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quarta-feira, 10 de outubro de 2012

O que há no silêncio


Henry Alfred Bugalho


Você sempre sonhou em desfrutar da Dolce Vita, como num filme de Fellini.

Compra uma passagem para a Itália, pede licença sem vencimento no trabalho e arruma as malas. Morar nos grandes destinos turísticos está fora do seu orçamento. Em Roma, Milão, Veneza e Florença suas economias morrerão no aluguel.

Num mapa da bota italiana, escolhe uma cidade central: Perúgia, no coração verde do país. Pouco sabe sobre ela, exceto que se trata de uma importante cidade universitária. Já se imagina em meio a uma multidão de jovens europeus, entre espanholas calientes e ucranianas belíssimas. Vai aprender italiano, mas também escutará idiomas que nem imaginava existir.

O primeiro contato é encantador. Você não consegue cogitar uma melhor escolha. Pelas estreitas ruas do centro histórico, você se perde e se deslumbra. Retorna no tempo, ao século XII, o apogeu daquela cidadela fortificada. Cada esquina é um encontro de épocas, a porta é dos etruscos, parte dos muros dos romanos, a fonte medieval, alguns prédios do renascimento e outros da unificação. Camadas de História sobre camadas de História.

Seu apartamento tem uma belíssima vista das colinas e montanhas da Úmbria. Sobre um dos montes, um castelinho em ruínas. Você nunca viu nada parecido. Está feliz, realizando seus maiores anseios.
É no segundo mês que você começa a escutar os ruídos do andar acima. Passos. Móveis arrastando. Passos. Alguém mijando. Passos. Conversas e risos. Passos. Passos. Passos. Passos. Dia e noite. Dia e noite. Dia e noite. Passos.

Quantas pessoas moram aqui em cima? Você pergunta ao proprietário do seu apartamento.
Estava desocupado. Ele responde.

E os passos prosseguem pelos dias seguintes. Você dorme mal, não consegue se concentrar, seu coração está disparado. Uma e meia da manhã. Passos. Coisas caindo. E você com os olhos escancarados fitando o teto branco.

Vão dormir, seus filhos da puta! Você grita, dando vassouradas para cima. Os ruídos cessam por vinte e sete segundos, para recomeçarem com igual intensidade. Você caminha de um lado ao outro da casa, procurando um cômodo mais silencioso. Com as cobertas em mãos, muda-se para o sofá da sala, mas, às sete da manhã, os ruídos seguem-no até lá. Passos. Passos. Passos. E também passos na escada do corredor. Gente que sobe e desce. Sobe e desce. Sobe e desce. Dia e noite. Dia e noite. Passos. Passos. Passos.

Você espia pelo olho mágico. Chineses vem e vão. Quantos moram aqui em cima? Você se indaga, mas não tem como calcular. Todos se parecem. Vestem-se iguais, os mesmos óculos de aro preto, os mesmos cortes de cabelo, o mesmo jeito de andar. Passos.

É neste ponto que você começa a perceber que eles estão em todos os lugares, por toda a cidade. Há chineses na pizzaria, no mercado, na padaria, no açougue. Todos iguais, todos poderiam estar morando no andar acima ao seu.

Você mal vê italianos, tampouco espanholas ou ucranianas. Só há chineses, e marroquinos, tunisianos e albaneses. E todos têm péssimas reputações. Ninguém vai à Itália para conviver com chineses. Para isto, você viajaria a Xangai, a Pequim, ou a Hong Kong. Você não é racista, durante um período de deslumbramento pelo Japão, saiu com duas ou três sanseis da comunidade nipônica de sua cidade, inclusive, em sua opinião, orgasmo de ocidental alguma se assemelha ao gemido tímido e choroso, quase o de um bebê clamando pelo pai, das orientais. Não importa se é chinês, árabe ou caucasiano, o que você valoriza é o bom senso. Porém, bom senso é uma abstração, mais ou menos como liberdade e amor. Todos pensam que sabem muito bem do que se trata, mas, na hora de explicar ou exemplificar, faltam as palavras. Para você, bom senso é deixar os outros descansarem à noite, você que é uma pessoa que nem dá descarga de madrugada com receio de despertar os vizinhos.

Numa das noites, você sobe e bate à porta dos chineses. Uma. Duas. Três vezes. Mas ninguém abre, tudo sepultado num silêncio absurdo. Você escuta passos o tempo todo, mas, quando sobe para tirar satisfações, não há um único homem para abrir a porta?

