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sábado, 17 de maio de 2008

Pecado e tentação

(fonte: http://farm2.static.flickr.com/1368/1460911385_2b4efa748a.jpg?v=0)

Florencia Abbate
Tradução: Henry Alfred Bugalho

Quando tocar-se está proibido

A vulnerabilidade da pele gerou, ao longo da história, um volumoso caudal de conselhos para se evitar problemas. Assim, por exemplo, o bispo Francisco de Sales – tencionando resguardar os divinos preceitos do dogma de excessos epidérmicos - sustentou que os corpos humanos se parecem com cristais: “Não podem ser transportados juntos porque, ao se tocarem um com o outro, correm o perigo de se quebrarem". Durante a Antigüidade, Aristóteles havia se ocupado de recomendar temperança e respeito: “O exato ponto médio em relação a todos os prazeres do corpo". No entanto, esclarecia que, dos cinco sentidos, o único realmente preocupante é o tato. Não acreditou exagerado afirmar que o homem se rebaixa a animal se se abandona sem reflexão aos gozos da pele. O cauteloso Sócrates falava do risco de se fazer acompanhar por um belo jovem, “aranha venenosa, cujos beijos reduzem a escravo quem os recebe”; o poder da pele é tal, ele acreditava, que pode chegar a nos transformar em seres “sem vontade, nem senso crítico". Piscadelas sobre a bochecha, um roçar de lábios gelados, mordiscadas ou a inquietante sutileza de dois esquimós que friccionam, rapidamente, os narizes; como controlar todos estes atos, gestos, contatos que integram o infindo catálogo de experiências táteis? Opulento cenário, a pele se apresenta como uma incontestável evidência da força e da fragilidade de milhões de corpos lançados ao caos: Chocar-se, afetar-se...

Marcas sagradas

Agora, imaginemos um lugar rigorosamente projetado para que a pele não experimente intensidade alguma. Estamos no século XVII, e o convento de São Gerônimo ocupa uma mansão inteira. Trata-se duma imponente fortaleza murada, no meio da cidade. Fora, respira-se o ar; dentro, estrita clausura. Nenhum homem tem acesso ao interior — nem bispos, nem jardineiros, nem nobres, nem inquisidores. O acesso havia sido vedado até aos costureiros das monjas, que se vêem obrigados a lhes tomar as medidas para os hábitos olhando-as desde a portaria. O sacerdote lhes dá a comunhão através duma pequena janela, donde só aparecem suas bocas abertas. Quando uma delas pergunta se é pecado subir ao telhado e vislumbrar a rua – deixando assim parte do corpo dentro e outra parte fora – lhes responde que não, a não ser que incorra no erro de falar com um vizinho.

Afastadas da agitação urbana, cercadas por véus e vestidos ásperos, as esposas de Cristo eram condenadas a aplacar a sensibilidade da pele como se se tratasse dum estigma. Em 1670, havia 87 monjas gerônimas com um exército de mais de 200 serviçais e escravas. Não por acaso, as lacaias, índias ou mulatas, se chamavam “mães de amor”. Entre outras coisas, essas mulheres – que entravam e saiam do convento e para quem pele com pele não era acompanhada por remorsos lutuosos – costumavam ser as encarregadas de dar banho nas irmãs. Suavemente, elas as introduziam na mornidão da água perfumada com ervas e ensaboavam seus corpos, não sem se deterem a acariciar com pérfida ternura zonas muito suscetíveis. Durante estes banhos, as monjas deixavam de ser monjas e se metamorfoseavam em damas de belos seios, desejáveis coxas e guaridas cheias de surpresas. Fontes da época relatam que, numa ocasião, a madre superiora, para fechar o rito com chave de ouro, ousou solicitar a uma criada que a golpeasse até que um líquido opaco escorresse por entre suas pernas.

De todo modo, o caso de maior repercussão não foi este, e sim o da irmã Tomasina, que, desde menina, havia sofrido todo tipo de padecimentos devido a sua incrível beleza. Sua mãe sentiu inveja ao descobrir, precocemente, os sedutores dotes de sua filha e optou por encerrá-la num obscuro monastério. Ela conseguiu fugir e se casou com um senhor cuja riqueza merecia ser equiparada, em magnitude, a seu ciúmes: ao morrer, dom Franciso Pimentel deixou à viúva uma grande herança, mas estipulou que ela só poderia recebê-la com a condição de se tornar monja. Quando a abastada Tomasina chegou ao convento, soube que, desde algum tempo, as esposas de Cristo se diziam consternadas com a visita do fantasma dum clérigo ao lugar: Parece que ele surgia diante das mais bonitas e lhes pedia que orassem para que ele pudesse escapar do purgatório. Certa noite, Tomasina dormia em sua cela e, subitamente, o cavaleiro espectral se materializou diante de seus olhos. Sussurrou-lhe ao ouvido seu pedido e, por ela ter se recusado, impelido pelo desespero, ele a tomou bruscamente nos braços. Tomasina lançou um agudo grito de dor e êxtase, uma obscura e imediata resposta de exasperada violência, o som duma ensurdecedora defloração erótica, ou da queda num profundo abismo místico.

Ocupemo-nos, por um momento, em apresentar o que as demais monjas, que vieram apressadas e, sem dúvida, aterrorizadas, descobriram ao ver a até então imaculada pele do braço de sua companheira: a impressão dos dedos do clérigo havia ficado marcada a fogo em sua epiderme. E por esta inapelável prova de gozo absoluto e abjeto, Tomasina considerou que devia pagar com sofrimento: seus autoflagelos foram desde deitar-se vestida sobre tábuas até cobrir seu corpo com cilício, ou pôr nos sapatos pedras e cravos.

Como desconheciam a sensação duma pele masculina fundida na própria, suas companheiras nunca conseguiram explicar o porquê de, a partir daquele dia, o braço de Tomasina ficou paralisado. Mesmo que concordemos que isto não foi um milagre, e sim o resultado duma vívida fantasia onírica, podemos comprender que, impactada, ela não tenha desejado contar o segredo em confessionário algum. Há um ponto no orgasmo que seguramente pertence à dor e à morte que engendra a vida. Quem tem o contato proibido adentra o prazer por caminhos alternativos. E isto porque o desejo da pele, impetuoso, astuto, sábio, aprende, se preciso for, a escrever certo por linhas tortas.

Publicado originalmente em Latido

Sobre a autora
Florencia Abbate nasceu em Buenos Aires em 1976. Licenciada em Letras pela Universidad de Buenos Aires - UBA, periodista cultural e autora dos romances "El Grito" e "Magic Resort".

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