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sexta-feira, 20 de novembro de 2009

Invasão nas ondas médias

Léo Borges



– Doces ou travessuras?


– Como “doces ou travessuras”? Como seus pais deixam vocês soltos numa noite como esta? Não estão ouvindo as notícias?


O tenente Mark Budd não entendia como algumas crianças mantinham as inocentes brincadeiras do Dia das Bruxas mesmo com a tensão que pairava sobre aquele 30 de outubro. Capetas e vampiros desavisados ainda perambulavam pelas ruas, ignorando a batalha incipiente, fidedignamente transmitida pela Rádio CBS.


O militar estava transtornado. Participara da guerra de 1914 no apoio dos Estados Unidos à Tríplice Entente como soldado raso, onde sofrera ferimentos de todo o tipo (além do psicológico abalado pela morte dos colegas de farda) e agora se via novamente frente à outra, talvez ainda mais devastadora.


– Mulher, você não vai acreditar! Notícias e mais notícias sobre a assombrosa invasão marciana e idiotas vestidos de diabos e bruxas aí fora desfilando!


Rose Budd, assustada desde que sintonizaram o drama nas ondas médias, via sua aflição aumentar gradativamente com o pânico disseminado pelo professor Pierson, codinome do produtor radiofônico Orson Welles. Este narrava o estranho episódio de OVNIs que invadiam o espaço aéreo americano e, vez por outra, abria espaço para que gritos histéricos de repórteres e de pessoas sendo caçadas por insuspeitos seres esverdeados fossem levados a toda a nação. Muito longe de ser uma tragédia comum, aquilo era uma impensável ocorrência extraterrestre. Alienígenas estavam atacando o mundo e a tecnologia dos novos aparelhos de radiofreqüência servia apenas para que o medo se espalhasse mais rápido.


– Meu Deus, Mark! Estamos nos curvando para esses seres de Marte!


O tenente Budd, procurando ripas no sótão, não ouviu o comentário. Estava mais preocupado em encontrar objetos que pudessem ajudá-lo a lacrar as possíveis entradas, dificultando, assim, o acesso dos inimigos verdes à sua casa. Ainda incrédula, Rose mudou de estação para ouvir o que outras rádios poderiam estar falando sobre o terrível acontecimento. Captou uma estação com notícias internacionais:


A poetisa Gertrude Stein continua defendendo a entrega do Nobel da Paz de 1938 ao líder alemão Adolf Hitler. Este posicionamento é compartilhado por Chamberlain, que acredita nas promessas deste novo ícone mundial. Robert Kolgest, analista geopolítico presente aqui em nossos estúdios, crê que, através destas conexões políticas, a paz vigorará inexoravelmente neste planeta no início da nova década...


– Ora, Rose – interrompeu Mark –, estamos vivendo uma guerra dos mundos e você muda o dial para alguém falando em “paz na nova década”?! Não sabemos nem se vamos estar vivos em 1939! Quem quer saber sobre Nobel da Paz neste momento? Volte para a CBS!


A história da guerra interplanetária ganhava força no boca a boca e as ruas, aos poucos, se esvaziavam, com os foliões, em fuga, abandonando suas fantasias. Welles era enfático ao informar que muitos já haviam sucumbido ante os raios de esquisitas armas e os que ludibriavam a morte eram, de qualquer modo, cooptados e tinham a consciência subtraída; o Halloween, de mera ficção, ganhava personagens reais. Rose, subitamente, lembrou-se dos pais, idosos, moradores do quarteirão vizinho.


– Vou ver meus pais – disse e saiu por uma janela que ainda não fora vedada.


– Está louca?! Quer ser abduzida? Eles estão bem! Meu sogro não saiu de casa nem para saudar Roosevelt em seu comício! Não é agora, no meio dessa calamidade, que o velho vai botar a cara na rua.


– Você é das Forças Armadas! Devia estar fazendo alguma coisa além de se acovardar escorando madeiras nas portas e janelas! – berrou a mulher, nervosa com o marido.


Rose saiu sem olhar para trás. O dever de cuidado com seus pais era maior do que o temor por encontrar bizarros ETs pela frente. Corria aos tropeções sob os olhares atônitos de pessoas escondidas em suas casas, agora transformadas em verdadeiras fortalezas.


