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quarta-feira, 2 de dezembro de 2009

FOGETE PA LUA



Os filhos de Dona Ritinha eram terríveis. Depois que o marido sumiu com outra, ficou complicado segurar as rédeas das crianças. Katelyn era a mais velha, depois vinha Maycon, o do meio, e Bianca, a caçula. Os três irmãos traziam muita dor de cabeça à mãe, mas, independente disso, eram a felicidade da mulher. “Meus filhos são tudo pra mim”, não se cansava de dizer.
Com seus vinte e nove anos – aparentando quarenta –, Dona Ritinha se virava como Deus permitia. Vez por outra, lavava roupas, fazia bijuterias... Até tirava uns trocados, mas era difícil levar a vida.
Sem muita escolha, começou a ensinar Katelyn nos afazeres domésticos. E, com apenas seus oito anos, a menina já limpava boa parte do barraco em que viviam e também ajudava a supervisionar os irmãos, que auxiliavam apenas nas tarefas mais simples. Maycon, com sua meia dúzia de anos, tirava o pó da maneira que achava certo. Já Bianca tornou-se uma habilidosa arrastadora de coisas que, em sua maioria, existiam há muito mais tempo que os seus cinco aninhos de idade. Assim levavam a vida: com o pouco que Deus dava, mas sempre ajudando uns aos outros.
Em suas muitas tentativas de conseguir melhor emprego, Dona Ritinha finalmente teve retorno. A entrevista foi marcada, e a felicidade só não foi maior por conta de um detalhe: com quem ela deixaria as crianças? Sem nenhum parente próximo, não tinha a quem recorrer. Nunca teve proximidade com os vizinhos, não confiava neles. Pensava, pensava e não achava solução, via-se num beco sem saída.
No dia da entrevista, Dona Ritinha chamou a filha mais velha:
– A mãe vai sair, mas não vai demorar. Cuida dos seus irmãos direitinho e, se alguém chamar, não abre a porta. Finge que não tem ninguém em casa, tá bom? Fica com Deus e vê se não mexe onde não deve!
– Mas, mãe...
– Sem choradeira! Vou ver uma coisa boa pra nós, filha. Se comporta que a mãe não demora.
Beijou a menina, trancou a porta e, com o coração na mão, foi à entrevista.

***

– Pára de brigar! – Katelyn gritava com os irmãos.
– É ele, Kate! – acusou Bianca, chorosa.
– Pára, Maycon! – Katelyn gritou mais alto.
– É ela, Kate! – retrucou Maycon, com voz de indignação.
– Pára, Bia! – berrou Katelyn.
Ao último grito, Bianca entortou a cara e começou a chorar. Dirigiu-se a seu local da amargura: debaixo da mesa. Katelyn foi atrás, agora, com voz suave:
– Bia, não chora. Era só brincadeira... Eu não briguei com você, não...
– Sai! – gritou Bianca.
– Ó, vamos brincar de fazer uma surpresa pra mãe? Hein? Daí, quando ela voltar, vai ficar feliz com a gente! – falou Katelyn, tentando entusiasmar a caçula.
– Sai! – desta vez, Bianca gritou com tanta força que ficou vermelha.
– Tá bom, então, eu vou brincar com o Maycon. Ô, Maycon – chamou –, vamos brincar de fazer uma surpresa pra mãe?
– Brincar de surpresa? Vamos – disse, meio desconfiado, o menino.
– E o que a gente pode fazer pra mãe ficar bem feliz? – perguntou Katelyn.
– Um foguete – quem respondeu foi a caçula, ainda com lágrimas nos olhos, mas com o choro nervoso transformado em pequenos soluços.
– Isso, Bia! Que legal! A gente viu o foguete na televisão aquele dia, né?
– Saía um fogo bem grandão – disse Maycon, enquanto abria os braços. – E a mãe gostou!
– Ela falou que ia para a lua um dia! – exclamou Katelyn, sorrindo. – A gente faz o foguete e vai hoje, quando ela chegar!
– Ê!!! – gritou Bianca, saindo correndo de seu canto da amargura. Quase no mesmo instante, já voltava arrastando uma caixa de papelão. – É o foguete – disse, colocando a caixa na frente dos irmãos.
– Legal, Bia! – aprovou, Katelyn. – Só que tem que ser mais grande, senão a mãe não cabe. Vem, ajuda aqui – pediu apoio enquanto puxava a caixa que, dentro, já tinha o irmão fazendo sons dos mais fantasiosos foguetes.


