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quarta-feira, 26 de março de 2014

MANJEDOURA

Amélia se emociona quando assiste, na TV, a qualquer reportagem de recém-nascido resgatado de lata de lixo. A criaturinha roxa de hipotermia, choro já estancado, enrolada em pano ralo, num canto putrefato, abandonada ao léu, sob os perigos da noite; e, de repente, algum ser caridoso que intercede por ela, trazendo-a de volta à tona da vida.

“Deixe de bobagem” — reclama o marido de Amélia. “Pare com essa aflição, que o fato não lhe diz respeito”. E a mulher continua em seu sofrer desgraçado, atenta ao repórter e aos mínimos detalhes até a história desfechar. Emotiva, essa Amélia. Adora início de história aparentemente triste que logo engrena em roupagem de final feliz. Ama o milagre. Acredita na iminência dele.


O homem não entende. Ninguém suspeita. Só Amélia sabe de si, de seu passado. Só Amélia se autoflagela no silêncio de uma culpa que arde pra nunca acabar. 


Não é pela falta de humanidade dos outros que ela sofre e chora. Nem por causa de mais uma criança deserdada. Trata-se de algo mais próximo e particular. O que a perturba é a semelhança daquelas histórias com sua própria vida. O abandono de bebê lhe aconteceu de forma muito privada. E ela não foi a vítima — como talvez você tenha imaginado —, mas o algoz. 


Tinha dezesseis precoces anos quando deixou ao deus-dará a criaturinha que acabara de dar à luz. Não deixou pistas. Mas, como em todos os casos de abandono de incapaz, a anônima foi apedrejada pela opinião pública. Só escapou de sumária execução porque não descobriram seu paradeiro.


Soube por um jornal que uma família decente havia acolhido a menina e lhe presenteado com nome e sobrenome. Mas desde então, sua vida é insônia, pesadelo e uma angústia que se renova. Corpo ileso e consciência pra lá de açoitada.


Sente ainda uma raiva doída por ser mulher. Uma mágoa, um despeito, um flagelo. Afinal, se fosse homem, não seria acusada, tampouco perseguida, porque nada resvala no varão. O pecado é exclusivo de Amélia, a fêmea irresponsável que, depois de se dar ao desfrute, descartou com facilidade o fruto.


Ninguém soube da gravidez. Amélia mesma só se convenceu de que iria parir quando da ausência completa do sangue mensal, poucos dias antes do nascimento da criança. Virara mocinha há tão pouco! Não parecia hora de se tornar mulher, nem muito menos mãe. Preferiu não contar o azar para o pai da criança — um mocinho de bigode ralo e voz encorpando com quem se encontrou meia vez para um coito sem graça, sem amor nem explicação. Não parecia justo que um ato tão carente de história pudesse gerar um bebê de verdade. A mãe de Amélia, sempre ocupada em assear e nutrir os quinhentos filhos menores, também não foi notificada. 


A natureza, então, se incumbiu de ajudar a mocinha a expelir a criança. E quando ainda fraca, após dolorosa paridura, Amélia se muniu de combustível reserva para se despojar da linda filha pequetita.
Antes de deixar o pacote de vida naquela via pouco movimentada, beijou muito a boneca que chorava e cheirou seu cabelinho, com intenção de eternidade. Quem poderia acreditar que a despedida lhe doeria mais que o parto, e sem esperança de cicatrização?


Mas o tempo corre e, além de agregar cicatriz, acaba rendendo algum prêmio. Redenção! Hoje Amélia tem família própria: dois meninos saudáveis e um marido bom que há pouco era também um bom marido. Conserva a beleza natural das mães amorosas e protetoras. Numa encenação da igreja, já se passou por Maria, a Mãe de Deus, e emocionou os fiéis.


E a vida — esse novelo de nós que se ligam para suster o sopro — de repente mostra a ponta! Amélia vibra com a manjedoura recém-montada ao lado de sua cama: será avó em breve e adotará a neta como filha.





MARIA AMÉLIA ELÓI, 40 anos, é brasiliense. Jornalista e mestre em Teoria da Literatura pela Universidade de Brasília, ela foi premiada em 2009 no III Concurso Literatura para Todos, do Ministério da Educação, com a obra Poesia Torta, no prelo. Em 2001, ganhou o Prêmio Nestlé/MEC pelo ensaio Idéias a Mais!: a crítica literária no JB e na Folha de S.Paulo no ano 2000. Seu livro de crônicas Um milagre para cada corcova deverá ser lançado ainda neste ano. Há nove anos, é servidora da Câmara dos Deputados.



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2 comentários:

essa da neta é final dispensável, mas gostei do desenrolar de escrita solta e sem rodriguinho

"...e cheirou muito seu cabelinho, com intenção de eternidade". Você não é fácil! Como é bom deslizar os olhos pela leitura desse texto tão bom, tão sem sobras. A tragédia toma a proporção que tem, sem exageros, sem julgamentos. Um segredo e a memória da dor. E a vida segue, um fardo dado a cada um.

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