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segunda-feira, 2 de fevereiro de 2015

XEQUE-MATE





 Resmungando, o detetive entrou no carro. Era a terceira vez naquela semana que estivera muito perto do assassino. Mas, por algum motivo insondável, ele sempre conseguia escapar. Só pensava no quanto a prisão daquele criminoso contaria pontos em sua carreira. Autor de vários crimes que chocaram a cidade em função da brutalidade com que foram cometidos, o bandido mais uma vez triunfara e fugira a tempo.
Baseava suas investidas nos filmes a que assistia em suas noites insones. Mas a polícia americana era honesta e bem-equipada, o que não se podia dizer a respeito da realidade com que ele se deparava. Às vezes, ele sequer podia contar aos colegas o rumo que as suas investigações vinham tomando, sob o risco de alguém lhe puxar o tapete e obter, no seu lugar, a sonhada promoção.
Sua carreira na polícia ia de vento em popa. Um problema de saúde, contudo, o havia tirado de circulação por uns tempos, e as coisas já não eram mais as mesmas por ali. Se conseguisse resolver o caso do misterioso assassino em série, retomaria o prestígio de outrora.
O assassino voltava para casa, satisfeito. Sua última presa revelara-se mais destemida do que as anteriores, conferindo-lhe uma dose extra de adrenalina ao torturá-la. Uma refinada iguaria. Tivera de tapar-lhe a boca com fita adesiva, pois a vadia não calava a boca. Em vez de gritar, como as outras, desafiava-o com perguntas. Tivera de esbofeteá-la. Quem a maldita pensava que era para o analisar? Matá-la fora deliciosamente cruel.
Estudara cada ato do assassino. Chegara mesmo a traçar o perfil psicológico do criminoso. Provavelmente vítima de abuso sexual na infância. Repressão intensa por parte de alguém, talvez da própria mãe. Pai alcoólatra, ou desconhecido. Baixíssima autoestima. Ainda que nenhuma das vítimas tivesse sobrevivido, as torturas que haviam sofrido ou mesmo o modo como foram amarradas sugeria um quase ritual de humilhação, repleto de contornos sádicos. Os dois anos de psicologia que cursara haviam servido para alguma coisa, afinal. Laudos periciais davam uma estimativa da altura e do peso do monstro, como ele o apelidara.
Após estudar o padrão adotado pelo criminoso, fizera uma varredura na área em que ele costumava atacar e estabelecera o tipo de vítima escolhido. Mulheres bem-sucedidas e assertivas, que ele submetia aos piores suplícios antes de as matar sem lhes dar a mínima chance de defesa.
Aquela noite seria dedicada à ceifa de mais uma daquelas meretrizes. Despertavam-lhe o mais profundo ódio. Sempre cheias de si, em meio a livros ou relatórios. Dirigiam. Davam ordens. Lembrando-se da mãe, tomou de um só gole o uísque caubói que preparara. Gostava especialmente do modo como as vítimas se tornavam pateticamente infantis quando ficavam apavoradas e sentiam a proximidade da morte. Ria ao se lembrar de como imploravam pela própria vida. Too late, baby, dizia ele, antes de aplicar o golpe fatal, degolando-as.
O policial prosseguira em seus cálculos, tentando descobrir o critério utilizado pelo assassino. O quadro formava-se aos poucos em sua mente, mas ainda faltavam algumas peças-chave. Embora soubesse o tipo de mulher escolhido pelo assassino, como saber, entretanto, quem seria a próxima? Eram inúmeras as possibilidades, considerando-se o tamanho da cidade, e a aparente falta de critério geográfico. A área em que ele costumava agir cobria um raio enorme, sendo impossível prever onde se daria o próximo ataque. Os colegas, uns medíocres, riam e tomavam café enquanto ele passava noites inteiras em busca de algo que levasse a uma pista concreta e conduzisse à captura do homicida.
Infelizmente, contudo, sua função como policial não lhe permitia sequer acompanhar mais de perto as investigações. Outros detetives, mais antigos e influentes, haviam sido designados para o caso, de ampla repercussão na mídia, e ele tinha certeza de que algumas informações eram propositalmente omitidas – sonegadas – por eles.
Conseguiria pôr as mãos no culpado sozinho, sem que ninguém soubesse. Então, sim, seria aclamado como o grande herói, com direito a medalha de mérito e foto no jornal. Livraria a cidade do monstro, fosse qual fosse o preço a pagar.
