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quinta-feira, 5 de novembro de 2009

Um muro de intransigência


Joaquim Bispo


O que aconteceu esta manhã conta-se em poucas palavras: um lunático entrou em Jerusalém vindo da Cisjordânia, acompanhado por um pequeno grupo de adeptos determinados. Devem ter passado, dispersos, as barreiras militares do muro, para não levantar suspeitas do Tzahal. Chegados às imediações da cidade, o líder mandou dois discípulos buscar uma burra, que estava presa, não muito longe, com a sua cria. Quando a trouxeram, os discípulos aparelharam-na com simples panos, ele montou-a e assim entrou em Jerusalém. A estranha personagem e os seus acompanhantes, todos de sandálias e túnica, cabelo comprido e cabeça descoberta, foram aplaudidos pelos transeuntes, sobretudo jovens, aparentemente entusiasmados com a performance, e houve quem estendesse no chão folhas de palma e mesmo roupas pessoais, para o grupo passar.
O episódio foi ignorado por quase todos os correspondentes estrangeiros, devido ao seu carácter irrisório e quase anedótico.
Quem me relatou os pormenores deste caso foi um homem de nome Zaqueu que, por ser pequeno, trepou a uma palmeira e assistiu a tudo. Disse-me que o chefe do grupo nasceu na Galileia, numa aldeia chamada Nazaré, actualmente ocupada por Israel. Viu a terra, que ele amou na adolescência, ser colonizada aos poucos por gentes vindas de várias partes do Mundo e tornou-se um revoltado. O seu carácter meditativo não o atirou, porém, para os braços da OLP ou do Hamas. Formou, no entanto, um grupo de activistas pacifistas que pretende, através da persuasão e de acções não violentas, consciencializar os habitantes de ambos os lados para a necessidade de se aceitarem mutuamente e partilharem o território em dois estados irmãos.
Diz ele que não faz sentido que Israel queira reconstituir o estado com o mesmo território que dominou nos tempos áureos, mas que foi desmembrado há mais de dezanove séculos. Essa pretensão, diz, é tão absurda como os Árabes quererem reconstituir o califado de Córdoba no território da Península Ibérica, extinto, também, há séculos, ou o povo Inca tentar reanimar o seu antigo império destruído pelos Espanhóis, ou os descendentes dos Cátaros reivindicarem o Languedoc para reorganizarem a sua religião. E que, a exemplo de Israel, organizassem um exército e começassem a expulsar os habitantes actuais desses territórios, recorrendo ao morticínio, se necessário.
Avesso à violência, também condena os actos de intolerância dos palestinianos para com os ocupantes, mas compreende o seu desespero. Diz ele, falando aos que param a ouvi-lo:
– Um homem plantou uma vinha, cavou-a, tratou-a, construiu-lhe um lagar e uma adega. Um dia, vieram uns lavradores e propuseram arrendar-lhe a vinha. Assim se fez, mas quando o dono da vinha enviou emissários a recolher a renda, estes foram apedrejados, feridos e alguns mortos. O mesmo fizeram ao filho do dono da vinha, cuidando apoderar-se definitivamente da herança dele. Agora, dizei-me compatriotas, quando vier o dono da vinha, que fará ele àqueles lavradores?
Com exemplos propícios à reflexão, como este, vai tentando mostrar a razão dos desapossados.
Mostra ser muito sagaz, embora idealista. O episódio de entrar em Jerusalém a cavalgar uma burra parece ter sido preparado meticulosamente para corresponder à profecia de Zacarias (Zc 9,9): «Regozija-te ó filha de Sião. Eis que vem a ti o teu Rei, justo e salvador. Ele é humilde e vem montado numa burra, e sobre o potrinho da burra.» Nicodemo, um membro do Knesset, que acedeu a comentar o episódio, é da opinião que esta entrada messiânica em Jerusalém foi uma estratégia pensada para chegar aos judeus mais conservadores.
Aparentemente, esta mensagem visual não passou, apesar da relativa algazarra que os jovens militantes anti-guerra produziram durante todo o percurso da comitiva até à esplanada do Muro das Lamentações, onde muitos judeus fanáticos cabeceavam a afirmação dos seus preceitos religiosos. Aí, talvez por não ter tido a atenção que esperava, começou a gritar palavras de ordem em aramaico, a plenos pulmões, provocando os orantes, enquanto puxava as melenas a uns e desbarretava outros, sempre numa atitude de grande irreverência e insolência.
O burburinho foi imediatamente detectado por uma patrulha militar que, com grande aparato bélico, o intimou a parar. O homem não só não parou como começou a apontar a mão estendida para os soldados, com dois dedos unidos levantados. Não se sabe se os soldados entenderam esse gesto como agressivo, ou se simplesmente não toleraram a desobediência; certo é que alguns disparos foram ouvidos e o nazareno caiu com a túnica ensanguentada. Morreu pouco depois no hospital. Os companheiros foram presos e estão acusados de alteração da ordem pública, que poderá, eventualmente, evoluir para traição.
Só então as agências noticiosas se movimentaram e conseguiram comprar uma gravação de telemóvel feita por um turista.
Este episódio é bizarro, mas estará esquecido em breve. Apesar do clamor internacional que tem denunciado a força excessiva utilizada pelo estado hebraico contra os opositores à anexação de território palestiniano – destruindo cidades, utilizando fósforo branco e outras armas proibidas contra populações civis, exterminando indiscriminadamente sem olhar a idades – a determinação dos dirigentes israelitas em reconstituir a grande terra de Canaã das escrituras tradicionais é inamovível, respaldada na posse das únicas armas nucleares da zona, e no apoio incondicional do novo império romano, que parece disposto a tudo para ter um aliado fiel junto ao oceano subterrâneo de petróleo.
Isolado na região, este país asiático, sequela dos complexos de culpa europeus, patenteia, ridiculamente, essa relação umbilical integrando, por exemplo, os torneios de futebol europeus ou os festivais de canções europeus, incapaz de uma identidade médio-oriental, que procura no território mas rejeita na cultura.
Cultivando a segregação, prossegue a construção de uma linha de betão de oito metros de altura e setecentos quilómetros de comprimento, a marcar a fronteira, segundo a sua interpretação, anexando Jerusalém oriental e isolando 450.000 pessoas.
O nazareno pacifista é a mais recente vítima anónima deste enorme equívoco.

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