Receba Samizdat em seu e-mail

Delivered by FeedBurner

domingo, 8 de fevereiro de 2015

Humberto

Conto publicado originalmente em
F417s-d1ver5, de 12 a 23 jan. 2015




Eu acho que eram umas três da tarde. Não, não. Era o horário de verão, então, já deviam ser quatro horas, mas o sol era o das três. Tinha chovido por uma semana, sem um único dia de trégua. E pensar que se chovesse assim por mais trinta e três dias, o mundo ficaria submerso, e toda a criação seria destruída. Se bem que, hoje em dia, o Criador precisaria ser mais enfático para mostrar seu descontentamento, e agir com mais energia se quisesse desfazer o que já está feito e recomeçar o processo. Não que os americanos ou, sei lá, os russos, já não tenham pensado na possibilidade, e posso apostar que algum grupo de pesquisas do MIT ou de Harward já reuniu os pares de animais de todas as espécies existentes. A guerra fria acabou, ok, mas é certo que algo assim está preparado, só esperando o Altíssimo ordenar que se abram as comportas do céu, e caia sobre a Terra uma chuvarada apenas quatro vezes mais longa que a deste fim de ano. E por onde andará a arca? Em que língua devem falar Noé, seus três filhos e suas respectivas esposas? Em todo o caso, o dilúvio não veio daquela vez, e a chuvarada nem foi a tempestade do século. Sei que, naquele sábado, a água ainda se acumulava na mucosa da cidade, e o sol que lhe caíra por cima com graça e majestade de manhã, às quatro da tarde fazia-a ferver como a uma panela de massa. Imaginei o garfo divino me espetando para experimentar se já estava al dente. O apocalipse viria na forma de uma chuva cor de sangue: nada mais do que Deus pondo molho de tomate sobre a macarronada da criação.

Quatro horas (ou três horas, como diria minha falecida avó, “no horário de Deus”). Aquele bafão me tirava a capacidade de raciocinar. Estava tentando terminar uma matéria para a revista, cujo prazo estourara, mas decidi escrevê-la mesmo assim, e tentar publicá-la na edição seguinte (se meu editor ainda me aceitasse; eu não sei, sinceramente, por que ele tolerava meus atrasos; talvez porque eu era o único freela que não se queixava da grana). Sem condições físicas para isso, e considerando que o sopro divino deveria ser refrigerado – exceto quando Ele quer cozinhar o mundo – abri uma cerveja e fui pra sombra na frente de casa, no alpendre. Ou varanda. Nunca soube a diferença.

Eu tinha poucos vizinhos. Ou, certo, melhor dizendo, poucos vizinhos eram visíveis, ou frequentes nas suas casas. Era uma rua curta, de uma quadra apenas, o tipo de rua que o Manoel de Barros gostaria de conhecer, e escrever qualquer coisa sobre casas com um sol de passarinhos com raizes de boca virada para o chão palavreando chilreios dentro das pedras das lagartixas. Nessa época, meus vizinhos deviam estar nas casas das suas famílias, celebrando o ano novo, comendo e bebendo como se, no dia 2, todos fossem ser levados para campos de concentração.

Para mim, o réveillon teve sempre um sabor de morte iminente. Acho mesmo que as pessoas comem tanto porque temem que esse será seu último banquete, antes do Juízo Final. Não quis celebrar as festas naquele ano. Enchi tanto o saco de esperar o armagedom no Dia da Fraternidade Universal que decidi inventar histórias para ninguém me convidar para nada. A mentira serviu para todos os casos. “Lembra daquele pessoal que me chamou para ir passar o Natal do ano passado lá com eles? Então. Esse ano resolvi aceitar. Mas obrigado por lembrar de mim, viu? Depois das festas a gente se vê. Beijo. Saudade.”. Coube direitinho. Passei o melhor final de ano de todos os tempos, sem precisar explicar como eu sobrevivo longe de casa, o que é que estava investigando (sim, porque... jornalista e detetive... é tudo a mesma coisa), por que minha grana nunca era suficiente, ou quando eu ia arrumar uma namorada. Nem ficar entre desconhecidos que se abraçam e confraternizam como se se amassem de verdade. Nem fodendo. Não fosse o toró e, logo em seguida, o calorão, teria sido perfeito. 

