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segunda-feira, 19 de maio de 2008

Caminhada

por Pedro Faria


A Avenida se estendia à minha frente. Eu não tinha opção a não ser caminhar.
Comecei a andar, e logo na esquina à minha esquerda, vi um garoto. Deveria ter uns dez anos. Estava sentado no chão, encostado num poste, e observava duas formigas caminhando por seu braço.
- Não são bonitas? -, ele perguntou.
Eu não disse nada. Não podia dizer nada. Apenas o olhei, melancólico.
- Não são bonitas? -, perguntou ele de novo. Mais formigas subiram em seu braço.
Continuei olhando. Queria ir embora, continuar andando e acabar logo com aquilo. Mas não podia.
As formigas continuaram escalando o braço do garoto. “Não são bonitas?”, ele continuava repetindo enquanto seu corpo era invadido por milhares de formigas, até que ele se tornou apenas uma silhueta negra, e sua voz ficou abafada pelos insetos.
Passaram alguns segundos, e o corpo dele explodiu, as formigas haviam entrado por seus orifícios e o entupido. Os insetos se dispersaram rapidamente, e apenas uma mancha vermelha ficou na calçada próxima do poste. Continuei caminhando.
Andei, e logo vi a mulher. Ela estava nua, acorrentada a um carro. Estava encolhida, e gesticulava como se alguém a ferisse.
- Não, por favor, pare. Eu não agüento mais.
Suas costas estavam marcadas por arranhões. Cada vez que ela gritava de dor, novos ferimentos apareciam.
Ela me viu.
- Por favor, senhor, faça-o parar, por favor.
Balancei a cabeça.
- Pelo amor de Deus! -, ela gritou.
Então o golpe final veio, e seu crânio abriu-se em dois. Seus olhos estavam fixos em mim quando aconteceu. Queria desviar o olhar, mas novamente não pude.
Apenas continuei andando.
Não queria mais andar, queria parar, sentar no chão e ficar ali mesmo. Mas não podia, tinha que acabar aquela Avenida e chegar à próxima.
Andei até chegar à uma vitrine, do meu lado direito. Nela, estavam pintadas barras negras. Lá dentro, um homem estava sendo espancado por homens invisíveis, como a mulher acorrentada.
O homem não dizia nada, apenas aceitava a surra. Cortes apareciam em seu rosto, assim como hematomas. Num certo momento, sua cabeça foi lançada repetidamente contra a vitrine, até que seu pescoço quebrou. Eu vi então, num relance, alguns dos homens invisíveis, mas não reconheci nenhum deles. Não me importei muito com essa cena.
Finalmente avistei o cruzamento, e fui em direção à ele.
Na esquina eu vi a mim mesmo, sentado encostado em um poste, com uma seringa enfiada no braço.
Não pude dizer nada. A seringa estava cheia de insetos.
- É assim que você acaba. É assim que você acaba. É assim que você acaba.
Tentei tapar os ouvidos, mas não pude. Vi o meu fim e então lembrei de minha vida. Lembrei de meu irmão, morto ao cair em um poço ao seguir uma trilha de formigas. Lembrei de minha mãe, morta por meu pai bêbado. Lembrei de meu pai também, morto numa briga na prisão.
Principalmente, lembrei de mim, de minha última dose, que me trouxe para cá.
- É assim que você acaba.
Sim, é assim que eu acabei.
Passei pelo meu corpo, a agulha ainda enfiada no braço, e virei à esquerda, sabendo o que me esperava.
A Avenida se estendia à minha frente. Eu não tinha opção a não ser caminhar.

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