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domingo, 16 de março de 2014

Santinha

Terminou as orações da manhã e levantou-se devagar, com a ajuda da bengala ao lado da cama. Voltou-se por uns instantes para olhar o homem que dormia ao seu lado havia 65 anos e deu uma risadinha abafada por causa do barulho engraçado que os lábios murchos do marido faziam: papapa papapa. Todas as noites, desde que passara a usar dentadura, Bartolomeu a retirava para dormir. “A higiene é tudo, Santinha”, repetia a três por quatro. “Não tem nada pior que um velho com a boca fedorenta”. Na verdade, Santinha bem sabia que o verdadeiro motivo para tanta higiene e zelo era o medo que ele tinha de engolir a dentadura enquanto dormia e morrer sufocado. Que coisa! Oitenta e nove anos e ainda tem medo de morrer!, pensou, se divertindo mais uma vez com o papapa do marido adormecido.
Fosse por higiene ou por medo, o fato é que sobrava para ela, todos os dias, a tarefa de limpar e guardar a tal dentadura. A idade avançada deixava Bartolomeu confuso sobre ter ou não ter feito alguma coisa e, pior, sobre onde guardara os objetos. Para evitar ao companheiro a humilhação, esperava com paciência que ele largasse os dentes postiços sobre a pia, toda noite, para então voltar silenciosamente ao banheiro e limpá-los. Pela manhã, entregava-os ao marido, junto com uma muda de roupas para o dia.
Ainda nem eram 7 horas quando ela tomou o café fresquinho, acompanhado de pão francês. Naquela manhã, sentia-se tentada ao exagero e, por isso, em vez de um, foram dois pães besuntados com a manteiga de Minas que ela usava apenas nas carnes assadas. Recheou-os, ainda com duas fatias gordas de queijo. Em seguida, lavou toda a louça. Nunca deixava nada na pia para a empregada. Era uma mulher de virtudes. Economizava o dinheiro do marido, mantinha a casa em ordem. Nada faltava. Nem sobrava. Pagava à empregada o justo e controlava para que a moça não fizesse comida demais. Uma mulher de virtudes e de pouco luxo.
Recolheu as migalhas da mesa num potinho de plástico azul e, dirigindo-se ao pequeno jardim na parte da frente da casa, distribuiu-as aos passarinhos Depois, sentou-se na poltrona de bordar no pequeno alpendre, ajeitou sobre a roupa uma manta leve e fechou os olhos para meia hora de sol.
Acordou, morta, num local que nunca tinha visto. Nada ali se 
parecia ao que ouvira dos padres ou da mãe. O lugar era comum, com gente comum. De cara, nem se deu conta de que estava morta, até que alguns anjos passaram voando por ela e um deles, parando, cumprimentou-a: 
— Chegou, Santinha? Que bom!
Completamente à vontade, ela sorriu para a criatura de asas, que passou a elogiá-la.
— Dá gosto receber uma alma como a sua por aqui, minha amiga. Prendada, zelosa dos preceitos, boa filha, boa mãe, boa esposa. Faz tempo que não recebo alguém que vá direto para o lado direito do Pai, sem purgatório nem nada.
Orgulhosa, porém não muito para que isso não acabasse por se tornar um pecado, perguntou, já cheia de intimidade:
— Direto mesmo, meu amigo?
— Sem escalas e sem volta.
Curiosa, quis saber que de que volta falava o anjo. Ele explicou que algumas almas precisavam ficar voltando para o mundo material, sob a forma de aparições, para poderem resolver assuntos inacabados, problemas, pendências humanas. Gente que não conseguia se desligar do que deixou para trás. Impressionada, declarou que não tinha pendências e que fizera tudo certinho durante a vida para poder merecer o céu após a morte. No entanto, novamente curiosa, arriscou outra pergunta:
— Mas como é que vocês, anjos, sabem quem está pronto de verdade?
— A gente fica provocando para ver a reação. Tem aqueles que nem se importam. Mas tem os que não resistem, se descontrolam, brigam e... e... soltam até palavrão, você acredita, minha amiga?
Santinha horrorizou-se. Logo ela que nunca dissera nem um merda em toda a sua vida! O anjo prosseguiu:
— Ih, minha amiga, nem queira saber quantos eu escuto por aqui! E ainda digo mais: sabe aquele... aquele que tem três letras juntinhas? É o preferido!
Desconcertada, ela quis saber mais.
— Três letrinhas...?
— É! Aquele que começa e termina com a letra “p”!
E assim seguiram em direção ao Céu. Ele, contando como funcionavam as coisas por lá; ela, sentindo-se cada vez mais esquecida da vida que deixara no mundo material. Até que cruzaram os portões gigantescos da Casa do Pai, escancarados à espera dos dois, e o anjo anunciou que, enfim, estavam na morada eterna. Apressado, começou a fechar às suas costas os pesados portões que haviam acabado de transpor, tentando isolar rapidamente o Céu do Purgatório. Mas aconteceu que, naquele instante, um vento forte soprou, fazendo bater contra o portão as imensas argolas de ferro que funcionavam como puxadores. Um som familiar chegou aos ouvidos de Santinha: papapa, papapa, papapa... Transtornada, agarrou o anjo pela veste longa e branca e disse, angustiada:
— Eu preciso voltar!
Assustado, ele sussurrou:
— Mas o que é isto agora?! Nunca! Daqui, ninguém sai! Eu avisei à senhora!
— A dentadura, meu amigo, a dentadura do meu velho!
Sem entender, mas armando-se de paciência angelical, pediu à Santinha que explicasse. Com um profundo suspiro, ela disse de um fôlego:
— O meu Bartolomeu é um pobre homem velho e caduco. Se eu não entregar na mão dele, toda manhã, a dentadura, ele passa o dia sem ela. Aí não come e fica doente, triste, com vergonha de conversar com as pessoas. É por isso que eu preciso voltar, pra mostrar a ele onde estão os dentes. Aliás, pra falar a verdade, eu preciso aparecer para a empregada também, porque é ela quem vai cuidar da dentadura daqui para a frente, entendeu?
Batendo as asas com força, ele abanou a cabeça em negativa. Ela insistiu. Novamente, ele negou. Mais uma tentativa. Mais um não — e dessa vez acompanhado de um olhar gelado. Santinha, então, correu em direção ao trono sagrado, onde Deus a aguardava. Parou, decidida, encarou o Criador olho no olho e com uma voz gutural passou a repetir, como um eco:
— Pqp! Pqp! Pqp! Pqp! 
Chocado, o anjo tentou tampar-lhe a boca com as asas, mas ela, driblando as penas da criatura imensa, gritou para todo o Paraíso:
— E da próxima vez vai ser é por extenso!


