Receba Samizdat em seu e-mail

Delivered by FeedBurner

sexta-feira, 13 de novembro de 2009

Deus me perdoe, era tudo o que eu queria

José Guilherme Vereza

O quarto tinha cheiro de comida velha. A fumaça da fritura vagabunda vinha do porão da espelunca, atravessava o basculante e impregnava tudo: as paredes, os lençóis grossos, os travesseiros toscos, a cortina pesada de veludo que vedava a janela. Ao lado da cama, sobre o criado-mudo, uma moringa, dois copos e um abajur empoeirado. No que se diz banheiro, o mínimo. Uma privada sem tampa, um cano no lugar de um chuveiro e uma pia amarelada e torta no canto, um espelho redondo e duas toalhas aparentemente limpas penduradas na maçaneta da porta. Ao longe, vestígios de um rádio ligado sujavam o silêncio. Deveria ser fim da tarde quando a porta se abriu e de lá surgiram Ademar e uma moça, como se fossem um corpo só, tal a sofreguidão dos beijos, apertos, passadas de mão e entrelaços de pernas, cambraias e linhos se rasgando, botões voando, gemidos, muitos gemidos ecoando, antes mesmo de a porta ser trancada pelas mãos hábeis da mulher. Não perderam tempo. Uma vez trancafiados, mergulharam um no outro sobre a cama, num balé animal, aflito e ruidoso, que não durou mais do que o suficiente para Ademar se dar por satisfeito.
- Como é mesmo o seu nome?
- Margareth.
- Você vem sempre nesse lugar?
- Umas quatro vezes por semana, tirando sábado e domingo.
- Você não trabalha sábado e domingo?
- É a minha folga.
Ademar esfregou a testa, coçou a cabeça, vasculhou o ambiente com os olhos. Estranhou tudo.
- Margareth... é Margareth, não é? Me diga, minha filha, como foi que chegamos aqui?
- De táxi, não lembra?
- Não lembro. A bebida me faz mal.
- Percebi. O senhor gozou rápido.

***
Ademar estava zonzo. Embora há tempos quisesse viver um encontro arriscado com sabe-Deus-quem, não entendeu se deu conta do que fazia naquele lugar. O uísque ordinário tinha um efeito devastador e, aos tropeços, tentou recolher as roupas que se espalharam pelo chão. Apertou os olhos, tentando enxergar o que acabara de cometer nos últimos instantes.
- Como é que conheci você?
- Na mesa do Calypso. O senhor foi logo sentando e perguntando quanto custava. Nem teve a elegância de me perguntar o nome.
- Elegância?
- É. A gente costuma fingir que está começando a viver uma romance.
- Romance?
- Por que não? Essa profissão me dá o direito de me iludir, iludir os clientes, iludir o tempo, até o momento em que o dinheiro voa, voa, voa e pousa na minha bolsa.
- Quanto foi que combinamos?
- Não acabei o serviço ainda. O senhor me falou na mesa que queria me namorar muito. Prometeu o céu, as estrelas, o universo. Prometeu me levar a um programa da Rádio Nacional.
- Não, minha filha. Não considere o que eu disse. Nem eu considero o que eu disse.
- Vem cá, senhor, relaxe. Não me deixe com saudade de ainda há pouco. Tenho muito trabalho gostoso pela frente.

