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segunda-feira, 12 de maio de 2008

Luz e Sombras

Texto: Denis da Cruz

- Kir, vá até Mauhaz e pegue a jóia! – grita papai da sala - E não perca tempo no caminho, pois temos poucas horas de Luz.

- Hat, você vem? – pergunto para meu djin.

- Clac, brat. Bram – é a resposta.

Pobre Hat. Ficou sem a Luz e se transformou num espírito inferior. Sua sorte foi que um marquiteto* fez este pequeno construto esferóide para transmutar o que restou de sua essência em um djin.

Coloco-o em meu ombro, ao lado dos meus cabelos ruivos. Ele se agarra e corro para fora. De fato, a Luz está indo embora e o céu já é tomado por um azul mais escuro. Em pouco tempo, as Sombras estarão por todos os lugares.

Nas ruas, as pessoas se retiram para seus huszes*. Eu continuo correndo; Hat cada vez mais firme.

Finalmente chego diante do husze de Mauhaz e sinto um arrepio em minha orelha.

- Quieto, Hat! – digo para o djin que solta faíscas e estala suas engrenagens.

- Brat, brack – responde-me.

Ele está certo em ter medo, pois a moradia de Mauhaz é realmente de dar calafrios. Giro a maçaneta que tem a forma da cabeça de um corvo.

- Missur* Mauhaz!? – chamo colocando a cabeça para dentro.

- Entre, menina Kir – diz o homem ao fundo da sala.

Ouço o “clac, brak” de vários djins espalhados pelo chão. Há de todas as formas, quadrados, esferóides, cônicos e alguns lembram insetos.

Ando de forma desajeitada entre os pequenos construtos, tentando não demonstrar meu medo. A verdade é que a Luz esverdeada deste husze me incomoda.

- Seu pai mandou o pagamento pela jóia? – pergunta o marquiteto com um sorriso desenhado por seu farto bigode. O cabelo espetado parece ter sido sugado pela tromba de um Julufan*.

- Sim – coloco um frasco de luz prateada na mesa.

Ele o puxa para si, com um pequeno riso mórbido. Avalia-me com seus olhos fundos e nariz pontudo, balançando quase até o queixo.

- Poderia ser você aqui, menina Kir. Poderia ser a sua essência aqui dentro.

- Mas não é! – digo de forma enfática, mas o medo escorre na forma de uma gota de suor em minha têmpora. – Esta essência paga a jóia?

- Ah, claro que paga, menina Kir. Sim, paga sim – ele sorri como um Iadbo* da Sombra – Vocês terão Luz por mais alguns meses. Nada mais justo; sacrificar uma essência para que vocês tenham a proteção contra a Noite.

Mauhaz alisa o frasco com suas mãos de dedos ossudos e olha dentro dele. Então, me diz em quase um sussurro:

- Quer saber se você teria um irmão ou uma irmãzinha?

- Não, eu só quero a jóia! – não consigo conter o grito.

Maldito seja este mundo atacado pelas Sombras. Dependemos da Luz para viver, ou a Escuridão nos leva. E esta Luz só os marquitetos nos fornecem, mediante a paga de essências vitais. Pais e mães, às vezes, se sacrificam para que a família possa continuar tendo as Jóias de Proteção.

Hoje eu entreguei nas mãos de Mauhaz a Essência do que seria um dos meus irmãos, gerado apenas para que pudéssemos comprar uma Jóia e termos mais alguns meses de Luz em nosso husze. Muitos usam esta estratégia para comprarem a proteção e, por isto, crianças como eu são muito raras em nosso mundo.

Mauhaz me entrega a jóia. Agradeço com uma rápida mesura e corro para a porta, tropeçando em dois ou mais djins.

Ao girar a maçaneta do corvo viro-me para traz e cuspo a Profecia para o maldito marquiteto:

- Um dia a Grande Jóia virá e entregará sua Essência por todos nós. Teremos Luz para sempre e não mais precisaremos de suas jóias.

- Sim, um dia Ela virá – diz o mago lá do fundo, com uma voz sarcástica. – Mas ainda não veio e você terá que correr bastante, menina Kir, pois as Sombras já estão caindo.

Olho assustada para fora. O céu está em um roxo quase negro. A Escuridão está descendo.

Corro pelas ruas vazias. Hat se segura o mais firme que pode.

Um grito agudo rasga os céus. As Sombras estão caindo. Fortes, densas. Tomam conta de tudo.

Aperto a jóia contra meu peito e ela emite uma tímida Luz azulada. Não será suficiente para me proteger até meu husze.

A Escuridão está por todos os lados e os Iadbos das Sombras chiam e gritam. Continuo correndo; Hat mantém um silêncio tumular em meus ombros.

Sem aviso, uma Sombra cai à minha frente. Salto para lado, mas outra criatura me cerca. Mais um e outros vários o seguem. São escuros, parecendo mantos mais negros que a própria Noite.

Estou cercada. Hat solta pequenas faíscas e a Luz da Jóia começa a ser ofuscada. Um dos iadbos me puxa pelas pernas e caio. Aponto-lhe a pedra, mas sem muita utilidade, pois ela precisa estar no Altar ou em um Cetro para emitir sua Luz.

Vou sendo sufocada pelas Sombras que me cobrem. Vejo a energia prateada saindo de meu corpo, sendo engolida pelo iadbo.

Não sei se quero ser um djin. E também não sei se quero ter minha essência totalmente absorvida pela Escuridão.

Mas algo surpreendente acontece. O iadbo que sugou minha essência solta um chiado ainda mais terrível que os anteriores. As outras criaturas se afastam dele, quando feixes de Luz saem de sua boca, irrompendo numa claridade prateada, cada vez mais forte.

Olho para minhas mãos e corpo. Estou irradiando.

- Sou Luz!?

As Sombras fogem de mim, chiando, gritando. Meu brilho estilhaça a escuridão. Reabsorvo minha essência e corro abrindo caminho na Noite; os iadbos se afastam e não ousam se aproximar.

Quando finalmente chego a meu husze e fecho a porta atrás de mim, meu pai e mãe olham atônitos. Minha Luz invade o pequeno brilho da morada.

Ofuscados, meus pais caem de joelhos:

- Kir! – diz papai com a voz trêmula – Você é a Grande Jóia da profecia.

Depois disto, ele me contaria sobre como lhes fui entregue pelos Gons*, a fim de cuidassem de mim até revelar minha Luz.

Agora, uma única parte da Profecia me inundava a mente e eu me perguntava se estaria pronta para entregar minha Essência Vital para libertar nosso mundo das Sombras. Isto, só o futuro poderá dizer.

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*Marquiteto = mago arquiteto e necromancer
*Huszes = casas
*Missur = forma de tratamento para os marquitetos
*Julufan = espécie que lembra um elefante ou mastodonte
*Iadbo = Criatura de sombra.
*Gons = Antigos seres da Luz

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