Colocara, em casa, painéis semelhantes aos que havia na delegacia, com mapas da cidade. Numa noite, descobriu, triunfante, o padrão geográfico do criminoso. Marcando, em ordem, um a um os locais onde ele havia atacado, percebeu que eles formavam uma letra, como se ele tentasse, conscientemente ou não, informar algo à polícia. Os pontos no painel formavam um traço vertical, que depois se expandia para a direita, para, em seguida, fazer um traço horizontal paralelo ao de cima, formando um desenho semelhante ao da letra F. Seria realmente uma letra? Em caso afirmativo, o que ela significaria? A origem de tudo? O próximo local?
Ignorando as ordens expressas de seus superiores, praticamente abandonou o caso em que vinha trabalhando, para se dedicar integralmente a este, que já se tornara uma quase obsessão.
Obsessão talvez fosse também o que fizesse o assassino perseguir mais uma naquela noite. Era metódico e cuidadoso, e as pistas voluntariamente deixadas imprimiam sua marca, sua assinatura, não permitindo que nenhum oportunista levasse o crédito por mais um de seus crimes perfeitos. Deixava-as para provocar, apesar de saber que a equipe que trabalhava no caso era estúpida o bastante para ignorar pistas poderosas, e até mesmo destruir a cena do crime, como já ocorrera uma vez. E ele, de longe, rindo da incompetência da polícia.
O detetive sabia que pouco importava o que a letra significava. O fato é que haveria mais uma vítima, e ele podia prever o quarteirão em que ocorreria o crime. Bastava ficar de tocaia, em frente ao prédio de alguém que se encaixasse no perfil. Uma vítima em potencial. Era perfeito.
Dormira a tarde inteira naquele dia. Tinha de estar bem acordado, pois sentia que o assassino agiria naquela noite. Sua ideia fixa, de algum modo, aproximara-o do criminoso. Sentia-se cada vez mais próximo dele, como se tivesse, de algum modo, entrado em sintonia com ele, chegando mesmo a compartilhar de suas sensações. Não era como num transe mediúnico ou algo do gênero, até porque nunca acreditara naquilo que classificava de bobagens, mas podia sentir claramente a mistura de medo e prazer que invadia a mente daquele serial killer. Nesses momentos, parecia adentrar o mar em dia de ressaca.
Um pouco depois do horário previsto, chegou ao local onde, segundo seus cálculos, ocorreria o próximo crime. Cantarolava baixinho, antevendo a glória e os elogios que receberia ao capturar o assassino, quando recebeu uma notificação pelo rádio da polícia. O criminoso agira novamente, a uma quadra dali. Xingava, entre dentes, enquanto se dirigia ao local designado.
A cena com que se deparou foi uma das piores que já tinha visto em todos os seus anos de profissão. Os detalhes revelavam a sordidez daquela alma criminosa, que se utilizava de inocentes para se vingar de algo de dimensões imensuráveis.
À semelhança das vítimas anteriores, também esta havia sido brutalmente torturada antes de ser degolada. A cabeça pendia sobre o criado-mudo, virada diretamente para o espelho que havia no quarto. Todas mortas em seus quartos, friamente decapitadas, e as cabeças, como troféus, cuidadosamente arrumadas de forma a mirarem a si mesmas no espelho. Como não observara isso antes? O que exatamente ele queria lhes mostrar? Isso conduzia a um ponto crucial da investigação: o assassino sabia que as vítimas possuíam espelhos em seus quartos. Tolice, pensou. Qual a mulher que não tem um?
 Seus pensamentos foram interrompidos pela chegada dos policiais envolvidos na investigação. Ele agora estava dispensado. Danem-se. Que cheguem sozinhos aos detalhes que ele, só ele, descobrira. A mensagem era clara, conduzindo a uma poderosa pista acerca da mentalidade do monstro. Seu modus operandi revelava um problema quanto à autoimagem. Provavelmente tinha algum trauma em relação a espelhos. Talvez se achasse feio. Ou quisesse que as mulheres se vissem, despojadas de seus corpos e atrativos.
Saiu da cena do crime rapidamente. Assim que chegou a casa, repassou as anotações que fazia minuciosamente. Ao contrário do que imaginava, descobriu o motivo de ter errado de quarteirão: não era um F a letra que os crimes formavam, mas um outro desenho. Dando um soco na mesa, teve a estarrecedora certeza de que haveria pelo menos mais duas vítimas. E logo agora, que o Dia dos Namorados se aproximava. Ele sabia, por experiência própria, que essa data era particularmente difícil quando se está sozinho.
O telefone tocou, fazendo-o estremecer. Era a irmã, convidando-o para jantar no fim de semana. Eram praticamente estranhos um ao outro. Ela, casada e cheia de filhos. Ele, um solteirão convicto, viciado em trabalho. Workaholic, repetia, sorrindo, achando o termo elegante.