***

- Dessa vez o senhor demorou mais a gozar… está se acostumando comigo?
- Não, minha filha… estou sendo empurrado por sei-lá-o-quê para dentro de você… sem comentários, nem perguntas. Por favor.
- Não se preocupe. Sou discreta e nada curiosa. Faz parte da natureza do meu negócio.
- Não fale em negócio! Estamos aqui para viver uma paixão, um romance.
- Bravo! Que bela surpresa! Admitindo o nosso romance, hein? Pelo que estou vendo o uísque ordinário está perdendo o efeito. Quer apostar que agora sua cabeça vai virar uma bigorna?
- Tem água nessa pocilga?
- Vira a moringa no copo e senta aqui no meu colinho. Vamos cuidar da ressaca que o tempo é uma criança.
- Criança… criança…. seu filho é menino ou menina?
- Mas que observador! Reparou minha cicatriz da cesariana!
- E também seus bicos dos seios escurecidos. Deve ter amamentado de três a quatro meses, quando as glândulas mamárias secaram. A partir daí, a repetição de uma massagem assim e assado, devolveu à dona esses dois manjares, que agora repousam sob minhas mãos.
- Então, já que o senhor descobriu que sou mãe… adivinhe se a criança é filho ou filha da puta…
- Que palavreado horrendo! Mas eu perdôo. Você é muito graciosa, mãezinha responsável. Com quem fica a criança quando você trabalha?
- Com minha tia. Tenho uma vida muito difícil. Perdi meus pais muito cedo. Minha mãe morreu tísica logo que nasci. Meu pai, no auge da mocidade, se meteu numa briga na Galeria Cruzeiro. Foi esfaqueado e não resistiu. Fui criada por uma tia, prostituta de luxo, que fazia vida num belo apartamento no Catete, mas perdeu tudo no Cassino da Urca. Por gratidão e vocação, entrei nessa vida para sustentar a tia e acabei arrumando uma criança para dar mais trabalho, adivinha a quem?
- A coitada da sua tia.
- A própria, pobrezinha. Na verdade, não tenho o que me queixar, mas pela infância que tive com a velha tia Aurita, que não poupou a melhor educação, os melhores hábitos, os melhores livros e as roupas mais finas à sobrinha órfãzinha, até que eu merecia um bar melhor que o Calypso. Merecia umas roupinhas mais chiques , merecia freqüentar um hotel no Lido, em Copacabana, no Flamengo, enfim, um lugar menos ordinário do que esse aqui na Mem de Sá.
- Não fale mal deste paraíso. É o nosso ninho de amor.
- Por favor, vamos devagar com as ilusões. Daqui a pouco o senhor me paga, vai para a casa e eu volto para o Calypso, para mais uma rodada no meu taxímetro.
- Mas enquanto daqui a pouco não chega, vamos aproveitar esse pouco que nos resta.

***

Algumas horas antes, a moça chegava ao Calypso, bem antes da fervura do local. O bar de encontros começava a ficar interessante a partir das seis e meia, quando senhores vetustos de jaquetão e relógios de bolso deixavam a fineza na calçada e se esborrachavam no uísque ordinário servido em pequenas mesas de tampo de mármore, quase sempre já preenchidas por duas – ou às vezes três – raparigas disponíveis. Ocupando uma boa mesa, bem perto da entrada, a moça queria logo ser vista e desejada pelo primeiro cavalheiro que da porta surgisse, desde que cumprisse seus caprichos e requisitos. Foi abordada pelo garçom, que estranhou sua presença ali, naquele momento tão adiantado. Mas como bom anfitrião, deixou-a completamente à vontade, além de lhe acender um cigarro e servir um drinque de boas-vindas.
No piano, um tipo quase imberbe, cabelo de glostora e colarinho troncho, mal dedilhava um bolero, enquanto fumava um mata-rato impertinente, tão denso, mas tão denso, que pouco se enxergava o balcão às suas costas, de onde a moça viu surgir um vulto cambaleante em sua direção, que, sem cerimônia – ou sem conhecimento dos estatutos do local –, sentou-se ao seu lado e foi logo colocando a mão direita na sua coxa. Sem dúvida, uma intimidade de provocar arrepios.
A conversa durou pouco. Mal se apresentaram, mal se enxergaram. Não chegaram a trocar nomes, mas acertaram uma saída urgente, já que um lugar mais aconchegante e discreto poderia ser mais apropriado para escoar toda a excitação. No táxi, beijaram-se com sofreguidão e só pararam quando o motorista estacionou na porta de um prédio chinfrim na Mem de Sá. Ao analisar o hotel do telhado ao meio-fio, o cavalheiro balbuciou para si, com bafo de uísque ordinário: “Deus me perdoe… era tudo o que eu queria.”

