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quarta-feira, 7 de maio de 2008

O Caso Jersey

Volmar Camargo Junior




Meu nome é Rafaela M. Sou médica veterinária, sócia-proprietária de uma petshop e clínica de pequenos animais, junto com meu marido Breno S, jornalista e fotógrafo. A história de como nasceu essa empresa é bastante curiosa, e pode parecer até um pouco absurda. Para quem quiser conferir, temos ainda todas as provas de que tudo o que vou contar é a mais absoluta verdade.

Foi em 1995, no mês de outubro. Lembro que o assunto do dia era aquele pastor que chutou uma imagem de Nossa Senhora em um programa de TV. Eu estava no terceiro semestre da faculdade. Breno, a esta época, estava quase no final do curso de Jornalismo. Fazia um estágio no Diário Pereiropolitano para o qual escrevia como “freela” desde o segundo grau – essas coisas de padrinhos. Em todo caso, ele já era bastante conhecido por parecer mais um detetive que um repórter. Nós ainda não namorávamos; eu, tremenda CDF, bolsista, certinha. Ele, popular na universidade, na redação, na rua, no diretório acadêmico. Mas morávamos no mesmo prédio, e éramos muito amigos.

Aconteceu por aqueles dias um evento curioso, um crime insolúvel para o qual a polícia não apresentava conclusões – o tipo de caso preferido do Breno. O agricultor Ari F. era um funcionário público aposentado (ou um político, não lembro bem) que tinha uma propriedade na zona rural de Pereirópolis. Era uma fazendinha tão bonita e bem cuidada que parecia de brinquedo. Sua generosa aposentadoria era toda investida naquele lugar. O que mais lhe dava prazer adquirir eram os animais. Não eram bichos quaisquer, mas verdadeiros campeões de suas raças. Eram ovelhas, galinhas, cavalos, canários, cães e gatos, uma verdadeira Arca de Noé. De todos estes, seu xodó era Princesa, uma vaquinha Jersey que – segundo os relatos dos concursos que ela venceu – chegou a dar cinqüenta litros de leite em um único dia. Um luxo de vaca.

Naquela sexta-feira treze, o seu Ari registrou a ocorrência logo de manhã na D.P. de Pereirópolis: Princesa fora encontrada morta com um tiro na cabeça. O Inspetor Silva acompanharia o inconsolável proprietário da vítima até sua idílica fazenda. O fotógrafo que prestava serviço para a Delegacia – para o total desgosto do policial – era o Breno.

Foi difícil chegar até a fazenda por causa da estrada, que virou um barro só com a chuva da véspera. A cena do crime era a seguinte: a vaquinha estava caída de lado dentro do curral, com as pernas estendidas. Havia um buraco escuro na testa e uma poça de sangue no chão, ao seu redor. Fora isso, não havia nenhum outro indício da autoria, nenhuma marca de pneu, nenhuma pegada. Nada. Breno começou a reportagem ali mesmo. Seu Ari não se importou, mostrando-se muito solícito às suas perguntas – diferente de Inspetor Silva, que o achava um estorvo.

Segundo o dono da propriedade, não aconteceu nada extraordinário, além da forte chuva de granizo e a tempestade de raios, entre as onze a meia-noite. O disparo só pode ter acontecido nesse horário, porque o barulho das trovoadas certamente abafaram o estouro da arma.

A primeira coisa que o jovem jornalista lembrou foi o fato de, na área rural, os moradores terem armas de fogo e cães de guarda. As armas de seu Ari, um revólver .38 e uma espingarda calibre .12, não eram usadas havia muito tempo. Mostrou-as: estavam empoeiradas, guardadas na parte mais alta de um armário. Quanto aos cachorros, estes deviam ter contraído alguma virose, pois desde o começo da semana passavam a maior parte do tempo dormindo. Seria tristeza demais para ele se seus cães também morressem.

Inspetor Silva pediu para falar com as outras pessoas da casa, em caráter informal, uma vez que aquilo não constituía um depoimento. Na Granja Itália viviam Seu Ari, sua esposa Teresinha, o filho mais velho Tomás, e a caçula Tatiana.

