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quinta-feira, 3 de dezembro de 2009

Um copo de café


Quando eu contava uns 23 anos, constatei que de brasileiro eu só tinha a nacionalidade impressa nos documentos. Os fatos sempre estiveram ao alcance da minha percepção, claros como água que brota na nascente: averso a praia, caipirinha e a todos os outros aspectos que formam o arquétipo tupiniquim. Contudo, foi com um elemento não muito denunciador que caí em pura epifania.

Perceber que, de todas as pessoas que conhecia, só eu nunca havia tomado um copo de café foi uma experiência iluminadora. Nenhum modo de preparo ou derivado do produto genuinamente brasileiro me apetecia; nem puro, com leite, expresso, cappuccino, forte, fraco, amargo, com açúcar, com creme, nem balas, sorvete ou bolo. Absolutamente nada.

Não pude evitar certo sentimento de exclusão, que estava mais para não-adequação – um estrangeiro dentro do meu próprio país. Precisava descobrir, então, minha verdadeira pátria, a mãe zelosa que abraça ao filho carente de cuidados e com a qual eu plenamente me identificasse, vivendo em exemplar harmonia, bem como deve ser entre um aborígene e sua terra nativa.

Engraçado como as bebidas são perfeitos mecanismos de revelação. Análoga à comprovação de não-brasilidade foi a descoberta de minha pátria de espírito. Minha ontogênese certamente gritava alto evidenciando meus gostos pelo que tinha origem naquela próspera ilha européia, mas eu parecia não ouvir. Preparando-me para uma noite em vigília, sentado no escritório e absorto no vapor que emergia do conteúdo da xícara, veio-me o cair da ficha. Mais do que um simples passatempo de quem trabalha pensando, o chá era um item que simbolizava uma adolescência ouvindo rock and roll britânico e rindo do humor inigualável dos Monty Python. Dali em diante, inglês convicto. O que me fez compreender, aliás, o porquê de meu ódio ao irritante sotaque paulista, com seus erres retroflexos. A pronúncia britânica do inglês era mais leve sem o peso dos erres.

Literalmente num futuro do pretérito, mudei-me para a Inglaterra, quando abriram lá duas vagas, na empresa em que trabalhava. Morar na terra da rainha não teve como causa única a recente constatação, em relação linear. Na verdade, esse sempre fora um sonho desde meados da adolescência, reforçado pelos acontecimentos últimos.

Enfim na Inglaterra, era como se eu tivesse aportado em lugar seguro, após longa viagem por terras estranhas. Desse adjetivo, aliás, deve vir o substantivo “estrangeiro”, aquele que vem de terras estranhas. Mas isso não passa de mera especulação etimológica. De todo modo, apesar das iniciais dificuldades com o idioma, pois tinha uma fluência que deixava a desejar em pequenos pontos, minha adaptação corria bem. Não tive problemas com a imigração por ter já o passaporte português, o que ainda me poupou de muita burocracia e eventuais constrangimentos.

Quanto aos costumes, esses eu tirei de letra. Não senti falta da comida nem da hospitalidade do brasileiro, que para mim nunca foi nada além de assanhamento ou, quem sabe, um exemplo de sublimação a ser estudado pelos psicanalistas. Também o frio não me assustou muito, e dava graças a Deus por não enfrentar aquele calor insuportável do verão dos trópicos.

Passou-se um ano e por fim estava inteiramente estabelecido, com moradia própria, um modesto círculo de amizades e pequenas diversões. Aconteceu que, certo dia, recém-saído do expediente, entrei num pub para beber algo e descontar na bola de sinuca a raiva que estava de um superior meu no trabalho. Sentei e mandei vir uma cerveja, de preferência da mais vagabunda para me deixar logo embriagado e talvez esquecer a tarde.

Por total azar, que mais tarde eu entenderia por sorte, o desgraçado estava lá também, a poucos metros, tomando qualquer coisa que não pude precisar e assistindo a um jogo de futebol tampouco interessante. Não sei se pelo efeito de três garrafas já consumidas ou sóbria, embora irracional, vontade de vingar-me, pensei seriamente em levantar e encher a cara da criatura de porrada ou, nem eu sabia que era capaz de idéias tão perversas, cortar-lhe o pescoço com um caco de vidro proveniente de uma garrafada prévia.

