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segunda-feira, 17 de março de 2014

Dez perguntas para Maria Giulia Pinheiro

1 – Para começar, quem é Maria Giulia Pinheiro?
Começamos difíceis! Risos. Acho que estou perto demais de mim e que me movimento o suficiente para não conseguir fechar os contornos e ver as formas... o mal da juventude. Se for doença do tipo que o tempo cura, um dia eu respondo! Risos.

2 – Por onde sua poesia anda?
Venho do teatro. Talvez, por isso, pra mim, a poesia é também materialidade. Mas, no caso específico da poesia, materialização abstrata do fluxo da vida, um atrito gentil entre som e sentido na construção de mistério e silêncio. O que é mais radical no que estou buscando como estética, é a ideia de literatura como sangue e carne - jamais como osso. A ironia é ser, de longe, o João Cabral de Melo Neto o meu poeta predileto. Mas passo muito por Drummond, por Bandeira, Mario de Andrade, Pagu, e o modernismo como um todo, Cassiano Ricardo, Murilo Mendes, Cecília Meireles... Para ser sincera, acho que meu caminho é um pouco o histórico, mas não cronologicamente. Risos. Quando eu era mais nova, lia bastante os clássicos. Tive minha fase Homero, inclusive, há uns quatro anos, de extrema paixão pela Odisseia. Depois uma fase que queria tatuar Camões por todo o corpo... Passo por fases e paixões com os escritos dos escritores, fico querendo engolir tudo, dormir com os textos. E aí, neste momento da obsessão, me alimento profundamente do outro e minha poesia passa a passar por ali...
Há uns dois anos, mais ou menos, me deparei com uma cena de poetas contemporâneos maravilhosos e sedentos. E aí percebi o óbvio (que eu, juro, não sabia): é tão possível quanto potente trocar com pessoas vivas, em movimento, a serem tão transformadas quanto a gente mesmo. Parece uma besteira – ainda mais porque acabei de contar que venho do teatro - mas a gente é tão treinado pela escola e pela academia e pela cultura a achar que só tem que criar sozinho e, no máximo, ouvir os livros (e, ainda por cima, no caso da música ou do cinema, os estrangeiros)... isso sim que é besteira. Um dos meus maiores aprendizados recentes foi o de notar que meus heróis estavam também ao meu redor. Isso, quando aterrei, humanizou até quem estava distante. Aí você consegue ver um deus, como Pessoa, por exemplo, como um universo, com suas contradições e visões de mundo, seus movimentos, fragilidades, forças e até genialidade, mas não em um pedestal.
O Facebook é um facilitador e tanto para conhecer o trabalho dos poetas contemporâneos. Vira e mexe alguém propõe conversa. Isso não é muito massa? Claro, claro, tem as suas sombras também. Mas, no saldo, é positivo. Porque tem diálogo e isso é o que pode mudar o mundo. Dá pra conhecer e trocar com poetas em eventos como os Saraus, os Slams (ZAP! e o Menor do Mundo são os que frequento, por enquanto), os próprios lançamentos de livros (vou sempre nos da Patuá, editora-amiga-querida com boa literatura e cerveja garantida), os eventos no Clube Literário Hussardos (onde, em dois meses aberto, já conheci pessoas e projetos interessantíssimos, a ponto de querer estar sempre por lá), as noites na Brisália (casa de escritores-amigos-queridos, onde a conversa é sempre uma inspiração)... enfim, as ruas são ótimos lugares para encontrar bons poetas. Aliás, bons Artistas. Minha poesia anda pelas ruas.
Fora as referências na literatura, sou brasileira e não posso dizer que a música não me influencia muito. Influencia. Muito. A música brasileira, do cacuriá ao Chico, passando por Axé e Vila Lobos, são bases importantíssimas para a minha criação. No atrito entre radicais opostos, sai faísca. Comecei a aprender violoncelo para uma peça e, neste processo, me apaixonei por música clássica, entendendo não a chatice e o pedantismo que podem existir ao redor dela, mas a potencialidade de criar sensações que só a música tem. As artes plásticas também têm influencia enorme no que penso e crio. Ou seja, a minha influência é contemplar, seja o que for, engolir, digerir e criar. Como na vida. Risos.
Mas acho engraçado pensar que, quando me perguntam influencias na dramaturgia, a primeira resposta que me vem à mente é “Eu venho da poesia...”. O fluxo de materialidades que o teatro e a poesia propõem, apesar de serem totalmente distintos (para mim, teatro é carne, poesia é sangue), são profundamente complementares. Uma influencia enorme minha é o Artaud. A ruptura na linha entre linguagem e vida, entre poesia e ação, entre arte e experiência. Acredito profundamente nisto. Estou escrevendo meu segundo manifesto artístico – que é um texto para tentar me entender no que penso/sinto/quero, nada mais - e, nele, há um trecho assim: “Palavra que é carne, que, se fundo, jorra sangue. Não osso, carne. Palavra feita de fragilidades e de sagrado. Literatura que é Deus, porque dança, como Deus. Um Deus que é Amor, porque não morre e está entre nós, dançando. Poesia que é ritmo, como o peito é. É forma, como o peito é. É volume, textura e dor, como o peito é. Som e sentido. Amar para não morrer, amor a deus, um deus visto em você, na calçada. Dramaturgia que habita o corpo que dança o corpo. Texto que terra.  Que pisa o mesmo chão que eu e mostra onde estou. Que desce, às vezes, à posição fetal e sobe sambando e olha o céu. Literatura de transgredir o erotismo. Não só ir além do movimento fatal, mas feder e continuar vivo. Estética da luz na sombra do belo. Estética de abrir espaços entre as costelas.”
Acho que, até que mude de ideia, é por aí que ando.