A esposa não pareceu nada abalada com a morte da vaca Princesa. Respondeu às perguntas sem titubear, mas acrescentou pouco ao que já havia sido dito pelo marido. Disse apenas que só conseguiu dormir depois que a chuva terminou. Era uma mulher bonitona, muito bem tratada, com as unhas e os cabelos arrumados. Pelo que aparentava, Dona Teresinha não passava nem perto de uma estrebaria. E, provavelmente, seria ainda menos provável que empunhasse uma arma para matar uma vaca a sangue frio.

O rapaz, por outro lado, era bem mais rude. Suas respostas eram monossilábicas e algumas questões sequer dignou-se a responder. Por fim, já irritado, saiu da sala batendo a porta, falando em alto e em bom som “Quem se importa com essa vaca de merda?”.

A moça estava em estado de choque. A despeito dos cuidados que a mãe teve para tentar acalma-la, e talvez silenciá-la, Tatiana tinha certeza de que o assassinato de Princesa só poderia ser um aviso de seu ex-namorado. O tal era o estereótipo do rapaz rico e mimado, herdeiro de uma fazenda gigantesca (que, muito apropriadamente, os jovens menos abastados chamam agro-boy). Aquilo seria um aviso, ou uma ameaça a ela e à família. Esta foi a declaração que pareceu a mais plausível ao policial. Breno preferiu não apressar seu julgamento.

Seu Ari estava bastante emocionado. Já se aproximava do meio-dia, quando recebeu uma ligação que estava esperando: um comerciante local aceitou pagar pela carne da premiada vaca uma cifra nada desanimadora. Seu Ari queria mesmo era enterrar a pobrezinha à beira do açude de que ela tanto gostava.

Por fim, Silva questionou se a família tinha algum outro suspeito além do ex-namorado da caçula. O homem afirmou que não cultivava inimizade com ninguém. Todos na cidade sabiam disso: Seu Ari era (e ainda é) uma doce criatura. Breno, enquanto o policial fazia as últimas perguntas, observou discretamente os outros familiares. Quando o dono da casa asseverou não possuir nenhum inimigo, notou que sua esposa ficou com o olhar distante, voltado para o chão, dando um longo suspiro.

Assim que chegaram de volta na cidade, Breno correu para seu laboratório fotográfico. Silva dispensou-o (proibiu-o) de averiguar o suspeito. Na verdade, Breno estava com uma outra idéia, que não o abandonou desde a hora que tirou as fotografias. Seu laboratório era o mais artesanal possível – que ainda hoje ele conserva com muito carinho, apesar de já ter equipamento bem mais sofisticado. O fato é que as fotos só estariam prontas em algumas horas. Neste intervalo, o fotógrafo deu lugar ao detetive-amador.

É nesse ponto que eu entro na história. Eu costumava ser, de certa forma, a mãe dele. Ou, no mínimo, a pessoa que o alimentava. Breno é o tipo de pessoa totalmente inepta na cozinha, capaz de cortar a própria jugular com uma faca sem ponta tentando fazer um sanduíche. Sendo sua vizinha de porta, seu apartamento era, o mais das vezes, um dormitório. Isso quando ele não se passava na hora – ou no álcool – e dormia no meu sofá. Estava “vesgo” de fome, e só então deu-se conta que eram quase cinco da tarde e ele não havia comido nada. No tempo em que preparei o lanche e enquanto o mesmo era devorado, Breno contou-me tudo o que já contei a vocês. E, em seguida, quis saber algumas coisas sobre minha área.

“Dá para matar uma vaca de quase uma tonelada só com um tiro”, ele perguntou.
“Sim. Há alguns abatedouros que preferem dar um tiro com uma arma de alta-pressão para que o animal não fique estressado”, respondi, quase entendendo onde ele queria chegar.
“Pois, eu tenho uma suspeita de quem seja o autor”
“Quem?”
Breno me olhou bem nos olhos, e assim ficou por alguns segundos intermináveis, com uma expressão enigmática, indecifrável. Ele riu com o canto da boca. Da cadeira onde estava, pulou na direção do telefone. Discou consultando uma agendinha minúscula.

