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quinta-feira, 16 de julho de 2015

Para impedir os corvos

No equipamento de som antigo, a valsa continua. Acompanha grotescamente o mergulho do corpo no ar. Os gritos histéricos das pessoas misturam-se à música que sai das caixas, criando um caos em tons agudos. A queda se acelera e, por um instante, ela sente medo. Mas volta depressa a confiar na rede que vai jogá-la para o alto e para o alto, até que não haja mais perigo. Para isso aquela rede velha e ressecada está lá, logo mais abaixo. Para impedir que ela desabe como uma boneca de pano. Em pouco tempo, vai sentir as cordas trançadas aparando as suas costas, empurrando-a para cima, salvando o seu corpo miúdo e treinado. E assim que passar o susto, aqueles gritos infernais se tornarão aplausos. Mas não. Há agora, também, choro e correria. Ela ouve. Mas só consegue enxergar uma névoa vermelha. 
Por que é que vocês não calam a boca? Eu estou bem. Não estou sentindo nada. Só não consigo me levantar. Por favor, por favor, sem gritos. A minha cabeça está doendo. Vai passar. Eu preciso me levantar para vocês verem como está tudo bem. Eu sei que consigo. Se não fosse esta dor insuportável nas costas, me tirando o ar, eu já estaria em pé. Já sei. Vou rolar o corpo na rede e... De quem é esse sangue? Eu não gosto de sangue! Eu quero sair daqui! Vamos, vamos! Só um esforço... Mas por que é que as minhas pernas estão assim, jogadas para o lado, tortas como as pernas de uma contorcionista? Eu tenho que fazer alguma coisa! Preciso me levantar desta rede cheia de... areia? Areia? Meu Deus, eu estou no chão!
O corpo dela desarticulado. A rede arrebentada como um ninho podre. Os olhos recusando a luz exagerada. E um sonho engraçado. Uma cama de areia escura, molhada, com cheiro adocicado. E ela sendo sugada por aquela gosma úmida. Ao redor do leito traiçoeiro, corvos de várias cores voando em todas as direções, excitados, gralhando fino. E, de repente, ela voando. Os corvos resgatando-a, com seus bicos fortes, da cama de areia molhada, puxando-a pelos braços, pelas pernas. E os sentidos se apagando em dor.
Um cavalo relincha irritado. É tudo o que ela precisa para voltar a estar no agora. Os olhos abertos no escuro do picadeiro vazio. Vazio como suas pernas. Ela desiste de lutar com os pensamentos. São os mesmos, há 20 anos. A cada vez que as lembranças se impõem, a cada vez que a febre, a ânsia e a dor no peito desafiam o esquecimento, ela revê o seu túmulo de areia. 
Foram os corvos que não a deixaram dormir naquela noite. E ela aceitou. E fingiu. E morreu sem se deitar. Mas não bastou. A pior morte quebra sem levar. Minando, humilhando o sentido do bom. E já é tão pouco o que há de bom. Apenas um bebê com as mãozinhas para o ar. Uma menina brincando de roda. Uma jovem recebendo o primeiro beijo. E ela acreditando que tem um pacto com a morte. Por 20 anos. Pagando cada tributo sem gemer, sem blasfemar. Uma troca justa. Ela, personagem do chão ensanguentado, da rede podre, deformada, inválida, tendo sido capaz de gerar descendência. Guardiã do bom. Mas o destino insiste em novamente aparecer. E as trilhas que deveriam se afastar retornam à arena. Carma obsceno.
Hoje, os corvos estão alertas. E os gritos histéricos querem voltar. Ensurdecedores. Há uma intenção de tudo outra vez. Por isso ela veio. Não que aguente olhar o picadeiro iluminado. Nem que consiga controlar a memória da dor. Ela veio se entender com a morte. Para livrar sua cria de uma sina imerecida. E quando o pé escorregar na barra, e quando a mão do parceiro falhar, e quando a malha colorida despencar em voo de serpentina, a rede firme se fará de útero. Haverá aplausos para a jovem trapezista. Flores entregues por um amante também jovem. E olhos de mãe. Guardiã.
Agora que o circo foi dormir, ela cumpre seu pacto. Entrega-se sem medo. Na cama de areia molhada, a morte se deita ao seu lado. E vigia. Para impedir os corvos. 

(este conto integra a antologia Respeitável Público — Histórias de circo e outras tragédias, Editora Penalux, 2015).






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Cinthia Kriemler
Formada em Comunicação Social/Relações Públicas pela Universidade de Brasília. Especialista em Estratégias de Comunicação, Mobilização e Marketing Social. Começou a escrever em 2007 (para o público), na oficina Desafio dos Escritores, de Marco Antunes. Autora do livro de contos “Para enfim me deitar na minha alma”, projeto aprovado pelo Fundo de Apoio à Cultura do Distrito Federal — FAC, e do livro de crônicas “Do todo que me cerca”. Participa de duas coletâneas de poesia e de uma de contos. Membro do Sindicato dos Escritores do Distrito Federal e da Rede de Escritoras Brasileiras — REBRA. Carioca. Mora em Brasília há mais de 40 anos. Uma filha e dois cachorros. Todos muito amados.
todo dia 16


4 comentários:

já tinha lido, mas reli e vi e ouvi e senti os cheiros e arrepiei-me da intensidade dolorosa, que você tão bem sabe dar-nos tudo isso com palavras


uma nota breve: eu aqui: "Hoje, os corvos estão alertas." poria alerta sem plural
beijo, amiga

Um passeio vertiginoso por sua sensibilidade, Cínthia. Em um frêmito, tudo acaba. Ah, a brevidade da vida, a efemeridade da existência, o viver na corda bamba... Conto espetacular! Não vejo a hora de repetir a leitura, assim que estiver com a antologia Respeitável Público — Histórias de circo e outras tragédias em mãos. Abraços, meu bem-te-vi!

Como sempre, um texto de arrepiar! Ah, Cinthia, que espetáculo, que espetáculo!

Fátima, Emerson e Cecília, obrigada pela leitura e pelos comentários!

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