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segunda-feira, 10 de março de 2014

Este mundo não foi feito para a gente, meu amor


Henry Alfred Bugalho

Este mundo não foi feito para a gente, meu amor.
Um mundo de fronteiras, de barreiras, de segregação. Ninguém entende a nossa língua e, mesmo se entendessem, não compreenderiam as escolhas que fizemos.
Somos a ausência, o não-lugar, a não-pertença e o não-querer. Todas as portas estão fechadas e, ainda assim, procuramos pelas chaves que não existem, ou simplesmente contornamo-as a flanar por trilhas que bem poucos atrevem-se a percorrer.

Este mundo não foi feito para gente como a gente, meu amor. Ele é para quem se conforma, para quem aceita, para quem concorda. Então o escravo passa a amar suas cadeias e a olhar de cima para aquele que se recusa a ser prisioneiro. Há aqueles que também ocultam sua inveja.
A inveja, também uma prisão.
Nas fotos de nossos passaportes, as caras taciturnas e frias. Parecem antecipar as dificuldades, as trincheiras que os povos cavam para se separar de seus vizinhos. Da boca para fora, cantam loas ao amor fraternal, mas, nas profundezas de seus preconceitos, voltam as costas para o diferente.
Somos todos iguais, essencialmente iguais, porém, na superfície geográfica das nações, nas hierarquias da sociedade, na cor de nossas peles ou nos deuses que cremos ou descremos, somos desiguais; piores ou melhores, aceitos ou rejeitados.

Este mundo não foi feito para a gente, meu amor. De todos os cantos, em todas as vozes, em todas as entonações, estamos sempre a escutar a mesma advertência que ninguém se arrisca a enunciar abertamente: "não ousem ser livres!"
E não ousar ser livre tem o mesmo sentido de não ousar ser feliz, dois estados estes que jamais podem ser almejados por quem não está disposto a pagar o mais alto dos preços.
E nós? Apostaremos neste jogo sem antever as consequências? Ou simplesmente nos acomodaremos e aceitaremos o fado de todos os demais?
Pois quem nunca arrisca, também não perde, mas também nada ganhará. Alguns se contentam com esta certeza.

Este mundo não foi feito para nós, meu amor, e talvez nenhum outro mundo também. Cruzamos continentes e oceanos, nas metrópoles e no campo, no novo e no antigo, e por onde quer que tenhamos passado encontramos sempre a mesma lei invisível controlando as ações e pensamentos dos homens.
Vimos o igual e o diferente, o bonito e o feio, o rico e o miserável.
Onde será o nosso pouso? Onde encontraremos gente como a gente?

Este mundo não foi feito para a gente, meu amor.
Assim, lançamos nossos sonhos uma vez mais em nossa carroça e pusemos-la em marcha, trepidando com os buracos na estrada.
Diante de nós, somente o contorno sinuoso do caminho e o sol a se pôr atrás dos montes.
Está de noite e, nas trevas onde nada se divisa, só escutamos a respiração um do outro. Gostaria de acreditar que esta é a nossa única morada, este curto espaço que me separa de você e onde todos os nossos devaneios se constróem, mas amanhece e ainda há todo este mundo que não foi feito para a gente e temos de nos levantar para seguir adiante.
Este mundo não foi feito para a gente, meu amor, mas talvez tenhamos sido feitos para suas perigosas sendas.

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6 comentários:

Por que tão descrente? Tudo é sempre escuro. A luz é que é própria. Só não dá pra esperar dos outros. Porque não vem. Mas tem gente que nasceu com a força. Você, por exemplo.

Lindo texto, Henry. Forte e sincero. Expõe verdade humanos difíceis de encarar. Lembrei-me de "A Desobediência Civil" e de "Walden ou A Vida nos Bosques", de Henry Thoreau. Quando li essas obras, senti muito do que senti agora lendo o seu texto. Parabéns!

Bravo! Um texto recheado de reflexões e poesia. Um olhar realista e perspicaz sobre esta realidade que nos tritura, nos devora. Sobrevivemos de teimosos. Mas sobrevivemos! Parabéns!

Obrigado, Cinthia, Carlão, Edelson e Carlos.

Estou há muito tempo ensaiando a leitura de Thoreau, mas nunca encontrei a disposição. Agora você me animou a dar uma olhada, Carlos.

A verdade é que cansa levar portadas na cara, Cinthia, mas às vezes só seguimos adiante por teimosia mesmo, ou porque não há outra coisa sensata a ser feita.

Abraços.

"Este Mundo não foi feito para a Gente", mas nós podemos viver neste Mundo transformando-o no nosso, pois essa Liberdade não nos podem tirar... Texto muito actual, forte, muito bem escrito, e também provocatório... Muito obrigado pela coragem de o ter feito, parabéns e o maior respeito... Felicidades. Réjo Marpa

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