Naquele primeiro de janeiro, as únicas casas habitadas eram a minha e a casa em frente, do outro lado da rua. Meu revisor diria que essa sentença está ambígua, que dá para pensar que as únicas casas habitadas eram essas duas, e que todas as outras eram desabitadas. Isso não estava muito longe da verdade. A cidade fica assustadoramente deserta nas férias escolares. Quem não ia para a praia, ia para o interior, ou ainda, para o exterior. Ficavam só os avulsos mentirosos antissociais, ou pessoas ainda mais esquisitas.

Sentei à sombra gostosa do alpendre (minha vó chamava de “área”), sobre a lajota geladinha e ainda um pouco úmida. Acho que era o único lugar fresco da casa. Abri a primeira latinha do último fardo que comprei para passar a virada. Meu bunker começava a ficar sem suprimentos, e teria que fazer um passeio até o supermercado, mas estava previsto que aquele dia eu ainda sobreviveria. Até porque, naquela cidade, num feriado, nem o pronto-socorro devia abrir.

Minhas vizinhas da frente eram três mulheres. Ou melhor, eram como aquela adivinha, duas mães e duas filhas, uma avô e uma neta; quantas pessoas eram? Uma senhora idosa, uma mulher de uns trinta e poucos, que pelo jeito que falava devia ser filha daquela, e uma menina pré-adolescente, de uns nove ou dez anos, que pelo jeito com que não falavam com ela, devia ser filha de uma, neta da outra. 


A menina brincava na calçada que dá para a rua com uma boneca nova. Eu deduzi que era nova, pela roupinha e pelo cuidado com que a menina brincava com ela; devia ser seu presente de Natal, ou, de todos, o presente mais querido. Ela (a menina, não a boneca) estava vestindo um vestido (!) jeans, também novinho. O tipo de coisa que as mães dizem é “não vai sujar a tua roupa nova, guria”. A guria estava muito atenta, tirando qualquer poeirinha do vestido. As duas outras fêmeas estavam sentadas em cadeiras de praia sob a varanda da casa tomando chimarrão. Pareciam conversar, porque a mais moça gesticulava, mas não se olhavam. A velha estava noutro lugar. Nem acenava com a cabeça para mostrar que estava ouvindo. Acho que os velhos, depois de um tempo, abdicam de umas formalidades acessórias. Eu não conseguia ver, de onde eu estava, se a velha estava falando, ou se apenas ouvia, ou se estava morta na cadeira desde o ano passado. A outra enchia a cuia, ora para si, ora (ufa, estava viva!) para a mãe. Ela, a filha, estava contando algum causo. Os gestos eram, evidentemente, gestos de narrativa.

A casa delas era arrumadinha, mas um pouco decrépita. A pintura descascando, a grama alta, uns entulhos havia meses num canto do pátio, um cachorro imundo, uma gata preta com três filhotes também pretos. A menina havia capturado um deles. Segurava o gatinho em seu colo com muita força, e conversava ora com a boneca, ora (ufa, estava vivo!) com o gato. Estava sentada no meio-fio (minha avó diria “no cordão da calçada”), debaixo daquele baita sol, mas não parecia se incomodar com isso. Num descuido, o gato escapou e correu de volta para perto da mãe, ou para qualquer buraco longe dos carinhos brutos da menina. Num pulo ela ficou em pé, gritando “Volta aqui, Guilherme!” (quem põe um nome desses num gato?). Nisso, a parte de baixo de seu vestidinho levantou-se quase até a cabeça. Estava sem nada por baixo. A cena que durou menos de dois segundos, estava lá, afixada na minha memória: a vulva impúbere da filha da vizinha.

Não é preciso ser ginecologista pra saber que andar com a “pombinha” exposta daquele jeito não é nada saudável. (Aliás, para “pombinha” minha avó teria mais de uma dúzia de sinônimos; ela usava esse nome para as das minhas primas, por oposição a “pintinho”; acho de uma ternura singular). Eu poderia ir até lá e dizer para as duas adultas “Oi, boa tarde. Olha, não é melhor por uma calcinha na menina?”, aí elas diriam “Mas como é que o senhor sabe que ela tá sem calcinha?”, então eu diria “Ah, é porque eu tava ali na minha casa tomando minha cerveja e olhando sua guria brincar com o gatinho e a boneca, esperando a hora que ela fosse levantar a saia e mostrar as partes”. Claro. Aí minha boa vontade seria super bem interpretada pela juiza da vara de infância e juventude e, logo em seguida, pelos caras da minha cela. Saí dali, antes que chegassem os brigadianos.

