer a volta. Ela a sair da Ribeira ainda quase madrugada, terá sido morta muito antes daquelas três da tarde em que foi encontrada pelo cabouqueiro.
E a comprovar que morreu antes do almoço, o pedaço de pão embrulhado em papel de jornal que encontram junto ao corpo, intacto.
Nem comeu a buchazinha, chorará a mãe.
A sua menina nem terá tido o tempo de voltar a ter fome depois do café e da broa ingerido quase de madrugada, já de canasta em cima da sogra.
Não tivesse António Silva decidido atalhar caminho pela azinhaga, demoraria, ainda mais, a ser descoberto o corpo. E, a dar-se, em casa de Maria dos Anjos teriam estranhado tanta demora. Sobretudo os irmãos, e sobretudo o mais novito habituado às brincadeiras da irmã mais velha. Ana Augusta, essa, demoraria em preocupar-se, que a mãe de Maria dos Anjos havia de supor que a filha ficara tagarelando com alguma criada, e que, assim, talvez trouxesse uma broa fresca, umas cebolas, ou lhe dessem uma peça de roupa mesmo que já esgaçada. Demoraria em preocupar-se a mãe daquela filha já quase casadoira.

***

Quando o guarda bateu, estridente, na porta da loja que os pais de Maria dos Anjos tinham alugado, Ana Augusta gritou lá de dentro: entre, e o guarda sem um preâmbulo que adoçasse, foi informando: a sua filha foi encontrada morta na azinhaga de Santa Luzia. E Ana Augusta a romper em gritos, e ainda assim ripostando, querendo acreditar que nem fosse tal e qual: que lá podia ser a sua Maria dos Anjos! se a rapariga mal chegava ao Areeiro que lhe dava medo de ir adiante, quanto mais andar em Pote d'Água!! Mas o guarda intimava-a: que fosse confirmar, e dava-lhe pressa, e a mãe de Maria dos Anjos limpou o choro na manga da blusa e gritou a chamar os filhos que andavam a brincar na rua. E até disse quatro nomes pois, atarantada, chamou também pelo mais novo que tinha deixado dentro de casa. Que dissessem ao pai que ela ia com o senhor guarda por modo da mana. E o mais crescido atreveu-se: que lhe aconteceu? Mas já Ana Augusta seguia caminho atrás do guarda a jogar o xaile pelos ombros e a compor o cabelo debaixo do lenço. A cada passada firme que Ana Augusta dava na calçada quente da rua do Cura, a saia balançava-lhe desnudando-lhe ainda mais os pés descalços.
Ana Augusta calcorreando as ruas da capital até que fossem apenas hortas, até que fosse a azinhaga recosida nos muros e nos canaviais das bermas, e lá estava a sua menina estirada no pó e, à altura do sobrolho, a carinha rasgada por faca ou por tesoura.
E depois, por momentos, naquele esconso da azinhaga, terá sido apenas Ana Augusta e o seu desespero, todo ele teatro, todo ele exagero.
Que mal te fizeram, filha?!
Assim terá ela gritado a debruçar-se, a querer abraçar o corpo.