Além de terríveis, os filhos de Dona Ritinha eram criativos, muito criativos. O que começou apenas com uma caixa de papelão resultou numa engenhosa nave espacial para quatro tripulantes, formada por caixas, vassouras, cobertores, um ferro de passar roupa e panelas.
– Põe isso aqui também – sugeriu Maycon, com uma antiga torneira na mão. – Pra beber água.
– É mesmo, Maycon, na lua também deve dar sede – concluiu, alegre, a irmã mais velha.
A construção foi arquitetada próxima à porta por onde Dona Ritinha havia saído. O foguete era um conjunto de bugigangas que ocupava boa parte do cômodo. Ao seu lado, foi improvisado um pequeno letreiro: “FOGETE PA LUA”, feito por Katelyn com esmalte de unhas. O trabalho durou a manhã inteira, mas ainda não estava terminado.
– A gente tá se esquecendo de uma coisa... – insinuou Katelyn.
– O quê, Kate? – os irmãos perguntaram quase que simultaneamente.
– Lembra do “fogo bem grandão”, Maycon? – ela indagou.
– É... – o menino respondeu com olhar de quem recebe uma revelação divina.
– Fogo bem grandão! Fogo bem grandão! – Bianca repetia em forte coro, ao que os outros se juntaram num empolgado refrão. E enquanto saíam, felizes, à procura da última parte do foguete, Dona Ritinha, triste, iniciava seu trajeto de volta, ainda desempregada e sem fazer a menor ideia da surpresa que os filhos haviam lhe planejado.

***

A primeira coisa perto de “fogo bem grandão” que as crianças conseguiram foi uma singela chama de palito de fósforo.
– Isso é nada de nada – indignou-se Katelyn. – Não serve.
– E agora? – questionou Bianca.
– Vamos procurar outra coisa – respondeu Katelyn. – Mas, tem que ser grande.
Maycon, com um leve sorriso e os olhos arregalados, virou-se para as irmãs.
– O fogão da mãe! – falou, empolgado.
Os três correram até a cozinha e se juntaram para arrastar o fogão. Logo perceberam que a tarefa era impossível para eles, não tinham a força necessária.
– E agora? – era Bianca, novamente.
– E agora? E agora? – imitou-a Katelyn, enquanto olhava ao seu redor. – Já sei! A gente leva só o botijão de gás! – exclamou, eufórica. – Vai ser a turbina do foguete!
– Turbina, turbina! – Maycon e Bianca iniciaram um novo coro.
Fazendo grande esforço, Katelyn tentava soltar a chave da mangueira do gás.
– Está muita dura – reclamou aos irmãos.
Pouco depois, teve uma ideia. Foi até a pia, pegou uma faca e, com ela, cortou a mangueira.
– Agora sim! – falou e sorriu, satisfeita.
Assim que o corte foi feito, pôde-se ouvir um pequeno e constante chiado sendo emitido pelo botijão. Além disso, um cheiro estranho começou a infestar o ar.
– Turbina fedida! – reclamou Bianca, fazendo uma careta.
Não sem dificuldades, os três arrastaram a “turbina” até o foguete. O odor desagradável tornava a tarefa mais penosa, mas a vontade de ver a mãe contente era maior.
Encaixaram o botijão na parte traseira da nave espacial. O resto de mangueira pendia como um pavio, pronto para ser aceso.
O cheiro forte inundava o ar quando as crianças ouviram o barulho do portão. As três começavam a se sentir mal e Bianca deixava escapar uma tosse seca.
– Bia, a mãe chegou – alertou Katelyn. – Fica quieta agora pra gente fazer surpresa. E, Maycon, entra logo no foguete – começou a sussurrar. – Quando a mãe abrir a porta, eu acendo o fogo da turbina, falo pra ela subir rapidinho na nave e a gente vai pra lua!
Katelyn segurou a caixa de fósforos na expectativa, enquanto Dona Ritinha pegava a chave. A menina fez um sinal para os irmãos abafarem o que não sabia se era tosse ou risos.
Dona Ritinha abriu a porta e, espantada, percebeu o forte odor que dominava o lugar.
– Meu Deus, que cheiro de...
A fala não foi terminada. Katelyn riscou o fósforo e acendeu a turbina do “FOGETE PA LUA”. A decolagem foi tão rápida que quase não houve tempo de Dona Ritinha subir à nave.
A família elevou-se pelo céu deixando como rastro uma bela cauda de fogo. A explosão de lançamento foi de tal maneira intensa que o barulho pôde ser ouvido a quilômetros de distância. O barraco foi totalmente dizimado, levando consigo várias moradias vizinhas, tomadas por um violento incêndio.
Dona Ritinha ficou extremamente feliz com a surpresa planejada pelos filhos. Via sua casa destruída, mas não se importava – estar na lua compensava tudo. Os três irmãos alegraram-se ao perceber o sucesso do plano.
Chegando ao destino, a mulher comentou que a viagem tinha lhe dado sede. As crianças entreolharam-se e sorriram. Maycon mostrou a antiga torneira que se lembraram de levar. Satisfeita, Dona Ritinha beijou os filhos e decidiu que não mais sairiam dali. A lua era o lugar deles.

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