Os passos continuam assim que você volta a seu quarto. Passos e mais passos. Móveis sendo arrastados. Tosses e risadas. Se houvesse um machado à mão, você arrebentaria aquela porta, enfiando a cabeça pela fenda aberta, olhar ensandecido, exatamente como Jack Nicholson em O Iluminado. Seria uma carnificina e, naquele momento, você agradece por não ter uma arma em casa.

Você chama a polícia. Espera. Espera. Espera. Os passos sobre sua cabeça, os móveis sendo arrastados, os risos e conversas. A polícia não vem, como você já imaginava. Será que existe algum lugar no mundo em que a polícia aparece por causa de reclamações de barulho? Você se indaga, pois lá deve ser o paraíso.

Noites sem dormir. Noites sem descanso. Você toma uma decisão. Se há um ditado com o qual nunca concordou é “os incomodados que se mudem”, mas não há solução. Num mundo ideal, os inconvenientes é que deveriam ir embora, ou serem escorraçados. No mundo real, os incomodados se mudam.

O que mais resta fazer?

Você pega sua malinha e encontra um casebre no interior da Toscana, cercado por girassóis e cento e cinquenta oliveiras. O vizinho mais próximo vive a quinze quilômetros. Nenhum chinês por perto, nenhum som de passos a não ser dos seus.

Numa ida à cidade, você avista a manchete numa banca de jornal: “Desmantelada fábrica clandestina de bolsas”. Há uma foto do seu prédio na Perúgia. No andar acima ao seu, moravam quinze imigrantes semi-escravos que trabalhavam dia e noite, costurando bolsas Louis Vuitton, Gucci, Prada, D&G e Fendi genuinamente falsificadas. As mesmas bolsas que os tunisianos e marroquinos vendiam nas proximidades da estação ou nas ruelas secundárias.

Oprime-o uma pontada de pena por aquelas pessoas que haviam viajado de tão longe por uma vida melhor e que recaíram num trabalho de exploração. Mas a pena logo passa. Você se lembra dos passos. Passos. Passos e mais passos.

No seu casebre rural, você ouve somente o cantar dos grilos e das cigarras, e do galo a cocoricar bem na janela do seu quarto às cinco da manhã, mas tudo isto pertence ao cenário, integra e harmoniza com o ambiente. É o inevitável, assim como os chineses da Perúgia.

O silêncio não tem preço. Você conclui, observando o sol se pôr atrás do olival. A paz é inestimável.



Henry Alfred Bugalho
Formado em Filosofia pela UFPR, com ênfase em Estética. Especialista em Literatura e História. Autor dos romances “O Canto do Peregrino” (Editora Com-Arte/USP), "O Covil dos Inocentes", "O Rei dos Judeus", da novela "O Homem Pós-Histórico", e de duas coletâneas de contos. Editor da Revista SAMIZDAT e fundador da Oficina Editora. Autor do livro best-selling “Guia Nova York para Mãos-de-Vaca”, cidade na qual morou por 4 anos. Está baseado, atualmente, na Itália, com sua esposa Denise e Bia, sua cachorrinha.

http://www.henrybugalho.com/

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6 comentários:

de facto, caro Henry´, ler um bom naco de literatura tem pouco a ver com desfecho, mas se ainda mais ele existe, bem desse jeito eu quase acho que é graça dos deuses ter começado assim meu dia :)

Este comentário foi removido pelo autor.

O texto é bem bom! A história não tem nada de mais, mas o desenvolvimento é muito saboroso.

Eu ri muito, porque você tinha me falado das chinesas de salto alto no seu prédio. Ficção à parte (ou também não é ficção os escravos descobertos no andar de cima?), me parece que o restante é bem real. Pobre Henry que gosta de silencio! Já eu, durmo até com a banda da Escola Naval tocando! Seria péssima testemunha para a polícia italiana!
Gostei muito da narrativa.

O conto foi escrito com a trilha sonora dos vizinhos sapateando sobre minha cabeça, Cinthia.

A fábrica de bolsas não existe, até onde eu saiba, apesar de ter descoberto posteriormente à escrita do conto que, antes destes moradores, havia uma quadrilha de marroquinos distribuidores de cocaína no apartamento acima. Isto porque é um prédio tranquilo, numa região residencial familiar.

É, sem dúvida, ficção, apesar da hedionda inspiração real. Ou escrevo contos, ou subo com querosene e incendeio todo o andar de cima...

Obrigado a todos pela leitura.

Excelente texto! Prende o leitor do início ao fim. E a informação do proprietário, de que o apartamento estava desocupado, cria um certo suspense que se esclarece no final. Criativo e mto bem escrito. Parabéns!

A propósito, um chinês acaba de ganhar o Nobel de literatura! (rs)

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