Mas os guardas ter-lhe-ão impedido o gesto, não fossem, assim, apagar-se vestígios, e apontavam-lhe o lenço apertado com dois nós em volta do pescoço: é da sua filha, esse lencinho? e Ana Augusta que não senhora, que desconhecia, mas que a sua menina trazia, isso com toda a certeza, um par de brincos de ouro e um cordão que lhe tinha dado a madrinha de baptismo.
Roubaram-lhos, ulularia a mãe de Maria dos Anjos a limpar ranhos e lágrimas na ponta do xaile.
E repetia, soluçando sílabas: roubaram-lhos.
Ana Augusta, mãe da rapariga assassinada, gritando impropérios e desgostos, já os guardas arrumavam o corpo numa padiola de madeira tal e qual a fotografaram a entrar na morgue, tal e qual aparece nos jornais da época.
Que tinha sido furto, terão murmurado, entre si, os guardas, ainda o corpo não tinha sido visto pelo médico a verificar se, sim ou não, tinha havido cópula ou se, de outro modo, tinha o corpo sido molestado.
O corpo da varina que esperaria essa noite de sexta e que passasse o outro dia e ainda o dia do Senhor, e só depois seria o director da Morgue de Lisboa a rasgá-lo, as suas mãos técnicas a tornar possível garantir que o quem quer que tivesse sido, e por qualquer que tivesse sido o móbil, teria morto Maria dos Anjos por asfixia como mostravam as lesões observadas nos pulmões e as equimoses na pele, no timo, no coração e nos rins.
Assim, tal e qual, se pode ler na notícia de várias páginas que a revista Ilustração Portuguesa, edição semanal do Jornal O Século, deu a público no seu número cento e trinta.
A autópsia não dará por concluído que tenha havido cópula.
Mas que o corpo foi molestado, disso são prova as contusões na zona interior das coxas e o modo descomposto como foi encontrado o corpo.
O corpo de Maria dos Anjos que ficará aguardando na Morgue de Lisboa.
E, enquanto isso, será a mãe de Maria dos Anjos a acordar a Madragoa com a expressão incontida do seu incomensurável desgosto.
E o povo irá juntar-se: varinas e pescadores e tantos outros; sobretudo varinas que se acolheriam, num desgosto partilhado, numa raiva surda, a entulharem os contrafortes da Morgue de Lisboa. Sobretudo mulheres, sobretudo vendedoras de peixe como a filha de Ana Augusta e ela própria.
A colónia varina ali em peso.
E anoiteceria e abriria o dia em uma e outra madrugada.
Uma mole de gente a velar o corpo da varinazinha assassinada, sabiam lá onde andaria o autor de tão terrível crime, e quanta vingança aventada de mistura com clamores de justiça.
E no funeral que se faria depois desses dois dias longos, seria ponto-alto o branco dos vestidinhos envergados pelas meninas da idade de Maria dos Anjos.
O branco virginal a cerrar ainda mais o luto dos xailes e dos lenços, e o negro dos fatos humildes de filhos, cunhados, genros, pais, irmãos, maridos, primos e sobrinhos.
Poderiam ter escrito, assim, em algum jornal.
O branco virginal, como era esperado de Maria dos Anjos nos seus treze anos.