 Estamos com saudades de você. Tem certeza de que não pode vir? – ela parecia preocupada.
 Está tudo bem, Luiza. Tenho tido muito trabalho, e estarei de plantão no sábado. – mentia livremente, mas a ideia de passar o sábado rodeado de crianças gritando definitivamente não o atraía.
Tudo bem, então. Vê se aparece. – pelo tom, viu que ela percebera a mentira.
Desligou o telefone, lembrando-se de Bete. Com ela, sim, tudo poderia ter sido diferente. Somente ela o poderia ter convencido de que fraldas e mamadeiras não eram uma maldição. Mas isso pertencia ao passado, e ele não era de remoer recordações nem remorsos. E havia um criminoso à solta, que ele tinha de capturar.
O desenho que se delineava no painel parecia brilhar diante de seus olhos. Mais duas mulheres passariam por aquilo. Avaliou as cópias que furtivamente fizera dos arquivos da polícia: todas com nível superior, exercendo cargos de poder, solteiras e independentes. Sem dúvida, mulheres sozinhas são vítimas em potencial. Cabelos longos, boas roupas. O monstro sabia escolher. Não havia uma que não merecesse um segundo olhar. Onde ele as encontrava? Sem contar a beleza e o status, não tinham nada em comum: moravam em bairros diferentes, não se conheciam nem frequentavam os mesmos lugares.
Tomou alguns drinques e deitou-se. Novamente a imagem de Bete retornou-lhe à mente. Queria que ela estivesse segura. Gostaria que as coisas tivessem sido diferentes, e ele agora tivesse um menino rolando no tapete da sala, com quem iria aos jogos de futebol. Ensinaria bons truques a ele, brincariam juntos e seriam uma família de verdade.
Esta podia até ser inteligente, mas não o suficiente para se manter a salvo, riu o assassino. Conseguira entrar com facilidade na casa. Ou ele ficava a cada dia mais habilidoso, ou as tolas não estavam preocupadas com a própria segurança. Ela acabara de sair do banho, e seu perfume se espalhava pela casa.
A mulher desligou o secador de cabelos. Ouvira um barulho no andar de baixo. Ao passar pela cozinha, olhou o conjunto de facas, sentindo um arrepio percorrer-lhe o corpo ao ver que faltava uma. Caminhou nas pontas dos pés até o corredor, até sentir a mão que lhe apertava a garganta, fazendo-a perder os sentidos.
O policial chegou à delegacia mais cedo naquela manhã. Os jornais anunciavam o último ataque do criminoso. Sem entrar em detalhes, narravam o assassinato ocorrido na véspera. Uma vítima a cada dois dias. E o Dia dos Namorados seria amanhã.
Uma nova ligação da irmã piscava na secretária eletrônica. Ainda bem que ela não corria perigo. Não fazia o tipo do criminoso, um predador de solteiras autossuficientes. E a matrona em que a irmã se tinha transformado passava longe disso.
Sem tempo nem vontade de retornar a ligação, tomou uma dose dupla de uísque e dormiu. Teve um sono agitado, repleto de detalhes confusos sobre os crimes, e acordou empapado de suor. Prenderia o monstro e reconquistaria a posição de antes. Sempre fora um profissional brilhante, e só dependia dessa prisão para finalmente recuperar o que lhe haviam usurpado.
O assassino olhou-se ao espelho. A voz da mãe ainda ecoava em seus ouvidos. Fracassado. Incompetente. Idiota. Devia observar os primos. Eles, sim, eram bons. Depois que a velha morreu, fez questão de perder o contato com aquela corja de heróis inteligentes e ricos. Ele triunfaria, e todos teriam de lhe reconhecer o talento. Ainda chegaria o dia em que lhe beijariam os pés, e ele os esmagaria, como baratas. Saberiam o quanto ele sempre fora melhor do que todos eles. Era um jogo, quase uma conquista. Era matar ou morrer, e morrer só se pode uma vez, mas matar trazia um prazer maior a cada vez, gerando o vício em vez do alívio.
O detetive sabia que aquela noite seria decisiva. Faltava apenas uma vítima para que o circuito se completasse. Teria de passar na casa da irmã. Um dos sobrinhos fizera aniversário, e haveria um daqueles patéticos bolinhos. Não ligava a mínima para eles, mas a insistência da irmã o deixava numa situação bastante delicada. Não era íntimo o bastante para dizer a verdade, nem tão distante a ponto de poder ignorar o convite. Passaria lá, daria um presente previsível ao sobrinho mais novo – quantos anos mesmo ele tinha? – e partiria em busca do criminoso.