3 – Quais as dificuldades de escrever poesia, literatura, hoje?
A princípio, quatro. Um: dinheiro. Mas esta é, provavelmente, a mesma dificuldade há anos. Dois: a contradição entre a vontade/necessidade de ser radical nas propostas estéticas versus a necessidade/vontade de comunicação com pessoas cada vez menos dispostas a cultivar o espírito. Lê-se mais e pior, é a impressão que tenho. A vulgarização da criticidade, a falta de disponibilidade para cuidar constantemente da própria sensibilidade e o excesso de violência, racionalização e informação no qual estamos submetidos acaba criando uma massa de seres um tanto quanto superficiais e duros. Além de indispostos. Ao mesmo tempo, há carência, demanda por espaços interiores que a poesia regenera. Então, esta segunda dificuldade é, também, extremamente motivadora: como acessar - mais do que comunicar - como acessar cada ser?
Três: escrever sem ser “uma mulher que escreve”. Criar sem ser “uma mulher que cria”. Virginia Woolf, em Um Teto Todo Seu, torce para que, em cem anos após aquela conferência, ou seja, em um 2028 longínquo para ela, a irmã de Shakespeare possa criar livremente. Mas esta irmã não poderia ainda. As amarras ganharam novas formas, tão cruéis quanto as passadas.
A quarta é uma enorme. Todo o discurso do Ruffato em Frankfurt. Acho que ele colocou questões essenciais. Escrever é compromisso, é a necessidade de existir na própria singularidade enquanto exerce a compreensão do outro, enquanto contempla a alteridade. E nunca, nunca, apagar a história como ela foi, nas suas violências, contradições e riscos. Tudo isso para SER. Ter identidade, forma, força dentro de si. Estar no Brasil do século XXI, ser uma mulher branca de classe média no Brasil do século XXI, tem responsabilidades que não podem ser transpostas impunimente. Eu também acredito no papel transformador da literatura, como ele. E acho que o triunfo da arte é libertar, é descontruir. Como ser humano. É encontrar o eu-outro e poder sentir amor pelo mistério entre nós e pelo absoluto vazio barulhento que está dentro de nós. Isto é a beleza. Mas este processo de libertação mutua não pode, jamais, ser inocente e apagar as contradições, lutas, lutos, mistérios, riscos e dor. São 5000 anos de força feminina reprimida. Eu não posso esquecer isso enquanto escrevo mas, como bem disse a Virginia Woolf neste mesmo texto que citei, também não posso me lembrar apenas disso...