Tive os pensamentos interrompidos por gritos raivosos ou apenas aliviosos de gol. Aproveitei a confusão que se instalara naquele recinto acanhado e tomei a direção da saída, mas antes ouvi uma voz que me chamava. Óbvio, não podia ser alguém além de mim. Virei, num gesto maquinal. Ele acenou, gritou meu nome novamente e finalizou, “venha cá”.

Fui ao seu encontro já sem a vontade de rasgar-lhe a goela. Cumprimentamo-nos e ele disse que não me esperava por lá, que era cliente há tempos e nunca me vira. “Entrei por acaso”, foi o que consegui responder. Em seguida, como se entendesse tal acaso pediu-me desculpas pelo que havia dito mais cedo. Explicou-me que tinha de mostrar sua autoridade ante os demais subordinados, afinal era o chefe, que se não se impusesse o escritório viraria uma bagunça. “Nada funciona sem hierarquia bem definida”, encerrou.

Algo em seu modo de falar ou na expressão me fez crer que ele estava sendo sincero no que dizia. Tudo aquilo me soou não tanto como um pedido de desculpas por arrependimento, mas um meio de ilustrar como as coisas funcionam na empresa. Com a naturalidade com que me punha tudo isso, percebi que era intrínseca ao bom inglês a aparente rispidez nas relações de trabalho. Aceitei, enfim tinha sido um erro meu. Entendi minha raiva mais como uma defesa contra admitir que no Brasil tivesse sido diferente. Não havia motivo, portanto, para fazê-lo sangrar até a morte.

A conversa fluiu como se fossemos velhos amigos que se reencontravam após anos de separação. Falei do Brasil e ele demonstrou interesse, o que me fez gastar mais tempo do que poderia imaginar narrando o dia-a-dia de um típico carioca. Ficou surpreso quando disse que não ia muito à praia e perguntou, então, pelas garotas. “The girls”, com um gesto de volúpia na face, e acrescentou dizendo que eram as mais bonitas do planeta. Discordei, alegando sonhar em casar-me com uma inglesa loira ou morena, “whatever”, mas que tivesse os olhos azuis. Ele brincou: “você me importa uma brasileira bem gostosa e eu lhe apresento uma autêntica inglesa. Nosso pacto”. Concordei e assim encerramos nosso papo, ele deixando uma generosa gorjeta para o atendente e saindo com o terno de tweed num dos ombros.

Duas semanas depois voltamos a nos encontrar, dessa vez num bar em Covent Garden, ele acompanhado de uma belíssima loira cujos seios, mesmo cobertos por um suéter preto, esbanjavam sensualidade. Eu pensava comigo, “lucky bastard”. Fomos apresentados e então soube que não se tratava de sua namorada. Ao sentarmos todos na mesa ele disse: “nosso pacto”. Lembrei daquele dia no pub. Eu achara que ele estivesse brincando. Mais tarde, enquanto a loira tinha ido ao banheiro expliquei-lhe as dificuldades de “importar um brasileira”. Sua resposta foi simples: “sou casado, você não.”. Entendi que não havia obrigações de minha parte em nosso pacto, mas ele quisera fazer-me um favor.

Com a loira apontando à porta do banheiro feminino, encerramos o assunto e quando ela sentou-se de volta estávamos fingindo tratar de trabalho. E assim a conversa tomou os rumos que deveria, a loira rindo a cada deixa minha. Já ensaiava perguntar a meu amigo se ela era alguma espécie de acompanhante, caso ela se retirasse da mesa novamente. Mas, ao contrário, permaneceu lá, cada vez mais interessada na conversação.

Passado um par de horas, ele levantou-se, de súbito, e despediu-se de nós. Com o celular numa das mãos, nos acenou fazendo cara de “que pena”, como se dissesse “aconteceu um imprevisto” ou algo semelhante. Perguntou-me ainda antes de sair se eu podia levar a loira em casa depois. Respondi que sim, sem na hora importar-me como.

Continuamos a conversar, intermitentemente sorvendo algum líquido. Com a saída de meu companheiro, ares mais íntimos se instalaram naquela mesa e nossas considerações a três sobre assuntos triviais deram lugar a perguntas mais pessoais. Confirmei que, de alguma maneira, ela estava interessada em mim.

Foi com nenhuma surpresa que ela recebeu meu “sou brasileiro”. Confessou-me: “seu sotaque é uma graça”, o que explicou aquele sorriso constante durante minhas falas. Ademais, acresceu: “sou apaixonada pelo Brasil, o calor, as comidas, os sucos, o carnaval e especialmente os homens”. Após uma frase como essa, não poderíamos parar em outro lugar que não em meu pequeno apartamento, o palco de minha primeira noite de amor européia.