Passou um pouco de perfume nas mãos, e a lembrança de Bete veio, mais forte do que nunca. Ela adorava aquele perfume. Por que ela tinha que estragar tudo? Na noite em que ia pedi-la em casamento, ela anunciara que faria o Doutorado em outra cidade. Por quê? O que fizera de errado dessa vez?
Varreu as lembranças para bem longe, como Bete estava agora. Não era uma noite para recordações. Era tempo de agir. Era um jogo, e ele e o assassino estavam em lados opostos do tabuleiro. Cruzara a frágil barreira dos peões, e não houvera torres, bispos ou cavalos capazes de detê-lo. Rainhas houvera várias, todas sacrificadas ao bel-prazer do sádico que as torturava.
Aproximava-se agora do rei-assassino, sabendo que era xeque-mate ou nada feito. Jogo implacável, o do detetive. Adentrava o território inimigo em um caminho sem volta. Xeque-mate, grunhia. Xeque-mate, urrava.
Elena bateu o portão, e então percebeu que estava sem a chave. Será que a havia esquecido em casa? Levava o cão ao parque todas as noites, e isso nunca acontecera. Estava um pouco assustada com as notícias do criminoso que andava pela cidade. Confortava-se, contudo, com o fato de os crimes terem ocorrido longe de sua vizinhança. Trazia os longos cabelos presos em um rabo-de-cavalo, que balançava quando ela corria com o cachorro. Deu uma volta no quarteirão, e acelerou o passo ao ver o mesmo sujeito das últimas noites parado na saída do parque.
 – Você me assustou. – disse ela, ensaiando um sorriso quando ele se aproximou.
 – É perigoso andar sozinha, moça. Nunca se sabe quem se pode encontrar.
– Já estou mesmo indo embora. – o sorriso forçado revelava o pavor da moça, acentuado pela frieza do olhar de seu interlocutor.
 – Você não vai a lugar algum, disse ele, agitando o chaveiro dela nas mãos.
Ela começou então a correr desesperadamente, mas ele parecia incrivelmente veloz, e rapidamente a alcançou.
 – Mãos para cima. Agora!
As vozes dos policiais, que num instante o cercaram, não deixavam dúvidas: o monstro finalmente havia sido preso. Elena escaparia. Estava tudo perdido. Mas como?  Não deixara nenhuma pista. Nem mesmo planejava atacá-la ali. A chave que ela deixara cair havia sido um golpe de sorte. Ela seria a última. O E estaria completo.
O detetive parecia atônito. Como puderam adiantar-se a ele? O mérito era todo seu, nenhum outro policial chegara jamais tão perto da mente do criminoso. Ninguém fora capaz de salvar as outras. Só ele percebera a letra. Só ele sabia que Esther, Eliana, Elisa e tantas outras eram as responsáveis pelos lares que jamais seriam construídos. Independentes. Não queriam se casar. Meteu a mão no bolso, mas foi interrompido por um tiro.
– Eles pegaram o monstro. – ele chorava. Eu o descobri, eu segui os seus passos, mas eles chegaram antes. – um filete de sangue escorria de sua boca.
As imagens começavam a se formar bem claramente agora. Elisabete recusando o anel de noivado. Falando do maldito Doutorado. Um corpo decapitado no motel, com a cabeça de intelectual-independente pendurada em frente ao espelho. Nunca mais pensaria em tese. Nunca mais o abandonaria. Anos de internação em uma instituição psiquiátrica. Agora era funcionário da universidade. Trabalho inofensivo. Recepcionista da biblioteca. Quando dizia que era um policial disfarçado, todos riam dele, julgando tratar-se de uma piada.
Chegara ao outro extremo, percebendo finalmente aquilo que, no íntimo, sempre soubera: jamais houvera outro rei. Seu último golpe teria de ser derradeiro. Matar ou morrer? Tanto fazia, agora. Pôs novamente a mão no bolso, à procura do único objeto capaz de revelar a verdade. Xeque-mate. O olhar de incredulidade chegou a ser captado pelo espelho que trazia no bolso, um segundo antes do disparo.

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Tatiana Alves
Tatiana Alves é poeta, contista e ensaísta. Participou de diversos concursos literários, tendo obtido vários prêmios. É colaboradora da Revista Samizdat, já tendo escrito para os sites Anjos de Prata, Cronópios, Germina Literatura e Escritoras Suicidas. É filiada à APPERJ, à Academia Cachoeirense de Letras e à AEILIJ. Possui nove livros publicados. É Doutora em Letras e leciona Língua Portuguesa e Literatura no CEFET / RJ.

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