***
- Deus me perdoe… era tudo o que eu queria.
- Ouvi bem o que o senhor disse?
- O que eu disse, minha filha?
- Algo como “Deus me perdoe… era tudo o que eu queria”.
- Digamos que o que você ouviu foi apenas um golpe de ar que partiu involuntariamente do esôfago, passando pelas cordas vocais, e, no encontro do palato e da língua em ligeiro movimento, produziu um efeito assemelhado a um som indecifrável, que poderia sugerir algumas palavras. Nada que a consciência tenha comandado. Portanto, se disse, não disse o que você supõe que eu tenha dito…
- Para. O senhor, você, seja lá como quer ser chamado, me enrola. Diz que não diz o que diz. Diz que não diz o que pensa e o que sente. Mas não pode dizer o que sente senão estraga tudo. Até entendo. Estamos aqui num teatro, aqui está o palco, ali está a platéia naquele espelho, formada por nós mesmos. Aqui, o cenário: uma cama suficiente, onde você deposita seu carinho animal dentro de mim e eu o recebo com braços e pernas abertas, como se fossemos dois amantes em pleno gozo do amor, da paixão, do companheirismo, da cumplicidade, como manda o figurino dos grandes amores. E tem mais: duvido que você não duvide da minha sinceridade. “Será que ela goza? Sera que ela finge?” Quer apostar como isso não sai da sua cabeça?
- Mas você gozou, não gozou?
- Fique com a dúvida. Essa dúvida é que faz com que meus clientes voltem sempre. Essa dúvida me excita. Essa dúvida é o fio que separa a paixão da hipocrisia.
- Você fala de um jeito que não parece que é o que você é.
- Não subestime o que eu sou. Só porque sou uma mulher fácil e achada numa mesa do Calypso não posso pensar na minha condição? Não basta ser puta? Tem que ser puta e burra?
- Puta, não! Aqui dentro você não é puta! Está no nosso contrato viver um romance de duas ou três horas. Ainda faltam alguns minutos. E, por enquanto, nós somos dois amantes sem pudores, que se escondem da vida num quartinho de um hotel. E por isso se desejam, se lambuzam, se querem bem. Isso é o que vale. O aqui e o neste momento.
- Pára de falar…, - a moça afrouxou a voz. - Estou com vontade de fazer tudo de novo…
Ademar baixou a guarda.
- Diz “estou com vontade de fazer tudo de novo”, diz. É vontade mesmo ou é fingimento?
A moça põe, entre os dentes e a pontinha da língua, a orelha do parceiro. E diz, rouquíssima:
- Pois fique com a dúvida..., a-do-ro a dú-vi-da.