4 – Pergunta indigesta: como é seu processo criativo?
Quando dou sorte, começa com uma frase sussurrada por alguma musa passageira, passa ao desespero de escrever como se alguém ditasse e termina no banho. Geralmente, é assim com poesia. Quando é dramaturgia ou prosa ou teoria (que acredito ser também um ato criativo), são horas em frente a uma tela em branco em desespero, sabendo que eu preciso fazer isso e não conseguindo e entrando no Facebook de 5 em 5 minutos enquanto me arrependo e sofro e mando mensagem e choro. Uma dureza. Existe um momento em que consigo focar. E aí é só isso que importa e as frases saem de mim.  No fim, banho. Sempre resolve.
Quanto mais atarefada estou, mais produzo. Mas também, quanto mais atarefada estou, mais a ansiedade me consome. Deve ser por isso que faço tanta questão de trabalhar em 8000 projetos simultâneos, porque prefiro a ansiedade à angustia. E a ansiedade tem um remédio infalível: os outros. Conversar sobre uma história ou sobre diretrizes, falar falar falar, trocar trocar trocar, perguntar perguntar perguntar. Jogar ar nas questões para que a criatividade se movimente. A arte é viva. E nisso eu dou bastante sorte. Tenho parceiras incríveis para criação. Tanto meu grupo de teatro, Companhia e Fúria, onde tenho o prazer de trocar com três artistas que me transformam diariamente, quanto com as minhas parcerias na escritura de roteiros e projetos, quanto muitas outras parcerias criativas que já tive e tenho e que agradeço muito pelo processo... Acho que isso é regra: quando o grupo é bom e disposto, a coisa sai.
E, depois, a solidão, esta paz. O trabalho de confrontar-se com o que ficou consigo e o que vai pra tela em branco.

5 – Seus poemas tem algo de existencial. Existencialismo tem hora, limite?
Não. Morro de preguiça e inveja de gente que consegue ver futebol de domingo. Preguiça de quem não vê mais do que o futebol, inveja da paixão. Sinto tristeza na hora errada, ciúme de quem não conheço, alegria em desgraça. Se vamos nos divertir, quero que seja dionisíaco. Entendo muito pouco de diversão passiva, sem entrega. Acredito profundamente na morte. Lembrar o fim é como poder recriar o tempo. É ir contra todo o sistema sofrer, se apaixonar, é ir contra todo o sistema se relacionar verdadeiramente com as pessoas e com as ideias e com a arte, este inutilidade. É ir contra tudo ser intensa, entregar-se verdadeiramente ao risco de viver, desapegar-se até da vida e, principalmente, ter o poder de indignar-se e agir. Acho que esta é minha maior ação política. Não aceitar este autoritarismo que vivemos que nos obriga a fingir que somos todos idiotas contentes. Eu entendo o ridículo disso tudo, mas me recuso a ser passiva diante da dor. Enfrentar a dor, transgredir o erotismo, que é essa pulsão vital que desorganiza absolutamente todos os nossos órgãos na tentativa de movimentar-se, que reclama nossa atenção, é nisso que eu quero fincar o meu pé. No desequilíbrio de forças que faz com que um dançarino nunca caia, por mais que esteja no chão. Claro que há humor nisso. Há muito humor, inclusive. Há até a leveza inevitável de quem nasceu no auge pop dos anos 90, depois das duas guerras, da guerra fria, da ditadura e durante a impressão de que tudo é máscara. Acho que vivemos o tempo menos inocente e, concomitante, mais leviano de todos. Acho também que o humor é destruidor e é no caminho dele que busco a liberdade. Porque ele tira o chão e nos faz caminhar no que fica. Então, a identidade é criada numa base que oscila, mas nunca cai.
O comezinho, o medíocre, me tira do sério. Não entendo como alguém pode, diante do mistério, procurar certezas ou distrações ou simplesmente aceitar e esquecer. Acho que Deus está entre nós, querendo dançar conosco, entre nós, e não buscar o sagrado é passar pela vida sem pisar no chão dela. Política, enquanto jogo de relações, não me interessa. Política enquanto vontades conflitantes buscando os limites éticos para existir em plenitude, me alimenta. Não há separação possível entre o discurso e a prática. E isto tem que estar em tudo, até no futebol, por isso digo que, sim, boa parte das minhas poesias tem algo de existencial e, não, não há limites para o contemplar da existência. O que eu quero dizer com este “futebol de domingo” é uma distração inerte, sem transformação. E que pode ser futebol ou literatura ou teatro ou cinema... Este tipo de relação com a vida me cansa enormemente.

