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quinta-feira, 10 de dezembro de 2009

O Rei dos Judeus


14 de Nisan, ano 3790 do calendário hebreu
Jerusalém, Judéia

Sim! Agora eu percebo claramente!
É agora que os céus se abrem e os anjos descem para me suspender?
Onde? Onde está o meu refúgio e a minha salvação, meu Pai? E as promessas com as quais Você me convenceu?
Aguda sensação de dor por todo meu corpo. Meus pulsos doem, meus pés também. Alguém está puxando o meu polegar do pé. Um cão. Sou o repasto das aves de rapina e dos cães selvagens. Prometeus crucificado. Em breve, o abutre de Deus pousará sobre mim para devorar meu fígado.

— Saia daqui, seu animal repugnante! — o soldado romano repele com sua lança o animal — Desculpai-me, vossa majestade. Estes cães não mais vos importunarão!

Sim! Vocês podem zombar e rir de mim. Eu sou o bode expiatório; vocês, romanos, são incapazes de compreender o destino dos hebreus. Nós nascemos para o cativeiro e para a morte. Nossa história é marcada pelo sangue dos nossos ancestrais; é na morte que nós renascemos e buscamos forças para persistir. Vocês estão certos, sou um rei, mas não deste mundo. Abaixo, estão Maria, João, Salomé e minha mãe. O meu Reino não é daqui, pois, se fosse, os meus seguidores teriam morrido por mim.

Ó Jerusalém, que mata os seus profetas! Ó cidade maldita, assentada sobre a nação mais infeliz do mundo. Serva ignóbil do invasor; verme de Sião; de vós exala o odor repugnante da carnificina; de vós exala o enxofre da corrupção. Vós, que foste a morada do rei, convertestes-vos nesta imundície que repele o olhar. Quisera eu estar mil vezes voltado para o monte Gerizin, local santo dos samaritanos, ou para Roma, a capital fétida dos pagãos, a morrer tendo-vos como panorama. É em vós que habita os corações endurecidos dos fariseus, a ganância dos saduceus, a intolerância e a soberba dos escribas; é em vós que reside toda a sorte de bandidos e assassinos; bêbedos e prostitutas. Ó Jerusalém, ó cidadela pútrida.

Foram muitos os dias que vaguei por estas ruas nojentas, rodeado por traidores e sacerdotes vorazes pela minha execução. Não encontrei nenhum ouvido cativo, nenhuma alma disposta a seguir-me até o mais profundo dos abismos. Aqueles em quem depositei minha confiança fugiram. Melhor para eles! Não estão agora dependurados por cravos como eu! Como dói o peso do abandono, mais do que o peso do meu próprio corpo que devo suspender agora para conseguir respirar. Eu cria que minhas palavras eram como ar para eles, mas não! Meus ensinamentos eram como manjares, que num dia se come e dele se farta, noutro, porém, se na ausência deste quitute, apenas o pão basta. Só que eu não posso deixar de respirar o Reino, pois ele sou eu. Renegar o que eu disse seria renegar a mim mesmo. Na verdade, a minha atual condição é apenas a devida conclusão da minha tortuosa missão.

Meses, anos, passaram como raios que rasgam o céu em noite de tempestade. Ninguém vê de onde vêm, tampouco onde caem. Tão rápido quanto estes relâmpagos sou eu. Do dia em que saí da minha vila até o momento em que cheguei em Jerusalém não se passaram muitas estações. Vivi menos primaveras do que gostaria; no entanto, penei demais nesta vida amarga. Deus me cumulou de belas palavras e do poder para inculcar fé nas pessoas mais humildes e ignorantes. Elas me seguiram até o dia em que isto lhes foi conveniente. Morrer por uma crença nunca foi nem jamais será agradável a pessoa alguma. Apenas profetas e loucos sacrificam-se por um causa.
E eu, o que sou? Profeta ou louco?

Olho para os soldados que me crucificaram e sinto compaixão por eles; amo-os, não dissimuladamente, mas com toda a sinceridade do meu coração. Olho para os sacerdotes que me maldizem e os amo; olho para João e Salomé, caros amigos, para Maria, adorada esposa, para minha mãe, e o meu peito se incendeia. Talvez seja o ar que entra rasgando com dificuldade nos meus pulmões. (É tão difícil inspirar nesta posição!). Mas talvez seja a flama do amor, a qual eu vim alimentando durante toda a minha vida. No início, eu temia o seu poder, mas fui obrigado a reconhecê-la como a minha maior arma. Se eu odiasse, eu não estaria aqui. Se eu odiasse, eu não estaria morrendo, mas sim matando. Se eu quisesse mal àqueles que me querem mal, tudo seria diferente. Mas eu amo! Amo as pessoas e os animais, o sol, a lua, a terra e as espigas que crescem no campo. Amo esta cruz que me mata! Talvez eu a ame mais do que tudo, porque, para mim, ela é libertação!

Fui iludido. Não há hostes celestiais para me receber no paraíso; não há som de trombetas. Não há nada. Um vazio me invade; um vazio mais forte que o amor. Estamos perto do fim. Acredito que, se alguém um dia se lembrar de mim, ele possa aprender uma lição: toda profecia, cedo ou tarde, se realiza. Eu sou o bode expiatório. Mas não purifico pecado algum, nem do meu povo, nem dos meus amigos, nem sequer os meus próprios. O único pecado que carrego sobre mim é o de falar a verdade. O maior de todos os pecados!

Meu Pai me esqueceu. Desviou seus olhos de mim e me deixou para morrer. Não sou o único; companheiros meus agonizam ao meu redor. Não só eles, estes soldados, os sacerdotes, meus amigos e familiares, toda a Jerusalém, agonizam. O fim está próximo e não haverá clemência para nenhum deles. Deus se disfarçou de ovelha, mas Ele é um lobo! Ele me fez acreditar que nos amava, obrigou-me a mentir para o povo, mas somente agora eu percebo: Deus criou um mundo imperfeito para nos castigar. Somos crianças levadas sofrendo uma severa punição. Não há anjos nos protegendo porque não merecemos. Nosso destino é o sofrimento. No fim, há somente a morte. Triste constatação, a mais pesarosa de todas. Basta desta vida! Não posso suportar mais!

— Meu Deus, meu Deus, por que me abandonaste?

Extraído da obra "O Rei dos Judeus"

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