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Cinthia Kriemler
Formada em Comunicação Social/Relações Públicas pela Universidade de Brasília. Especialista em Estratégias de Comunicação, Mobilização e Marketing Social. Começou a escrever em 2007 (para o público), na oficina Desafio dos Escritores, de Marco Antunes. Autora do livro de contos “Para enfim me deitar na minha alma”, projeto aprovado pelo Fundo de Apoio à Cultura do Distrito Federal — FAC, e do livro de crônicas “Do todo que me cerca”. Participa de duas coletâneas de poesia e de uma de contos. Membro do Sindicato dos Escritores do Distrito Federal e da Rede de Escritoras Brasileiras — REBRA. Carioca. Mora em Brasília há mais de 40 anos. Uma filha e dois cachorros. Todos muito amados.
todo dia 16


11 comentários:

Levíssimo! Sua mão para a comédia é na medida.

Muito gostoso mesmo. Você usa o humor na dose certa. Adorei!

Hehehe,,, Que deleite de texto! A leitura flui suave, amena, contente. Meus aplausos!

Ops!; esperava mais: a reação.

Aí seria "A saga de Santinha no Paraíso — Partes I, II, III...X"

Kkkkkkk... Isso é que é amor! Muito bom! kkkkkkkkkkk...

Velhinha tão corajosa quanto a autora do texto! Um beijo e parabéns, Cinthia. Foi prazeroso lhe conhecer e escutar na Conferência do XI EIDE!
Fiquei com gosto de saudade: o tempo foi pouco para o muito que eu desejava ouvir. Beijo.
Ceres Marylise

(Gina Girão )
Há tempos não via um texto que usasse humor e humanidade com tanta coerência. Parabéns, Cinthia! Não é à toa que você recolhe louros por sua escrita.

Que linda essa Santinha!!!! Bjs

Maísa

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