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segunda-feira, 9 de março de 2015

Vidas Partidas


É a primeira vez que Lena me visita. Ela observa o aglomerado de homens naquele ambiente sujo, hostil, cheio de ódio e raiva reprimida. Sei que está com medo, mas não demonstra. Me entrega um pacote com algumas bolachas e guloseimas que gosto. Um embrulho, na parte de baixo, chama atenção. Antes de abri-lo, agradeço, já imaginando se tratar de um livro.

- Isso aqui é vida? - me encara. Abro o embrulho e folheio as páginas, aleatoriamente.
- Aquilo nunca ia ter fim. - disparo, sem hesitar - Fiz isso por nós, mas você não me deve nada. - ela desvia o olhar. Fita o chão.

Deve estar lembrando de como tudo se complicou. O caos que nossas vidas, e de nossas famílias, se tornaram desde a aproximação do homem que me fez estar neste lugar - Maycon.

Estávamos no final da adolescência, e juntos há algum tempo. Fazíamos planos de arranjar um cantinho nosso, melhorar de vida, nos tornarmos alguém. A mãe dela, Tereza, não gostava muito de mim, mas não interferia em nosso namoro – só alguns conselhos, que volta e meia Lena desabafava.

Ela viu Maycon pela primeira vez quando Tereza o apresentou como seu namorado. Ali, já soube que teria de conviver com aquele homem dentro de sua casa. A falsa simpatia perante Tereza e a intimidade forçada do relacionamento como padrasto começaram a gerar em Lena um sentimento de repúdio, que mais tarde se tornaria medo ante os constantes abusos de seu corpo e a ameaça velada de que poderiam ser expulsas da quebrada se o que ocorria dentro da casa se tornasse público.

Nesse período, Lena se afastou de mim, e eu não conseguia entender o motivo. Quando finalmente criou coragem e me confidenciou o caso, me indignei. Queria enfrentar Maycon, mesmo que isso me custasse a vida. Foi ainda mais difícil conter os instintos quando um fato de ainda maior gravidade se abateu sobre a minha família: meu pai, por uma dívida insolúvel, foi assassinado. O mandante: Maycon.

Isso porque ele era a autoridade local. Fazia e desfazia num piscar de olhos, e sua palavra era lei. Todos lhe deviam reverência, e também os valores de aluguel, eletricidade, água e tudo mais que se referisse a bens de consumo. Não precisava pegar em armas para ser temido.

Meu pai nunca foi bom marido nem o pai que eu e meus dois irmãos menores precisávamos. Cometeu erros, vivia afundado na bebida e jogatina, mas nem por isso merecia aquele destino. Eu só pensava numa forma de me vingar, mas Lena me convenceu a olhar ao redor – ali havia uma mãe e duas crianças pequenas que, agora, dependiam de mim para sobreviver; eu não podia ser uma segunda perda para eles.

Foi pelo sentimento da resignação que consegui aguentar firme a presença de Maycon no velório. Após o enterro ele me chamou de lado no cemitério e informou que, apesar da morte do meu pai, sua dívida permanecia, e esta tinha sido repassada a mim. Para ter certeza de que tudo seria acertado, eu teria de ser um de seus traficantes. O verme deixou claro, também, que eu teria de me afastar de Lena. Caso eu descumprisse o trato em algum de seus itens, minha família sofreria as consequências. Não havia escolha.

Larguei a faculdade de História que havia acabado de ingressar. Pra minha mãe, eu estava no curso pela noite e num emprego durante o dia; nos finais de semana, ia para casa de amigos estudar. Na realidade, eu estava na parte mais afastada da quebrada, vendendo drogas pra playboys.

Eu e Lena tentamos nos afastar, mas não conseguíamos ficar longe por muito tempo. No quartinho que arranjei para os finais de semana, nos encontrávamos às escondidas. A vontade de vê-la, tocá-la, recompensava o medo. Naqueles breves momentos voltávamos a ser aquele casal sonhador da adolescência.

Em um desses encontros, Lena me deu a notícia da gravidez. Não precisei perguntar para saber que era de Maycon. Queria que fosse meu, queria poder lhe dar uma vida feliz, queria tanta coisa que nem sei mais como conseguir... Talvez meu lado obscuro já estivesse tão impregnado em mim que, quando Lena disse que queria tirar a criança, a única reação que tive foi pegar um dinheiro e oferecer-lhe.

...

Passo a mão sobre sua barriga em final de gestação. Lena sorri. Pergunto se ela está bem.

- Tenho que estar.
- Voltou a falar com a sua...? - deixo a frase morrer. Lena não esboça reação.

Tereza, mexendo nas coisas da filha e achando o teste de farmácia, descobriu a gravidez no mesmo dia que Lena me contou. A mãe a expulsou de casa sem querer ouvi-la, imaginando que eu era o pai da criança. Teve suas roupas jogadas no meio da rua, observada pelos vizinhos que cochichavam entre si. Parado à porta, Maycon não esboçara reação.

Lena tentou tirar a criança, mas, mesmo já estando prestes a realizar o procedimento na clínica clandestina, não teve coragem.

Foi morar de favor na casa de uma amiga, Cleide, que a protegeu como uma irmã mais velha.

Com o avanço da gravidez, foi demitida do shopping onde trabalhava como faxineira. Apesar da injustiça, não quis cobrar seus direitos – a situação com a mãe, além de todo o contexto, já a fragilizara demais; não queria abrir mais um flanco de luta.

Quando eu conseguia juntar algum dinheiro, mandava para Lena, por intermédio de Cleide. Queria ajudar, mas acabei criando um novo problema. Maycon monitorava meus passos por intermédio de seus subordinados. Logo descobriram onde Lena estava, e ele voltou a rondar-lhe.

Cleide, assustada, me contou o que estava acontecendo. Eu já não podia mais assistir aquilo tudo parado; alguém precisava conter Maycon, e eu me coloquei à disposição.

...

Ficamos em silêncio pelo resto do tempo de visitação. Quando o sinal toca, Lena me abraça demoradamente. Sinto sua angústia, mas não tenho meios pra modificar nem a minha situação neste momento, e dizer pra me esperar seria pedir-lhe demais.

Lena se afasta, e temo nunca mais vê-la. Mas sei que está pronta para as lutar por vir.




Foto: Shadow, de Penny Lam. Usada sob licença Creative Commons.

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