Receba Samizdat em seu e-mail

Delivered by FeedBurner

quinta-feira, 6 de março de 2014

DESIDERATO




  E por quê? Ora!, como ela poderia saber? Ele parecia ser justamente aquilo que ela tinha pensado para o escritório. Seu perfil... Isso! Ele tinha preenchido o perfil desejado à contratação. Isso mesmo, uma simples compatibilização de perfis profissionais, como a velha subsunção do caso à norma. Ele era, pois, o caso subsumido. Ele era só isso.
  Mal tinha percebido que do alto de sua sala com vidros gigantescos que serviam de parede e persianas sempre abertas, no fito de observar meticulosamente o trabalho desenvolvido no escritório, tinha sua visão congelada numa só cadeira que girava de um lado para o outro, levando o ser que dela tinha posse temporária a fazer anotações nos papeis de uma mesa, a carregar os processos de outra, a girar como um louco enquanto tinha suas catarses jurídicas e suas sacadas brilhantes que destruíam os argumentos do adversário, fosse ele quem fosse.
  “Um moleque dos bons, um ótimo estagiário, tenha certeza, Dra. Helena”, lembra-se que ouviu alguém fazer propaganda depois de ter lido a redação que o moleque fez para ingresso no escritório, e, principalmente, depois de ver o menino destruir os argumentos mais complexos dos procuradores do Estado! “Um estagiário como outro qualquer..., senão vejamos!”, a resposta tórrida dela.
  Sempre tivera tudo sob controle, e, vale dizer, no controle. Desde quando tinha dado pra ficar se abestalhando com um estagiário?!
  Naquele dia, só o Amaury rompeu a divagação na qual estava submersa. Entrou na sala de supetão, falando no prazo fatal de um agravo de instrumento, tinham descoberto a decisão desfavorável tardiamente, o prazo em curso, e agora estavam naquela situação terrível, só poderia ter sido um estagiário! Algum estagiário daqueles, uns imbecis que só pensam em festas e em matar aulas! Mandou subir o rapaz.
  Entrou na sala levemente, após bater duas vezes – era demasiado educado, e isso a deixava, de certo modo, sem jeito. Questionou-o duramente na frente de Amaury que, malgrado tivesse apenas um ano de formado, já enveredava pelo gosto de humilhar os acadêmicos. Ele, sem recalcitrar, baixou os olhos um instante, reergueu com aquele jeito que só ele tinha, uns traquejos antes de falar e, quando abriu a boca, até o Amaury ficou um tanto balançado com aquela voz..., tinha uma voz de veludo o rapaz... O agravo estava pronto, feito por ele mesmo, todos os documentos sobre a mesa dele, só faltava a correção, a pequena petição de aviso e mandá-lo ao Tribunal.
  Na sala, um suspiro de alegria.
  Todos já haviam ido, inclusive Maximiliano, ou Max, o estagiário, mas ela continuava ali, na sua sala alta de vidros largos e persianas abertas..., em sua volta, pilhas de processos e placas de honra ao mérito oferecidas por no mínimo três Tribunais... Tudo aquilo, toda a pompa de sua biblioteca ao redor, todos os tratados jus filosóficos dos maiores doutrinadores do Direito era nada, poeira, pó, flatus vocis. Nada lhe fazia parar de pensar no Max...
  O rapaz tinha o olhar penetrante... Profundo... Seus olhos cor de mel tomavam-na de repente, envolviam-na magicamente... Uma vez parou pra observar as mãos do rapaz, enquanto ele carregava uns processos de sua sala para o arquivo, como um burro de carga... Eram mãos viris, largas, grandes, e ela sentia um malestar, como se pensasse no que aquelas mãos pudessem fazer...      A voz então!, quando o moleque abria a boca pra falar, todos os pequenos pelos de suas coxas se arrepiavam e ela se entronchava na cadeira, como que buscando melhor posição, ou então fechava seus joelhos um no outro como se intentasse tapar a visão do paraíso de quem estivesse na frente, mas, na verdade, sentia-se entortar-se inteira. Maximiliano era um entortador de vigas, e fazia tudo isso com a voz e o olhar...
  – Por que isso, Helena?! Ande, me diga! Já são duas semanas que não temos absolutamente nada! Não acredite que tenho o rabo preso porque é bem sucedida! Sou mais, você bem sabe! Não pense que pode me manipular, Helena! Ande, diga-me! O que há? Se continuarmos assim anularei a porcaria desse casamento na diocese!
    Hector sibilava furioso, embravecido, sabença que ele tinha de que ela se ausentava todas as noites quando se deitavam por alguma razão, qualquer que fosse...
  É que Hector já era um homem de meia idade, um advogado igualmente bem sucedido, endinheirado, devoto da virgem, branco, alto, um dos herdeiros de um dos maiores espólios de Recife... Ou seja, Hector não tinha graça! Não para aqueles dias porque passava... Todo o dinheiro, boas relações, até mesmo o cargo importante na Ordem dos Advogados..., nada disso apequenava a voz de Maximiliano, nem menos ainda o seu olhar...