A partir dali, só pude agradecer ao meu companheiro. E só de pensar que eu quisera lhe dar umas boas bofetadas... De todo modo, nos meses que se seguiram eu e a loira namoramos até que um ano e meio desde aquela noite em Covent Garden resolvemos nos casar, apesar dos conselhos. As pessoas não aceitavam que eu pudesse me atrelar até o fim da vida a uma mulher que tinha levado para a cama logo no primeiro encontro. Cheguei a discutir com meu companheiro, o mesmo que havia me apresentado minha então noiva. Não dei ouvidos a ninguém e a nada que não ao desejo cego de acordar sempre ao lado de uma inglesa bela e sensual. Foi uma cerimônia simples, e saímos em lua-de-mel para o Brasil, pedido dela.

Eu retornava após a partida nada nostálgica. Ela ia em sua segunda vez. Na anterior, havia experimentado apenas o Rio. Sua real cobiça era Salvador. Chegamos num domingo e fomos nos hospedar num hotel na orla. Durante uma semana, visitamos praticamente todas as praias entre a Barra e uma Itapuã que nem de longe lembrava a de Vinícius. À noite, nosso itinerário compreendia alguns dos melhores bares e restaurantes do boêmio Rio Vermelho. Na semana seguinte interromperíamos a parte romântica do passeio, e iríamos conhecer os principais pontos turísticos da cidade, acompanhados por uns velhos amigos.

Foi no sábado seguinte que encontramos o vizinho do 201 dos tempos de Brasil. Ele se mudara para o condomínio apenas seis meses antes de eu partir, e nossa convivência se limitava a preguiçosos cumprimentos. Admito, custou-me reconhecê-lo. Tal foi que ele quem primeiro acenou naquele final de tarde no Museu de Arte Moderna, sediado no Solar do Unhão. Devolvi com um sorriso desconfiado, ainda sem saber exatamente de quem se tratava. Somente quando ele aproximou-se e desferiu um sonoro “olá, vizinho” soube quem era a figura.

Apresentei o vizinho à loira e logo estávamos os três conversando. Seu inglês era ótimo. Contou, em seguida, que passara dois anos no exterior. Tinha ido por conta própria trabalhar, talvez num daqueles empregos para estrangeiros de limpador ou cozinheiro. Não ousei perguntar. Ao retornar, comprou uma câmera profissional. Fotógrafo: essa era a profissão dele, o que só vim descobrir nessa conversa – nossa primeira, aliás. Engraçado, era como se eu estivesse conversando com uma outra pessoa e não com o vizinho pouco simpático de anos atrás. Certamente um biênio de Canadá lhe fizera bem.

A noite veio e ainda debatíamos sobre artes. O vizinho era modesto. Demorou até confessar que eram suas as fotografias em exposição no Solar. Não lembro se me desculpei pela gafe. Só lembro de estar encantado a cada moldura. No estacionamento do Museu, que projetava-se para o mar, músicos ofereciam seus acordes e refinada técnica aos orixás. Terminamos o encontro ao som dos instrumentos da jazz jam session, sob o céu negro e pontilhado de estrelas, e com a bela vista noturna da Baía de Todos os Santos.

Era segunda-feira de manhã quando deixei o hotel para ir à casa de câmbio e resolver alguns assuntos urgentes do trabalho. Na ocasião, disse à loira que provavelmente só retornaria à tarde, que ela almoçasse lá pelo hotel. Tomei um táxi e parti rumo ao Pelourinho. É fato, havia outros locais de troca, mas queria aproveitar para dar uma breve volta pelas ruas do centro histórico soteropolitano. Não sei em que parte do percurso, mas vinte minutos após ter partido, ocorreu-me que tinha esquecido as malditas libras para trocar. Pedi ao taxista que retornasse. Ele, feliz por ver crescerem seus lucros, atendeu e em mais vinte minutos estava de volta ao hotel.

Subi ao apartamento apressadamente, entrei e, ainda na sala, senti o ar tenso. Ao avançar até o quarto, ouvi gritos femininos e então recebi uma bordoada numa das têmporas. Antes de cair desacordado, uma vaga lembrança da loira semi-nua entre lençóis e um vulto conhecido escapando pela porta que eu deixara aberta.

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