A noite demora a vir no horário de verão. Fiquei espantado quando vi que eram quase nove e meia e ainda havia claridade. É certo que João escreveu o Apocalipse no horário de verão. Nove da noite e aquele fogaréu no firmamento. Era um entardecer estarrecedor. Dentro de casa, a impressão que se tinha era que havia um incêndio silencioso devorando a cidade inteira. Espiei espantado pela janela dos fundos, que dava para o muro do vizinho. Tudo mergulhado em cor-de-laranja, vermelho e amarelo. Tentei tirar uma foto do céu com o celular, mas o resultado foi um desenho borrado feito no paint do Windows 98.

Beirando a uma da madrugada, quando já restava uma única cerveja e eu havia avançado apenas dois paragrafos medíocres e desarticulados, salvei o texto e pus pra tocar qualquer coisa. Pensei em Kind of blue, mas acabei em O papa é pop. Repeti “Pra ser sincero” duas vezes, só pra ouvir o assobiozinho no final. Apaguei as luzes e deitei no sofá. O teto estava girando lentamente. Lembrei que não havia comido nada desde o almoço. Geralmente, umas cervejinhas como aquelas não me causam maior efeito que estufar a barriga e, lá pela quinta lata, uma vontade de mijar. De estômago vazio, estava explicado por que ficara meio tonto. A casa estava densamente escura. O poste do meio da quadra estava sem lâmpada desde que eu viera morar ali. Portanto, a iluminação só chegava para os eleitos que viviam nas duas esquinas. Desliguei a música. Na ausência de vizinhança, era possível ouvir o tilintar das supernovas explodindo, e o distante ruído de ralo de pia dos buracos negros. A noite estava tão fresca que nem parecia que poucas horas antes estava me abanando diante dos portões do inferno.

Acordei assustado, sentando num impulso. Meus braços e meus pés tinham sido alvejados por pernilongo, ou coisa pior. Não sou especialmente alérgico, mas aquilo coçava muito. Quando levantei, esbarrei com o pé em alguma coisa no chão. A sensação foi estranhíssima, e a minha reação, comprometedora – pelo que fiquei feliz por não haver testemunhas. Percebi a tal “alguma coisa” correr. Me joguei em direção ao interruptor perto da porta. Não vi nada. Não sou especialmente impressionável, mas tive a certeza de que havia alguma coisa além de mim se arrastando pela casa. Qual é a primeira coisa que se pensa numa hora dessas? Dei uma inspecionada, aqui e ali. Desisti depois de olhar rapidamente cada uma das peças – sala, cozinha, banheiro, quarto, o outro quarto – e dar uma volta por fora da casa. Nada. Ninguém vivo, ou visível, na penumbra e no silêncio da rua. A Via Láctea cortava o céu, finalmente, sem nuvens. Quando abri outra vez a porta, um raio preto disparou de dentro da sala, cruzou o alpendre, pulou para fora pelo vão da grade, atravessou a rua e meteu-se para dentro do pátio das três vizinhas. Bingo: o monstro invasor de casas era um gatinho.


Muito possivelmente, a psicanálise explicaria que eu estava, naquela época, tentando desviar a atenção do meu trabalho para qualquer outra coisa, e que isso teria indubitável relação com uma fase anal mal resolvida, com minha sexualidade, logo, com meus pais e com os pés furados de alguém do teatro grego. Esse momento de autocrítica pôs de volta minha vida acadêmica no centro de minhas preocupações daquela noite, e fui passar um café digno de uma madrugada balzaquiana.

