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quarta-feira, 4 de março de 2015

A curiosa história da cidade de P*

Quando soube que iria à cidade de P* fiquei pensando qual seria seu verdadeiro nome, e não pude deixar de achar graça naqueles romances do século passado em que um certo senhor K passava pela aldeia R, nenhum deles devidamente identificado. Passei muito tempo procurando em mapas os possíveis cenários para esses contos e romances. Lembrei-me disso enquanto procurava no Google cidades iniciadas por P e aguardava a confirmação, pelo pessoal do ministério, qual era, afinal, a cidade onde participaria de uma audiência.
- Você não está entendendo. A cidade se chama P*. Mais precisamente, “Ponto Asterisco”.
Naquele momento, é claro, continuei sem levar isso a sério. Sem dúvida, deveria ser um fim de mundo e, exatamente por isso, meus colegas estavam se divertindo às minhas custas.
A coisa começou a ficar séria quando recebi o formulário do ministério. Lá estava a indicação do destino: P*. Bom, em parte, minha primeira impressão se confirmou: a viagem de carro levaria mais de seis horas.

*
Devo ter sido tragado, no meio do caminho, por alguma falha dimensional, daquelas que vemos em filmes B; parecia ter chegado a uma pequena e antiga cidade colonial; tão bonita, limpa e conservada que parecia mesmo uma cidade de brinquedo. Até restaurante peruano tinha. Um centro da cidade não muito maior que um jogo da velha – as quatro ruas continham o fórum, a prefeitura, a igreja, a delegacia de polícia e uma agência dos correios. 

O hotel era surpreendentemente confortável e movimentado. Lá, havia uma infinidade de panfletos de propaganda de farmácia e de uma lojinha de roupa e artesanato. E, claro, todas se referindo à P*...
À noite, resolvi dar uma volta pela cidade (sic). Tudo muito escuro, o que me fez tomar uma cautela que em geral não tenho na hora de conhecer novos ares.

*
Na manhã seguinte, fui ao fórum – para descobrir, já azedo, que a tal audiência havia sido cancelada. Caminhei então até uma lagoa – sim, era a principal atração da cidade; uma lagoa grande e bem cuidada. A cinquenta metros, um boteco, onde parei para tomar um café e acabei encontrando o prefeito, cujo nome, por favor, serei obrigado a declinar.
Não me leve a mal, mas qual é exatamente a origem do nome da cidade?, perguntei-lhe.
A pergunta soou como uma provocação barata de alguém da cidade grande, o que me obrigou a contornar a situação, inventando um interesse pela história colonial – toda a região foi ocupada por paulistas e portugueses no século dezesseis, ainda que, obviamente, o prédio mais antigo ainda de pé tenha pouco mais de cinquenta anos.

- Melhor seria perguntar a origem da nossa falta de nome.

*

Segundo o prefeito, a cidade sempre foi esquecida pelos Governadores. Uma cidade fora do mapa e que, ainda hoje, exige o melhor do GPS. De fato, não é fácil encontrá-la. Mesmo na época dos tropeiros era pouco utilizada. À medida em que a população crescia, cresciam também os problemas. Sem pavimentação, sem hospital decente (mesmo o que funciona, indecente, é bem novo). Não tínhamos luz elétrica, os correios levavam mais tempo para chegar da capital até aqui do que para a Europa.

Nosso intendente, logo após a saída de Dom Pedro II, teve a brilhante ideia de alterar o nome do nosso povoado, para Presidente Deodoro, na esperança de que o velho se sentisse constrangido em deixar cidadãos deodorenses passando fome e morrendo de ameba. Até certo ponto, foi bem sucedido: Deodoro realmente andou por estas bandas e estava para assinar um decreto que criava uma estação de trem aqui, quando foi substituído por Floriano.

Floriano era inimigo de Deodoro, e fez questão de atrapalhar a vida de todo cidadão deodorense. Foi então que enfrentamos uma grande revolta popular – maior que Canudos, mas ninguém dá a mínima para nós. Aqui a coisa foi muito mais agitada que na Bahia. E o populacho invadiu a prefeitura, linchou o prefeito e um comitê alterou o nome para Cidade Presidente Floriano.

De nada adiantou – Floriano nunca esteve aqui. Continuamos esquecidos. Mas quando o Getúlio amarrou seu cavalo no obelisco no Rio, meu avô teve a ideia de se transformar em cidadãos getulienses. E fomos, por quinze anos, Presidente Vargas.

A esta altura, tínhamos um mínimo. O trem acabou chegando por aqui; uma usina se instalou aqui perto e resolveu nosso problema de emprego; a água continuou sem chegar, mas aí seria pedir muito. Mas quando aquele calhorda do Lacerda forçou o homem a se matar, entramos na mais completa decadência. Soube que ninguém queria fazer negócios com getulieneses. Tudo fechou. A usina entrou em crise e mandou mais de cem trabalhadores para a rua, as ruas nunca mais foram consertadas. Isso aqui virou cidade de filme de faroeste, com tufos de feno rolando pelas ruas poeirentas... Mas meu avô, coitado, já bem velho e alquebrado, foi fuzilado pela turba, ensandecida de raiva e de fome.

*
Foi meu pai quem resolveu o problema. Ele e meu avô eram comunistas das antigas. Ele estava naquele grupo que tentou tomar o Catete em 1935 e terminou passando uma temporada em Moscou. Morreu aqui mesmo, uma verdadeira autoridade – sua palavra valia muito mais que qualquer decreto de qualquer prefeitinho que se sentou por aqui depois dele.

Ele descobriu que a cidade poderia se chamar mesmo P*. Era um sujeito versátil; mudamos de nome a cada quatro anos. Somos intrinsecamente governistas, está no nosso sangue. 

Desde então, tudo mudou. Há mais de trinta anos viramos comarca, recebemos uma refinaria - que garante a felicidade  e o emprego de todos, restaurantes, pousadas, festivais de cinema. Nossa cidade é um  verdadeiro bibelô. A rodoviária é imensa - a rigor, nossa cidade toda cabe nela. Só tivemos algum problema nos últimos seis anos, mas com P* também resolvemos o problema de gênero, e nos adaptamos tanto a presidentes como a presidentas.

Que presidente trouxe cada uma dessas maravilhas? Pouco me importa. Pouco importa para todos nós. Para nós, é tudo asterisco.

*

Decididamente, minha estada em P* não me fez muito bem. Assim como o prefeito, comecei a ver nossa história como um bando de asterisco.







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Fabio Bensoussan
Nasceu no Rio de Janeiro (1973) e hoje mora em Belo Horizonte, com sua esposa e os dois filhos. É procurador da Fazenda Nacional e recentemente começou a escrever contos e a traduzir textos literários.
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