“Alô, Seu Ari. Ah... Tomas. Desculpe, as vozes são parecidas. Aqui é o Breno, o fotógrafo da pol... sim, isso. Era eu mesmo. Não... não..., não é isso. Olhe, eu tenho uma amiga que é veterinária. Ela disse que não se importaria de dar uma olhada nos cachorros de vocês. Quando? Domingo, pela manhã? Claro, sem problemas. Ah... não, não. Ela não vai cobrar nada, não. Até domingo, então. Um abraço.”

Era óbvio que eu já havia sido envolvida nos planos dele. Isso não era raro. Teve uma vez que ele pediu para eu fazer um corte com um bisturi em sua perna só para ele ser atendido no pronto-socorro, e fotografar os pacientes sendo atendidos no corredor. O sábado passou muito rapidamente, e eu não o vi o dia inteiro. No domingo, saímos cedo de casa. Fomos no seu Fusca 76 até a sede da Granja Itália. Dentro do porta-luvas encontrei um pacotinho da farmácia, contendo seringas, luvas descartáveis, tubos plásticos para coleta de sangue, daqueles de laboratório de análises clínicas. Ele me olhou e riu

“Ué, temos que prestar um serviço de qualidade, doutora Rafa!”

Fomos conversando amenidades. O pastor que chutava santas fora totalmente esquecido; pelas esquinas, só se falava na morte da Princesa.

“Você lembra de uma notícia, há uns cinco anos atrás, mais ou menos depois do impeachment do Collor, que o governador do estado viria para um almoço com os criadores daqui da cidade?” ele perguntou enquanto sintonizava uma estação de rádio.
“Não muito bem. Por quê?”
“Lembra onde foi que ele se hospedou?”
“Ah, sim. Lembro sim. Ele ficou justamente na Granja Itália, porque o Seu Ari era seu amigo.”
“Exato. E lembra também o que aconteceu depois dessa visita?”
“Cara, não recordo. Eu sempre fui desligada das notícias...”
“Pois começaram a construir o Frigorífico Pereirópolis S.A. pouco tempo depois. Um monte de gente conseguiu emprego, e os granjeiros da região só tiveram lucro com isso. Muitos pequenos empresários e comerciantes começaram a depender do Frigorífico.”
“Sim, e daí? Não to conseguindo entender.”
“Calma... já chego lá. Teve bastante gente que prosperou com a vinda dessa empresa. Mas teve gente que não gostou nem um pouco disso.”
“Quem?”

Não deu tempo de ele terminar. Havíamos chegado à entrada da granja.

Nosso anfitrião foi Tomas, que ficou em casa. Os pais e a irmã foram à missa. Diferente dos modos que teve quando recebeu Breno e o Inspetor Silva na sexta, o rapaz tratou-me com muita distinção e cordialidade. Muito educado, conduziu-nos até o canil.

O canil era espetacular, um primor de organização do espaço e limpeza. Nem parecia que cães moravam ali – talvez uma limpeza recente feita por Tomas, mas, mesmo assim, o espaço era um luxo. Coisa de revista. Havia ali sete cães, enormes. Seu ari, pelo visto, apreciava os molossos: um casal de Rottweillers, um Dogue Alemão, um Mastiff e uma cadela Boxer com dois filhotes. Fiquei consternada com aqueles cachorrões, dormindo pelos cantos. Bem, eu sabia que sonolência nos cães é, de fato, sintoma de uma virose até bem comum, a parvovirose – um tipo de gastro-enterite. Comecei a especular

“O que eles costumam comer, Tomas?”
“Ah, essa ração aqui”, respondeu ele, pegando o saco quase vazio em uma guarita de tijolos, onde ficavam os apetrechos do canil (que capricho!). Era uma ração tradicional, até um pouco cara por causa da marca. Olhei a data de validade, os componentes... tudo normal.
“E é você mesmo que compra a comida deles?”
“Normalmente o pai ou a mãe, não sei. Esse mês foi a mãe, porque o pai estava em Esteio com a Princesa, numa mostra internacional de gado leiteiro.”
“Outro prêmio?” interveio o Breno, que eu já havia até esquecido.
“Ah, sim.” Respondeu o rapaz, sem entusiasmo.
“E quem trata os cachorros?” perguntou outra vez o jornalista-detetive.
“Só eu.” devolveu seco. Deu para perceber que os dois exemplares machos da nossa espécie não se davam bem desde que se conheceram. A minha ficha demorou a cair que, na presença de um exemplar fêmea, eles tendem a competir por atenção. Nesse caso, a fêmea era eu. Que burra! Nem notei.