No meio do caminho, chorou. Com tanta tecnologia bélica o homem ainda era incapaz de fabricar armas que evitassem um problema de tal magnitude. Mas, esperar o quê de seres que constroem um opulento e, afirmado pelas autoridades navais, extremamente seguro navio para, logo em sua primeira viagem, afundar? Isso sem falar na bestialidade da sangrenta guerra – esta puramente humana – de vinte e quatro anos atrás. O mundo estava mesmo perdido. Talvez a invasão dos marcianos não fosse de toda ruim. Iriam destruir essa medíocre e ignóbil civilização e criariam uma nova, mais inteligente e justa.


Num átimo, Rose se enxergou ao lado de um dos dominadores esmeraldinos, quem sabe o mais robusto e poderoso, alguém que fosse o mentor de toda a invasão. Um giro rápido e confuso de recordações entrecortadas fez deste pensamento um paralelo com seu casamento e de como o condicionara à ascensão de Mark no meio militar. A convicção de que somente amor não mantém relacionamentos (muito embora não admitisse ser taxada como uma pessoa materialista) sempre a acompanhou e, por isso, acreditava que estar perto dos vencedores era um meio legítimo de proteção e, por conseguinte, de sobrevivência.


Mas o desvario, revestido por uma grotesca carga libidinosa, a fez corar de vergonha e entender que aquilo era pecado não apenas macabro como também digno de severo castigo. O remorso obrigou-a, então, a correr ainda mais rápido, como se, agora, lutasse para escapar dos insidiosos flashes que açoitavam sua mente. Enquanto corria, viu restos de capas, máscaras mortuárias e cruzes de madeira esquecidas nas calçadas. Ninguém nas ruas além dela e de sua sombra criada pelos antigos postes de ferro do subúrbio de Nova Jersey. Durante a sôfrega correria, a mulher passou perto de uma casa que também ouvia, em alto som, o noticiário que vinha tirando sua paz:


Pierson, eles estão chegando à Manhattan. São muitos e são hostis. Nossa correspondente em Detroit foi atacada e virou um zumbi. Vou suspender a transmissão. Nick Rogers diretamente de Nova York. Que Deus nos proteja...


– Como? Como é que isso pode estar acontecendo? Não é possível! – balbuciou Rose para si mesma. – Aquele alemão que está concorrendo ao Nobel da Paz deveria se pronunciar. Vir a público para dar alguma esperança às pessoas. Falar sobre algum projeto para eliminar essa praga sideral que assolou o mundo...


Desanimada e sem fôlego, Rose caiu ajoelhada, olhando para o firmamento e clamando por Deus; o céu estava limpo, mas a luz das estrelas parecia ocultar o brilho dos discos voadores. Em sua frente, repousando no asfalto, apenas uma sarcástica e oca abóbora, vazada com seu indefectível sorriso demoníaco. Os invasores esperaram o Halloween para poder concretizar o plano. Nada mais perfeito: bruxas e marcianos. Era isso! Eram seres realmente evoluídos. Estudaram o comportamento e as tradições dos humanos por anos! Uma noite como aquela, onde todos festejavam o Mal, era perfeita para a conquista da Terra.


Rose, já sem esperanças em uma vitória da Humanidade, chorava copiosamente quando um soturno homem de terno surgiu em sua frente, oferecendo o braço para ajudá-la a se levantar.


– Q-quem é você?


– Pegue esse pão embebido em groselha. Um doce aliviará seu pânico pela travessura.


Mesmo estranhando aquela aparição, Rose aceitou a ajuda e, lentamente, ergueu-se.


– Doce? Travessura? Meu senhor, ainda brincas de Halloween? Que calma é essa?


– Desconfie do que ouve e tenha cuidado com os verdadeiros invasores – disse, com paciência, o misterioso sujeito, afastando-se, logo após, num calmo vagar. Antes, porém, deixou um livro sobre a abóbora com os dizeres: A Guerra dos Mundos – H. G. Wells.


A simples presença daquele exemplar iluminou a mente de Rose de tal modo que a escuridão de desconfianças dissipou-se de imediato, permitindo que o silêncio noturno rapidamente invadisse seus ouvidos. Não havia nenhum ruído de armas estelares ou de monitoramento do espaço terrestre; não havia naves; não havia marcianos; não havia invasão. Mas ainda assim a mulher sentiu as pernas tremerem, pois a calmaria, de tão mórbida, gerou-lhe um súbito e intenso calafrio. Quem era aquela pessoa?


– Qual o seu nome, cidadão? ­– indagou com algum receio.


De longe, sem se virar, o homem respondeu:


– Kane.

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