***

Hoje, a conhecer a história triste da varina, lembrei-me de ti, Maria Ida.
Lembrei-me de ti a contar-nos que tinhas sido assaltada: roubaram-me aqui, no “meu bairro”, dizias.
O “meu bairro” era ali mesmo onde, antes, atravessava, ziguezagueando, a azinhaga de Santa Luzia. Talvez tenha sido disso que me lembrei do teu assalto.
Ou talvez me tenha lembrado por terem sido dois casos sem autor confesso.
Ou terá sido outro, o motivo de eu te ter lembrado.

***

Acabaras de estacionar o carro nas traseiras do liceu onde tinhas estudado, um quarteirão inteiro do bairro de prédios baixos que os teus familiares tinham ajudado a construir. Gente que viera de terras debruçadas no Nabão a largar as sovelas e outros artefactos com que cada um se faria mestre sapateiro como tinham sido seus avós e pais. Ali, na capital do reino, seriam, primeiro, trolhas e, depois, construtores; e casariam; e as esposas usariam luvas e chapéu e iriam com eles em excursões a Fátima, e mais tarde iriam a Roma de autocarro, e passariam férias nas acomodações dum inatel.
Fazia uma manhã soalheira naquele Janeiro, e o pátio do recreio e o campo de jogos, um e outro ainda buliçosos do intervalo, estavam ali, a meia dúzia de metros do local onde tinhas estacionado. Tinhas buscado, mais do que uma sombra, um local próximo, como desejavas sempre e, se possível, que o carro ficasse no passeio em frente da casa onde residias numa transversal à Avenida da Igreja. Tinhas a carteira no assento ao lado e ficaste uns instantes ver qualquer coisa que nunca precisaste. Tinhas a porta do teu lado meio aberta, garantiste.
Mal dei por ele, contaste-nos, um ror de vezes, e que o homem puxou a bolsa que estava “do outro lado”.
A bolsa que estava do lado onde o carro ficara quase encostada a um muro de quintal, que os prédios ali no bairro tinham quintais que serviam aos vários moradores. Lá deixavam crescer uma árvore de fruto, limões ou nêsperas era o mais frequente, e alguns criavam uma ou duas galinhas para os ovos.
Descreveste-nos com ênfase que lhe seguraste o braço mas que o indivíduo se soltou e andou lesto, e que tu gritaste.
Assim terás dramatizado na esquadra, a apresentar queixa do assalto. E ficarás irada, que o polícia sorriu a querer saber como é que o “tal homem” conseguiu retirar a carteira que estava do lado oposto, minha senhora?
É que um outro corpo debruçado sobre o teu corpo, Maria Ida, ter-te-ia roçado, magoado, até, com a ponta dum cotovelo, ou com uma aresta da tua mala, quando a retirasse! E tu nunca disseste, nunca mencionaste.

***

Houve uma única pessoa suspeita do assassinato de Maria dos Anjos.
Em notícia curta da Ilustração Portuguesa, duas semanas após o extenso primeiro artigo, o jornalista deixou escrito, referindo Josefa Maria Colares: “testemunhos acabrunhadores (…) se conjugam para a comprometer". 
Mas adianta que a mulher persistia numa negativa intransigente.
O certo é que nos arquivos este caso nem aparece. 
Talvez, buscando, haja registo da participação do cabouqueiro, mas o caso da varina assassinada foi esquecido.
Nada se sabe acerca do que terá sido investigado. Pode até supor-se que tenha havido provas suficientes contra Josefa Maria, mas que o pai de Maria dos Anjos, um digno pescador de rede vindo de Estarreja, e nascido lá por perto, Pedro José da Silva de seu nome, tenha rogado que não desvendassem, que a justiça fosse preterida em nome do bom nome da sua filha morta e da sua família.
 Pode supor-se que Maria dos Anjos tenha ido para tão longe, não uma vez, mas uma vez e outra. E nem apregoando, que ela talvez andasse encantada por palavras doces e carinhos, e promessas. Maria dos Anjos tão menina mas já despontando e, quem sabe se o triste desenlace tenha advindo de ciúme, e que o lenço atado com dois nós em volta do pescoço tenha mesmo pertencido a Josefa Maria Colares uma conhecida gatuna com cadastro.

***

Talvez também tu, Maria Ida, tanto ano passado sobre o assassinato de Maria dos Anjos, tenhas, ainda, andado pelos brejos de Lisboa e tenhas tido pejo em confessar-nos.
Tu roubada pela amante que passearias escondida de que te vissem no "meu bairro". 

Share




5 comentários:

Um conto denso, cheio de idas e vindas como é tua marca. E que nos conduz para um lado, enquanto a possível verdade dos fatos está, ou pode estar, em outro. A tua cabeça é, decididamente, um tornado. Acompanhar exige atenção e fôlego. E é isso que eu tanto admiro e respeito na tua escrita : essa capacidade de "desinstalar" o leitor do que é esperado, do óbvio, e mostrar sempre um ângulo alternativo. Aprendi muitas palavras, hoje.

Muitas vezes te releio para entender. Desta vez foi leitura seguida. Cheguei a pensar que seriam dois contos num só. Mas não. Como disse a Cinthia,"denso". Acrescento: extraordinário!

... e eu a pensar que a tarde estava soalheira. Afinal...

Parabéns. É sempre bom ver Maria dos Anjos recordada.

Postar um comentário