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domingo, 13 de dezembro de 2009

ÊXTASE

José Guilherme Vereza

Julio comprou um binóculo. Só para assistir mais de perto o que o edifício em frente ao seu oferecia de tipos e situações. A estréia do binóculo foi desastrosa. Viu uma senhora mudando a roupa e ao perceber que estava sendo observada, a velha abriu-se num exibicionismo agressivo e constrangedor.
Julio atirou o binóculo pela janela. Jurou a si mesmo extirpar o vício que colocava remorso, vergonha e fraqueza, juntos, embolados na boca do estômago. O ato impulsivo de puro arrependimento fazia parte de um ritual, que tinha início em palpitações, excitações, ansiedade, clímax e desaguava, sempre, em ânsias indigestas. Aos engulhos, livrou-se da imagem da velha.
Mas Julio não se emendava.
Passada a ressaca, resgatou o binóculo entre as folhagens do jardim do prédio, sem um arranhão na lente. Sinal de que a qualquer momento, a função poderia recomeçar. Não com a velha na mira, mas com outras atrações.
Descobriu um paraplégico que gostava de bolinar a enfermeira.
Dessa vez não se tratava de alguém que avançara na idade,
mas de um quase quarentão bonitão, condenado pelo destino a rodar pra lá e pra cá com sua cadeira num cubículo pouco mais digno que uma jaula no zoológico. A enfermeira aparecia toda terça-feira, para ajudar nas tarefas básicas, arrumação, refeições, banho e satisfações íntimas sempre indiscretas. Não cuidavam os amantes de preservar a privacidade e cometiam o sexo possível em grandes performances a poucos metros de lentes curiosas.
Era tudo tão evidente, que Julio percebia o ronronar da mulher sentada de cócoras em cada braço da cadeira, movimentando seu pélvis de cima para baixo bem no rosto do homem. Os braços potentes do paraplégico empurravam o corpo da enfermeira já totalmente nua para si, mãos enterradas nos glúteos, como que quisesse se deixar asfixiar e acabar para sempre aquela busca incessante pelo que não existia mais.
Julio não se contentava em ver o que via. Imaginava.
Classificou o paraplégico como um potencial suicida, que sonhava morrer gloriosamente tentando dar marcha ré à vida, retornando ao lugar de onde nunca deveria ter saído.
Um dia, quem apareceu na porta de Julio?
A enfermeira.
-Com licença, o senhor não é o sujeito que fica de binóculo espiando o que eu faço com meu cliente
Julio se encheu de coragem.
- Sou eu mesmo. Aliás, era eu mesmo. Joguei o binóculo no lixo. Nada acontecia de novo naquelas janelas.
- Pois é. Por causa disso, meu cliente está deprimido. Não se interessa mais por mim...
- Lamento... mas espiar os outros não estava me fazendo bem.
A mulher começou a soluçar.
- Na verdade, não sou enfermeira. Nem ele é meu cliente, nem paraplégico. Somos casados e alugamos de um amigo aquela quitinete, toda terça-feira.
Julio silenciou. Nem uma pálpebra mexeu.
A mulher se desculpou, agradeceu e saiu enxugando as lágrimas.
Terça seguinte, Julio comprou outro binóculo.
E diante das suas lentes, viu um casal exuberante, fazendo o amor dos amores, em cima de uma cadeira de rodas.
Com direito a uma cúmplice piscada de olhos da enfermeira.
Ou melhor, da mulher em êxtase.

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José Guilherme Vereza
Carioca, botafoguense, pai de 4 filhos. Redator, publicitário, professor, roteirista, escritor, diretor de criação. Mais de mil comercias para TV e cinema. Uma peça de teatro: “Uma carta de adeus”. Um conto premiado: “Relações Postais”. Um livro publicado “30 segundos – Contos Expressos”. Mais de 3 anos na Samizdat. Sempre à espreita da vida, consigo modesta e pretensiosamente transformar em ficção tudo que vejo. Ou acho que vejo. Ou que gostaria de ver. Ou que imagino que vejo. Ou que nem vejo. Passou pelos meus radares, conto, distorço, maldigo, faço e aconteço. Palavras são para isso. Para se fingir viver de tudo e de verdade.
todo dia 20


3 comentários:

Caramba, ZéGui, não é que sábado, numa dessas arrumações de armários de fim de ano, encontrei um binóculo que nem me lembrava possuir.

Desde sábado ando espiando pela janela, em êxtase...com a paisagem. Me senti quase tocando na Ponte Rio-Niterói, tô que nem uma bocó, adorando a aproximação das coisas. E não sinto remorsos, não!

E adorei a piscadela, bem cinematográfica.

Olga! Você é uma personagem!!! Me diga tuuuudo o que seu binóculo só conta pra você!

Só se for personagem de filme Trash, ZéGui. E o meu binóculo, além de comportado, é provinciano, só conta sobre paisagens tijucanas.

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