O silêncio do mundo tem qualquer coisa de incivilizado. A criação, artística ou científica, talvez precise de algum movimento ruidoso, algo humano como música, ou máquinas funcionando, ou pessoas falando aos sussurros num bar enfumaçado. Tudo romântico demais para a cidadezinha em que vim me meter. O melhor que consegui foi por a cafeteira para funcionar e, enquanto ela produzia, dei o play onde haviam parado Os Engenheiros do Hawaii. Depois, tirei de cima do guarda-roupa a máquina de escrever portátil que custou um videogame inútil na loja de móveis usados – um surto de beatnik-ismo que durou uma página ininteligível e uma bad trip que prefiro não lembrar. Aquela noite, no entanto, pus a Dona Olivetti a serviço do bom jornalismo literário.

Senti o estômago roncar assim que coloquei a folha no carro da máquina. Terminei de alinhá-la, marcando as margens com oito espaços de cada lado e fui ver o que havia na geladeira que ainda não estivesse impróprio para o consumo. Fiquei satisfeito comigo mesmo. A única coisa realmente estragada era uma laranja que comprei para fazer um drinque com a vodka, que acabou antes das laranjas. Havia um pedaço apetitoso de frango assado que comprei como ave natalina na padaria do outro lado da quadra. Ainda sobrou um resto de pão e maionese. Atrás da última lata de cerveja (havia uma última depois da última!), encontrei num potinho meio tomate e meia cebola. Preparei um sanduíche digno daqueles que faziam o Scooby-Doo e o Salsicha, de três andares, com peito de frango desfiado. Melhor que isso, só ambrosia.

Na embalagem da padaria sobraram os ossos e um resto da farofa taxidérmica da ave. Me ocorreu que meu misterioso visitante felino poderia voltar se eu pusesse um pouco daquela iguaria à sua vista. Tirei os últimos fiapos de carne dos ossos, separei as cartilagens das extremidades das coxas e sobrecoxas, pus tudo com a farofa num potinho e deixei no alpendre. Noutro pote, água fresca da torneira. Voltei para a mesa e, até o fim da jarra de café, escrevi quatro páginas datilografadas. Não estava nada mau. Cheguei a ouvir os aplausos dos meus pares, e ver meu editor balançando de leve a cabeça, afirmativamente, sem demonstrar o contentamento, ou até certa inveja ("invejinha branca", ele diria...) por causa daquelas linhas estupendas. Antes de ir para a cama, com os primeiros clarões da aurora, fui espiar a frente da casa. O pote da comida estava vazio e o de água pela metade. Fui dormir com a melhor sensação de dever cumprido.

As noites seguintes foram igualmente produtivas. Meus hábitos voltavam ao meu normal, e pude perceber que a vida civil estava definitivamente distante das minhas aspirações. Deitava entre sete e oito da manhã e acordava por volta das quatro da tarde. Caminhava até a praça para ver o pouco movimento de janeiro. Observava umas pessoas interessantes, embora fossem ou muito mais velhas ou muito mais jovens que eu. Passava no comércio local sem me deter em nenhuma vitrine mais do que o tédio me permitia. A única loja em que entrava era a pet shop no fim da avenida. Seduzido pelo arranhador, pelos brinquedinhos barulhentos, pela ração sem corante, pelas carninhas enlatadas sem sódio, ou, quem sabe, pela alcatra moída que comprei só pra ele, meu visitante noturno continuou a fazer suas incursões até a minha casa. De uma noite para a outra, percebi que ele, como diria a minha avó, “se aquerenciou no meu rancho”, e não foi mais embora. Batizei meu amigo com o nome de Humberto.

Humberto era preto do princípio ao fim. Não só o pelo como as pantufinhas das solas das patas, até as unhas eram pretas. Os olhos eram amarelos fosforescentes, intrigantes, meio blasé. Ou seja, era um gato preto idêntico a todos os gatos pretos do mundo. Mas era o meu primeiro gato em toda a vida, e me tornei eternamente responsável por ele. Acho que descobri uma afinidade insuspeita por felinos. Humberto era um bom companheiro. Brincava um pouco quando eu lhe dava atenção, e isso podia levar horas, mas quando eu sentava para escrever, ele diligentemente enrolava-se na cadeira ao lado e, enquanto eu estivesse escrevendo, ele ficava por ali. Me enganei pensando que todos os gatos machos eram arteiros. Quase cogitei em não castrá-lo, mas lembrei da ninhada da casa da vizinha, a família abandonada por Humberto, que para aumentar não demoraria. E os machos se machucam (!) muito na disputa pelas fêmeas. As gatinhas também sofrem um monte depois da conquista. O sexo dos gatos é um negócio tri violento. A vida sabe ser cruel.