***

As duas horas combinadas passaram voando. Ademar excedeu o tempo e nem quis saber o quanto pagaria a mais. Os instantes tinham sido tão generosos, que, fosse o que fosse o que estivesse registrado no taxímetro da moça, seria um dinheiro bem despendido, um investimento no escuro com retorno farto de energia e auto-estima. Embora sentimentos de culpa e remorsos não tenham aparecido, Ademar já sentia o ímpeto de abrir a carteira, acertar o negócio e sair correndo atrás de um táxi, até chegar aos braços e abraços das suas filhas, que – adolescentes que eram – não costumavam dormir cedinho como bem recomendado às crianças.
- Minha filha, acho que está na hora…
- Não estou ouvindo mais o rádio.
- Me recuso terminantemente a entrar nesse chuveiro nojento.
- Vai sem banho. Chegue em casa com meu cheiro no corpo. Os suores e perfumes do sexo são divinos, abençoados e inocentes. Pior seria um batom na camisa, um chupão no pescoço. Quanto a isso, pode ficar tranqüilo: sou muito cuidadosa.
- Sábia, você é sábia...
- Você não me disse o seu nome.
- Meu nome?
- Também não quero saber. As colegas do Calypso vão me perguntar com quem fiz o programa e eu vou dizer com Ninguém. “Saí com Ninguém que deu uma bimbadinha e me largou num cafofo da Mém de Sá, com uns trocadinhos na bolsa. Fujam de Ninguém. Ele trepa mal e paga pior ainda.”
- Definitivamente você não saiu com Ninguém.
- De fato: saí com Alguém.
- Alguém, assim, tão indigente?
- Não. Alguém dos Santos. Um quarentão grisalho, feroz e carinhoso, um pouco abelhudo pro meu gosto. Investigou minhas cicatrizes, examinou meus mamilos, cheirou meus cheiros, escarafunchou meus recintos secretos. Mergulhou em mim como um cliente íntimo e freqüente, e que teve a coragem de sair daqui com meu perfume no seu corpo.
- Não. Eu não tive coragem é de entrar naquele chuveiro.
- E ainda por cima, bem dotado de senso de humor.
- Está aqui o que devo. Por favor, não conta agora não. Fico meio sem jeito, não estou acostumado com essas coisas. É mais do que você pediu. É menos que você merece.
- Já descobri o seu nome. Você é Alguém. Alguém com sobrenome bonito: Alguém dos Santos. Alguém com sobrenome comprido, como os nobres e incomuns. Assim: Alguém Muito Especial Cavalheiro dos Anjos e dos Santos. Muito prazer, Margareth.

***


Ademar deixou o hotel sozinho e flutuando nas nuvens. Nada que abalasse seu estado moral, mas entrou num táxi com as veias e artérias dilatadas, por onde fluíam sentimentos e sensações de um bem-estar inédito e encantador.
Precisava – e como precisava – ter vivido esse despudor pelo menos uma vez na vida. Não pensava em retornar ao Calypso, onde nunca tinha ido antes. O que mais queria naquele momento era chegar em casa, abraçar as filhas, beijar a mulher, que, dormindo, não perguntaria porque chegou quase à meia-noite. E assim o fez. Deitou na cama sem fazer barulho e custou a adormecer. Ainda com o cheiro da moça no corpo, caiu num sono profundo e restaurador, como nunca tinha dormido antes.

***


A moça deixou o hotel sozinha e flutuando nas nuvens. Nada que abalasse seu estado moral, mas entrou num táxi com as veias e artérias dilatadas, por onde fluíam sentimentos e sensações de bem-estar inédito e encantador. Precisava – e como precisava – ter vivido esse despudor pelo menos uma vez na vida. Não pensava em retornar ao Calypso, onde nunca tinha ido antes. O que mais queria agora era chegar em casa, abraçar os filhos e beijar o marido, que, meio dormindo, inevitavelmente perguntaria:
- Tudo bem, Maria Cristina? Tia Judith está melhor?
- A enfermeira custou a chegar. Por isso cheguei tão tarde.
E assim aconteceu. Maria Cristina deitou na cama sem fazer barulho, custou um pouco a adormecer. Ainda enfeitiçada por ter sido Margareth por algumas horas, caiu num sono profundo e restaurador. Como nunca tinha dormido antes.

Share


José Guilherme Vereza
Carioca, botafoguense, pai de 4 filhos. Redator, publicitário, professor, roteirista, escritor, diretor de criação. Mais de mil comercias para TV e cinema. Uma peça de teatro: “Uma carta de adeus”. Um conto premiado: “Relações Postais”. Um livro publicado “30 segundos – Contos Expressos”. Mais de 3 anos na Samizdat. Sempre à espreita da vida, consigo modesta e pretensiosamente transformar em ficção tudo que vejo. Ou acho que vejo. Ou que gostaria de ver. Ou que imagino que vejo. Ou que nem vejo. Passou pelos meus radares, conto, distorço, maldigo, faço e aconteço. Palavras são para isso. Para se fingir viver de tudo e de verdade.
todo dia 20