Fiz a coleta de sangue, de fezes, até da ração dos cães, exatamente como Breno queria. Voltamos para a cidade. No caminho, notei que ele estava mais calado que o costumeiro, com a cara fechada, cenho cerrado. Tentei puxar conversa. Estava emburrado. Deixei-o quieto, porque era provável que ficasse ainda mais aborrecido.

Perto de casa, já estava mais calmo. Acho que ele tinha a cabeça tão ocupada pensando nas mil e uma possibilidades de aplicação de suas teorias que acabou esquecendo que estava bravo comigo. Quando paramos, ele foi diretamente para o orelhão defronte ao edifício. Não pude ouvir a conversa, mas pela expressão que ele fez, parece que sua conversa mole teve efeito. Voltou rapidamente para o carro, perguntando

“Vai fazer o que hoje, doutora?”
“Se você deixar, vou continuar escrevendo meu artigo.”
“Então, você vai fazer uma extra-curricular hoje. Vamos pro laboratório da Élida.”
“O quê? Hoje é domingo, esqueceu?”
“Pois domingo é o dia perfeito para cobrar uns favores”, disse ele, arrancando o Volkswagen rumo ao centro.

Sim, a Élida, dona do laboratório, devia um favor para Breno, sobre o que preferi nem questionar. Entregamos o material, sem dizer que era de cachorro. Ruim foi explicar a ração. A moça deu a previsão de que o resultado só sairia na manhã seguinte. O trabalho de conter a ansiedade evidente de meu amigo, agora, seria meu. Em casa, começamos a divagar sobre os suspeitos. A partir do que ele havia me contado, Breno quis que eu fizesse uma análise de quem eu achava ser o culpado. Enquanto eu falava, fiz algumas anotações em um caderno. Ele não interferiu em nada.


O ex-namorado de Tatiana era minha principal suspeita. Ameaçar a família tirando a vida do bicho mais querido do Seu Ari pode ser uma boa forma de intimidação. Eu concordo com o Silva nesse aspecto: acho que ele, o agro-boy, é o número um.

Tomas tinha ciúme da vaca. Ele teria ciúme dos outros bichos também, e pelo que parece, ele gosta apenas dos cães. Teria sido um crime passional? Será que os outros bichos não estavam sob uma ameaça, com o assassino dentro de casa?

Dona Teresinha pode tê-lo feito – ou mandado fazer, o que é mais provável. Ela parece ser bem materialista. Afinal, uma vaca que devia custar algumas dezenas de milhares de reais – ou dólares, não entendia bem a cotação das vacas – certamente renderia, com sua morte, uma boa grana do seguro.

Seu Ari também teria motivos para atirar em Princesa. Talvez os mesmos de Dona Teresinha. Entretanto, acho que ele era apaixonado pela mimosa. Duvido que ele tenha cometido o bovicídio.

Por último eu coloco a Tatiana. Ela era a que, a meu ver, tinha menos motivos para atirar na Jersey.


Breno ouviu-me pacientemente, silenciosamente. E assim ficou por mais alguns minutos, como se estivesse ruminando o que eu havia dito.
“Bem...” disse ele, me deixando apreensiva. “Há algumas coisas que eu descobri, e outras que eu fiz algumas ligações que você não poderia ter levado em conta porque não tinha conhecimento”.
“É mesmo? E sobre quem recai sua suspeita?” eu perguntei, fingindo estar ofendida por não ter minha excelente capacidade dedutiva valorizada.
“Quer saber mesmo? Acho que nenhuma dessas pessoas que você citou matou a Princesa.”
“Ué? Há mais alguém envolvido?”
“Vamos esperar o resultado dos exames. Amanhã eu conto quem é o culpado.”