  Maximiliano lhe parecia um Aquiles sem calcanhar, e cada vez mais que pensava no jovem estagiário de pouco mais de vinte anos, perdia-se em delírios, em nefastos delírios, loucos, pungentes, intensos, até aquele dia em que assim, sozinha, altas horas da noite, na sala alta do escritório de advocacia, encostou um joelho no outro e sentiu uma excitação sem igual... Apenas a memória do rapaz, de seu “boa noite, doutora! Bom final de semana!”... Como poderia ficar o final de semana inteiro sem Maximiliano? Como poderia?
  Foi aí que teve aquela ideia...
 Bem, pela primeira vez em toda a vida estava sendo ela mesma, sem nenhuma mensuração de consequências ou pesar, ou qualquer dessas coisas que nos podam. Estava enlarguecendo suas raízes como o poderoso Baobá da Praça da República... Mas isso lhe custaria um preço... Tudo nos custa algum preço e a gente não vive bem se, nem que seja apenas às vezes, pagá-lo.
  No plantão judiciário, escalado para auxiliá-la em pleno sábado das oito às dez da noite, ninguém menos que o jovem Maximiliano. Todos, relinchando, saíram azougados naquela sexta-feira, contentes por não terem sido escalados. Mas ora!, e apenas o Maximiliano?
  Hector ligou o carro e arrancou violentamente quase derrubando os portões do casarão em Apipucos, que o porteiro velho abria lentamente. Pôs-se a caminho freneticamente, como um louco, quase tendo sido ele o destruidor, numa curva apertada, em altíssima velocidade, da Estação de Ponte d’Uchoa. Estacionou esbaforido, com a cara toda suada, desceu do carro.
  Subiu as escadas. Abriu as portas. Arrombou a porta da sala alta.
  As largas mãos de Max percorriam o corpo semi-desnudo da doutora Helena...
  Num susto voraz Helena berrou mais alto que a mulher de Potifar.
  – O que este rábula dos infernos está fazendo, Helena?
  – Hector, meu amor... Meu Deus! Não sei, querido, não sei! Eu estava tão cansada, tão estressada com os processos, daí ele veio...
  – Doutora, pelo amor de Deus..., sabe que não foi assim, eu...
  – Cale a boca seu filho da mãe! Cale-se ante ao marido ultrajado!
  – Hector, meu bem... Não se deixe levar pelas aparências, como pode esse moleque substituí-lo de algum modo?
  – Não pode! Não tem poder pra isso!
  – Ele se aproveitou de mim, querido...
  – Doutora... Doutor...
  – Saia daqui, infame! Espere lá fora!
  Maximiliano, sentado, com as mãos na cabeça, observava diminuir seu membro enquanto dos olhos insistia por sair algum filete de lágrima.
  – E por quê?
  – Ora!, como eu poderia saber? Ele parecia ser justamente aquilo que eu imaginava para o escritório. Seu perfil... Isso! Ele tinha preenchido o perfil desejado à contratação. Isso mesmo, uma simples compatibilização de perfis profissionais, querido, como a velha subsunção do caso à norma. Ele era, pois, o caso subsumido. Ele era só isso. Eu não poderia imaginar que fosse ficar assim, apaixonado por mim, tão avassaladoramente, tão intensamente... Como eu podia imaginar?!
  – Helena eu te digo uma coisa, não mato esse moleque desgraçado porque não posso manchar minha reputação! Um processo agora seria um cão dos diabos, mas te digo, esse miserável nunca é que haverá de ser alguma coisa no mundo jurídico! Nem que eu tenha que erguer Thêmis de seu leito de morte!
  Em seu rosto toda a maquiagem anteriormente preparada era um só borrão, o borrão e a face da esposa igualmente ultrajada. Um ultraje! Sim, que o rapaz fosse podado, ou melhor, arrancado logo do meio deles... Ora, não era culpa dele, pobre coitado, tadinho, mas algo precisava ser feito, urgentemente e energicamente... Toda a cidade logo saberia, cada escritório de advocacia, cada vara de Justiça, cada gabinete de Tribunal..., como poderia aliar isso ao nome deles? Pois bem, ele tinha de pagar.
  Da sala alta de largos vidros e persianas abertas ainda contemplou os berros de Hector, até mesmo uns murros que o pobre Max, resignado, recebeu já que contra um patrão, um chefe, um exímio advogado, não se devia revidar, apenas calar-se, derribar umas lágrimas...
  Naquele momento teve certeza de que tudo aquilo precisava ser feito. É que, embora todo o estardalhaço e o embaraço em que se viu, não conseguia pensar em mais nada, ali, desalinhada, recostada nos largos vidros que serviam de parede da larga sala, o peito palpitando, coração a mil, não conseguia parar de pensar no modo angelical e excitante como Maximiliano chorava...

Share




0 comentários:

Postar um comentário