6 – Rilke fez a seguinte pergunta no seu livro Cartas a um jovem poeta: morreria, se lhe fosse vedada escrever?
Não sei se morreria, mas honestamente não teria muita razão pra viver. Tenho escrito na parede do meu quarto a frase de Flaubert: “A única maneira de suportar a existência é refugiar-se na literatura como numa orgia perpétua.”. Acredito tanto na orgia perpétua quanto na literatura. As duas são essenciais e complementares.

7 – Existe diferença entre a poesia escrita por um homem e por uma mulher?
Ser mulher na arte não é uma questão de gênero. A minha pesquisa estética tem sido ligada a busca da pulsão criativa feminina, mas eu entendo a energia criativa feminina como uma manifestação, uma lógica, que foi sufocada por outra lógica, a do patriarcado. Isso não tem absolutamente nada a ver com o ser humano ter ou não ter um órgão sexual aparente. Tem a ver com a capacidade de desmontar padrões impostos e com a criação de fluxos diferentes das formas que reafirmam os valores patriarcais. Vide Joyce. Ele é uma das mulheres mais geniais que já li. Tanto que escrevi depois de lê-lo um texto chamado “Carta à Joyce”, assim, com crase *. 
Ou seja, não há diferença entre textos escritos por homens ou mulheres. Há diferenças entre propostas artísticas. No meu caso, busco um processo radical de identificação numa linguagem. Da Poeta ao Inevitável, o meu primeiro livro de poesias, é consolidação desta primeira parte da minha pesquisa estética. Coordenei durante o ano de 2013 um grupo de pesquisas ligado a esta minha busca. Dele saiu o último caderno do livro, chamado “Seis deusas”. São seis poemas em que cada um deles tem como eu-lírico uma das seis do Olimpo (Hera, Afrodite, Artêmis, Atena, Perséfone e Deméter). O meu objetivo com isso é a criação de imaginários ditos “femininos”. De novo, uso aqui “feminino” mas não tem a ver, necessariamente, com mulher.
Escrevi também, em outubro de 2012, o meu primeiro manifesto artístico, chamado Por um imaginário *  em que explico melhor a minha pesquisa estética de pulsões femininas.  Me incomoda muito o uso deste termo, “feminina”. Uso por não ter encontrado um melhor. Acontece que associamos, por um processo de dominação histórico longuíssimo, o que não é racional-aristotélico ao universo feminino. E isso é extremamente redutor. Quantas lógicas/energias estão por aí querendo se manifestar e acabam sem expressão?

8 – O amor ajuda ou atrapalha na hora de escrever?
O que afeta inspira. É profundamente mais divertido e potente escrever com paixão. Aliás, só é possível, a mim, escrever se for com paixão. “Pathos”. Mas a verdade é que pouco importa se a paixão é por alguém ou não. Adoro quando dizem que a minha poesia é “sincera” ou que “escrevo para me entender”. Mas, na maioria das vezes, é um grande fingimento (sincero) o que escrevo. São emoções e sentimentos que passam por mim e, enquanto estão em mim, eu os acredito e os sinto da forma mais profunda e intensa que um ser humano pode se entregar a algo. Mas essas emoções e sentimentos, no fundo, acho, não me pertencem. Eu sou apenas o canal deles. No momento em que é necessário surgir em mim a função fria da literatura, a parte artesanal, eu já não sinto mais nada.  É um processo, em certo sentido, sagrado, de entrar em comunhão com algo maior. Eu escrevo muito sobre o amor. Talvez, meu Deus seja ele e, se sim, pouco importa o rosto que ele toma...

9 – Você está sempre escrevendo ou tem mais o que fazer?
Qualquer dia eu morro de caneta na mão, neném.

10 – Para terminar, gostaria de dizer algo?
Eu minto muito.


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Rafael F. Carvalho
Autor do livro A Estante Deslocada, é paulistano, nascido em 27 de Fevereiro de 1978. Foi publicado em antologias de novos escritores e em jornais universitários, e é formado em Letras pela Universidade de São Paulo.


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