Fiquei morrendo de curiosidade. Pra falar a verdade, fiquei até furiosa porque, no fim das contas, Breno conseguiu conquistar meu interesse para esse caso. Já estava ficando tarde, eu tinha sono, os trabalhos da faculdade ainda me esperavam. Mandei-o pra casa. Mesmo que ficasse a uma parede de distância, eu precisava ficar um pouco sozinha. Quando fui fechar a porta, como se fosse a coisa mais natural do mundo, Breno me beijou. Assim, sem mais nem menos. Foi nesse exato instante que começamos a namorar. Acabei não retomando meu artigo, e o Breno também não foi pro apartamento dele.


Era cedinho da manhã de segunda. Nas segundas eu costumava dormir um pouco mais, já que minhas aulas eram somente à tarde. Nem percebi que ele havia saído e já estava de volta. Estava com as mãos para trás.

“Nós temos o nosso culpado”, disse, entregando-me dois envelopes, um branco e um pardo.

No primeiro estava o resultado dos exames de sangue, de fezes, e o da ração (!) do cachorro. Havia uma substância química incomum. Ou melhor, comum apenas em pessoas que estão sob efeito de sedativos.

“Isso quer dizer que...”
“... quer dizer que os cachorros não estão doentes, Rafa. Estão dopados!”
“E então? Alguém misturou anestésico na comida deles. Mas só pode ter sido alguém da família, certo?”
“Não necessariamente. Você se lembra que eu comentei sobre um cara que não gostou nada da vinda do frigorífico aqui pra Pereirópolis? Esse cara é um certo Doutor Orlando.”
“Doutor Orlando... nunca ouvi falar”
“Deve ter ouvido sim. Pois esse Seu Orlando era podre de rico antes do Frigorífico instalar-se aqui. Dizem que ele ganhava rios de dinheiro vendendo uma ração para bovinos que só a empresa dele tinha a fórmula. Quando veio a empresa grande, e que começaram a fazer uma inspeção pra valer no rebanho bovino local, acabou-se descobrindo que a ração que o tal Doutor Orlando produzia tinha uns metais pesados que podiam causar câncer em quem consumia a carne proveniente dos bois que se alimentavam dela. Não precisa nem dizer que a fabriqueta do Doutor faliu. Com isso, ele tinha mais de um motivo para detestar o Seu Ari, já que todo mundo diz que o Frigorífico só veio para cá porque o governador, amigo dele, facilitou as coisas. Hoje em dia, o homem tem um mini-mercado, perto da praça do hospital.”
“Que história mais maluca, Breno. Mas e aí? Você está achando que esse Doutor Orlando foi quem matou a vaquinha.”
“Quer mais algumas evidências? Os cachorros da fazenda não estavam contaminados por virose nenhuma, mas dopados, anestesiados por causa de uma substância tranqüilizante que estava onde? Na ração que eles comiam. E o tal Seu Orlando pode, perfeitamente, ter fabricado a tal ração.”
“Certo, mas... e como é que ela chegou lá?”
“Como? Quem foi que comprou a ração para os cachorros da Granja Itália nesse último mês?”
“Segundo o Tomas, foi a mãe dele, Dona Teresinha. E o que isso tem demais?”
“Aí está o coice da vaca! Você lembra que eu achei muito estranha a reação da Dona Teresinha quando o Seu Ari falou para o Inspetor Silva que não tinha inimigos?”
“Lembro, sim. Você disse que ela estava com o olhar perdido, deu um suspiro profundo e tudo mais.”
“Pois você não sabe o que eu descobri. Sábado eu fui visitar a minha mãe, que tem uma memória de elefante...”
“Foi por isso que eu não te vi o dia inteiro.”
“Pois então. A mãe lembra direitinho de um “bafafá” que aconteceu aqui em Pereirópolis, quando ainda se chamava Vila da Pereira, distrito de Araucária. Pois o Seu Ari veio trabalhar aqui, representando algum órgão do governo – ela acha que ele era militar. E ele já estava ficando rico, e comprou as terras onde hoje é a Granja Itália. E foi nessa época que ele conheceu a Teresinha, que veio a se casar com ele e dar-lhe um casal de filhos.”
“Que bonitinho... ta. E daí?”
“E daí que a Dona Teresinha, na época, era noiva de outro cara. Chuta quem era o cara?”
“Não! O Doutor Orlando?”
“Sim. O Doutor Orlando! A mãe diz que eles nunca deixaram de se ver, e que, volta e meia, quando o Seu Ari viajava pras exposições de sua bicharada, ela ia até o mercadinho do Orlando para vê-lo. É provável que a ração que deixou os cachorros meio grogues foi comprada lá.”
“Mas é claro! Ele tinha todos os motivos pra se vingar do Seu Ari! Foi lá e matou a Princesa, a vaca premiada do Seu Ari! Breno, meu Deus, você é um gênio!”
“Ei. Eu nunca disse que o cara matou a vaca.”
“Hein? Agora é que eu não entendi mais nada!”
“Olha isso”

