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segunda-feira, 9 de fevereiro de 2015






                                      O risco de ser mulher pela ótica de Alice Munro


Por Fernanda Fatureto


Nos anos de 1950 nascer mulher era arriscado demais. A escritora canadense Alice Munro deixa claro o papel secundário e perturbador do feminino no livro O amor de uma boa mulher (Companhia das Letras, 2013), vencedor do National Book Critics Circle Award. Cada conto representa um rito de passagem para cada personagem, cercadas por mudanças de comportamento na sociedade com o advento da televisão. Em A Ilha de Cortes, a escritora traça o perfil de uma mulher recém-casada que tenta se adequar ao papel de “noivinha” – apelido que não agrada e lhe acompanha.

A identidade da personagem reside na vida que leva com o marido. Ele trabalha fora, ela tenta cuidar da casa, mas sua inquietação faz com que procure por trabalho. “Nunca ficava muito triste ao saber que a vaga havia sido preenchida. (...) Eu nem entrava, sabendo como meus cabelos e unhas, assim como os sapatos de salto baixos e solas gastas, deporiam contra mim”. O cotidiano a assustava: “Chess sabia que eu lia um bocado e tentava escrever. Não me desencorajava.”.
A preocupação com a atividade intelectual contrasta com as ações da Sra. Gorrie, a vizinha. Em uma das passagens humoradas do conto, narra o cerceamento que a senhora impõe ao bater em sua porta em horários impróprios e a censurá-la quando ela sai em busca de trabalho. “Sempre se vista logo que acordar como se estivesse saindo para o trabalho, capriche no penteado e na maquiagem (...) porque então você pode colocar um avental se tiver alguma coisa para lavar ou cozer no forno. Faz bem para o seu moral”, diz a Sra. Gorrie.

Em uma passagem do conto, a narradora constata o casamento como instituição que preserva certo status cumulativo e questiona se seus antepassados não teriam casado pelo sexo – algo improvável e incômodo de se pensar naquela época: “Imaginávamos que o maior desejo deles tinha a ver com casas, terrenos, cortadores de grama motorizados, freezers e muros de sustentação. E, naturalmente, no que tange às mulheres, com bebês”.  

Mas sua relação com o mundo não passava pelo desejo do comum: O aprendizado se dava pela leitura. “Lia livros emprestados da Biblioteca de Kitsilano a alguns quarteirões de distância. E, quando erguia os olhos naquele estado de assombro agitado a que um livro podia me levar – uma vertigem de iguarias devoradas – (...)”.

Imaginar uma mulher imersa no universo intelectual torna o conto irônico, visto que foi dada à narradora a função principal de “noivinha”. Travar essa luta por outra identidade mais próxima à sua essência a aproxima do quixotesco. Da vaidade e impetuosidade de uma mulher inserida naquele contexto social.

No conto, Alice Munro mostra como a ficção cresce interiormente. Uma narrativa dentro da narrativa, como uma ilha em meio à floresta que se queima em fogo.

* Fernanda Fatureto é autora do livro de poemas Intimidade Inconfessável (Editora Patuá, 2014)



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