Uma tarde daquelas, antes da hora em que eu costumava acordar, alguém tocou a campainha. Humberto estava dormindo na sua caminha acolchoada, mas eu bem sabia que ele dava uma passeada pela minha cama quando eu não estava vendo. Levantei e fui atender, sem me dar conta que estava nu. Só me flagrei porque Humberto acordou na hora e ficou olhando para meu pinto, e me senti tremendamente envergonhado. Vesti a bermuda gritando “Já vai”.

Era a menina da casa da frente. “Oi”, ela disse. A primeira coisa que eu pensei foi que ela viera pedir seu gato de volta. Fiquei torcendo que o Humberto bancasse o medroso e se escondesse, ou, ao menos, que não viesse espiar. “Oi”, eu disse, “tudo bom?”. Ela não me olhava no rosto. Em vez disso, olhou para baixo, e eu não pude ver para onde. Estava o tempo todo com as mãos escondidas, para trás. “Moço, minha mãe mandou perguntar se o senhor sabe mexer na televisão”. “Hmm, eu posso ver se eu sei. Já vou ali, tá?”. “Tá”, ela disse, sem se mexer. Como ela não saía, e eu não queria que ela visse o Humberto, repeti, rindo “Já vou”. Ela me olhou. Tinha olhos enormes, duas aflitivas bolitas pretas, emolduradas por cílios muito longos e escuros como sua cabeleira, e sobrancelhas formando um ângulo indecifrável. Usava o mesmo vestidinho jeans daquele dia. Estava imundo. Pelo visto, não tinha tirado do corpo desde que o ganhara. Só então vi que estava com a boneca, uma Barbie, ou alguma outra parecida, dessas bonecas magrelas que criam sub-repticiamente na mente das meninas a imagem e semelhança da Claudia Schiffer. A boneca já estava suja, desgrenhada e pelada. Fiquei meio sem ação, sem querer fechar a porta na cara de uma criança. “Já volto”.

Fui até o quarto, catei uma camiseta o mais rápido que pude. Humberto espreguiçou-se e continuou, determinado, dormindo. Quando voltei à sala, a guria estava parada, um passo para dentro da porta. A Barbie parecia uma personagem do Tarantino depois de quarenta minutos de filme. Um filete rubro descia por uma das pernas da menina, criando uma pocinha graciosa entre seus chinelos e o assoalho de madeira. Ela parecia não ter percebido.


Fiquei apavorado, paralisado, pensando no meu trabalho, na minha bolsa de pesquisa, no meu editor balançando de leve a cabeça, negativamente, sem disfarçar seu desapontamento, naquela bolsa para escritores na Bélgica que estava só esperando por mim, nos meus pais indo me visitar na cadeia, no cara da cela que ia me chamar de “minha putinha”. Ouvi as trombetas do apocalipse lá fora, em uníssono com as sirenes e os passos da multidão que carregava paus, ancinhos, foices e tochas acesas. Olhei por cima do muro. A velha continuava morta na cadeira, enquanto a filha, mãe da menina que acabara de ter a primeira menstruação na minha sala, tecia uma toalha de crochê. Pensei em fugir pelos fundos, ou me enforcar na figueira daquele terreno baldio. Ou num pé de couve, como diria a minha avó.

Quando voltei à realidade, ouvi um risinho abafado. A menina ergueu em minha direção um tubo branco, manchado de vermelho vivo na extremidade. “É sangue falso. Em gel. Meu irmão me deu de Natal”. Soltou uma gargalhada e correu de volta para casa, deixando para trás as pegadas vermelhas no meu alpendre. Nenhuma das duas mulheres percebeu o que fizera a terceira, e seguiram, uma com o crochê, a outra com a cabeça em outro lugar. Acho mesmo que elas nem tinham televisão nenhuma. Eu só saí do torpor do estarrecimento quando Humberto veio cheirar a poça de sangue de mentira no meio da sala. Limpei aquilo tudo antes que ele tivesse ideias. 










Share




0 comentários:

Postar um comentário