E deu-me o segundo envelope. Dentro dele, havia as fotos que ele tirou da cena do crime. Princesa, de língua de fora, com a cabeça ensangüentada e um buraco no meio da testa. Uma poça vermelha ao redor da pobre vaquinha Jersey. Outras fotos mostravam o lombo da vaca, o curral e os arredores. E duas ampliações enormes. A primeira era da bunda da vaca. A segunda, do furo feito pela bala.

“Qual é, Breno” eu reclamei “precisava ampliar essa? Que foto mais feia...”
“Rafa. Você conhece isso muito melhor do que eu. É um animal morto”
“Mas isso é o tiro na cabeça da pobrezinha.”
“Olha melhor.” disse, confiante. E eu olhei. Prestando atenção, dava para perceber que aquele buraco de bala era, de fato, muito esquisito. Então eu percebi o quanto aquilo era absurdamente ridículo. E gritei, com o dedo em riste para a foto “Rá! É maquiagem! Isso aqui é maquiagem”
“Agora olha a foto da bunda da Princesa” ele falou, pondo a outra fotografia diante de mim. Perto das ancas, no lugar bem escolhido, havia dois pequenos pontos vermelhos sob o pelo.
“Então isso quer dizer que...”
“Quer dizer que a Princesa não foi morta. Isso foi um golpe. Ela recebeu duas injeções, de algum anestésico muito potente, ou uma dose muito alta. A vaquinha estava tão dopada que pareceu morta. Ela não foi assassinada, Rafa. Foi roubada debaixo dos bigodes do Seu Ari.”

Eu fiquei estática. Abismada. Boquiaberta. Afônica. Tudo fazia sentido. Breno desvendou o quebra-cabeças em três dias, coisa que poderia levar anos sem nunca ter uma solução pela polícia.

Levamos essas conclusões para a polícia, ou melhor, para o Inspetor Silva, além dos resultados dos exames, as fotos – que ele mesmo não havia olhado com a atenção devida. Depois disso, bastou uma das “conversas informais” do Silva para fazer o Seu Orlando cair na armadilha. Quando o processo contra ele foi aberto, e suas contas bancárias investigadas, descobriu-se que Princesa havia sido vendida por ele para um fazendeiro uruguaio, tão dado a falcatruas quanto Doutor Orlando, por aproximadamente quinze mil reais. Seu Ari não teve dúvidas. Mandou buscar sua Jersey campeã de volta. O caso teve alguma notoriedade no estado, e acabou, depois, virando piada em Pereirópolis. Doutor Orlando acabou condenado por quase uma dezena de crimes contra o patrimônio e a saúde pública, sendo obrigado a pagar uma indenização por danos materiais e morais ao proprietário da vaca.

A propósito, foi com essa indenização que o Seu Ari montou a clínica e deu-a de presente para mim e o Breno. O nome, obviamente, foi ele quem escolheu: Clínica Veterinária Princesa.

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