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domingo, 8 de março de 2015

Filantropia






Vi na porta do condomínio um anúncio falando que os ratos são animais filantrópicos.

Eu ouvi dizer que os ratos têm um tipo de pensamento coletivo mais elaborado que o das abelhas, das formigas, acho que também dos cupins. Os ratos não têm papéis tão marcados como esses insetos (alguém também me disse que as abelhas não são exatamente insetos...), mas, em compensação, conseguem pensar e tomar decisões como indivíduo. Não, não como indivíduos. O que é assustador nos ratos é que uma colônia, se é esse o nome, eu sou péssimo com os nomes apropriados das coisas, o que me afastou decididamente das ciências biológicas e dos relacionamentos afetivos, enfim, o negócio é que o indivíduo é a própria colônia, e não o rato. O rato é um das centenas, às vezes milhares de corpos desse indivíduo. Não é aquilo que dizem que acontece com os gêmeos humanos, que se tu cutuca um o outro também sente o cutuco, mas é quase isso. Gêmeos não são uma mente com dois corpos – que Deus tenha piedade, nem as almas gêmeas: acho que o nome disso é esquizofrenia. Os ratos, eu ouvi dizer, trabalham com uma forma perversa, mas absolutamente eficiente, de tentativa e erro.

Os adultos da colônia, e um rato deve ficar adulto em umas poucas semanas depois que nasce, os adultos dispersam do lugar onde vivem embolados, como o espaço vazio entre o forro e o telhado da sua casa, ou as paredes ocas de madeira da casa da vizinha da minha Tia Glória, e se espalham em todas as direções. Os que ficam, que são as fêmeas que amamentam, os filhotes que ainda não andam, os muito idosos que esperam o seu destino (já falo disso), todos os ratos da colônia reconhecem a colônia de todos os ratos por um lance sinestésico, como a vibração de todos os coraçõezinhos juntos ou a temperatura que a colônia tem quando todos os ratos da colônia estão no mesmo lugar. Eles são sensíveis às mínimas variações. Isso quer dizer que quando um ou mais de um rato não volta pra colônia, é sinal de que, ó, pobrezinho, ele morreu. Para os ratos, isso é a melhor notícia possível: morreu alguém da colônia.

Os ratos não morrem de doenças. Basta contabilizar a quantidade de doenças que eles transmitem para todos os outros mamíferos do planeta, e quantas vezes a população da Europa foi reduzida na idade média. Eu não sei quantas foram, mas também há quem diga que a idade média sequer existiu, que isso foi coisa dos iluministas pra ter um argumento foda o suficiente para ninguém duvidar da verdade da ciência, uma coisa como foi jesus cristo para os cristãos, ou moisés para os judeus, ou mohammed para os muçulmanos, ou buda para os budistas, ou o plano real para os brasileiros: um argumento em que você acredita porque é melhor acreditar do que duvidar. Os ratos têm uma coisa parecida. Já que eles não morrem de doenças, morrem de velhos, na colônia, ou são mortos. Quando morrem de velhos, e isso acontece muito raramente, um rato tem a maior honraria que poderia ter um rato: é devorado pela colônia, sem cerimônia. A colônia reintroduz o corpo daquele rato no ciclo. Quanto aos outros, os que são mortos, é o sinal pelo qual a colônia espera todas as noites, quando os sobreviventes retornam de suas incursões.

As saídas a campo dos ratos tem um único objetivo: comer. Um rato come o equivalente a duas vezes o seu próprio peso todos os dias, e seu incrível metabolismo, que aproveita muito pouco disso tudo, acaba por fazê-lo transformar quase tudo o que come em cocô. É precisamente essa capacidade produtiva que faz com que os ratos sejam vetores de epidemias. Um rato sai da colônia sabendo que vai comer até não poder mais, e que vai eliminar quase tudo o que comeu em poucos minutos. E o rato sabe que, saindo da colônia, ele tem duas funções: voltar para ela e não voltar. Seria um problema se houvesse um Freud dos ratos: não existe uma neurose murídea. E é bem provável que os ratos não tenham quaisquer sentimentos recalcados por transar com ascendentes e descendentes, todo mundo ao mesmo tempo, desde a mais tenra idade. Como também não devem sonhar, a psicanálise tradicional ia fracassar em pouco tempo.

O rato deve voltar para a colônia para o recenseamento diário. Ele sabe que tem que encher (e esvaziar) os tubos de comida e voltar no fim da jornada. Acho que eles tem o seu medidorzinho: “já comi duas vezes o meu peso: tá na hora de voltar pra casa. Amanhã eu volto”. E ele volta! Pode apostar. Ele sabe direitinho o caminho. No fim da noite, a colônia, pelo peso, pelo calor, pela quantidade de coraçõezinhos batendo, sabe quantos ratos saíram, e quantos desses voltaram. Essa é a questão. Ou, apropriadamente (se isso fosse um desenho animado), o pulo do gato.

O dever do rato é não voltar à colônia. Os ratos vão onde há comida acumulada. Ratos não comem o doce pólen, ou a pasta gosmenta e fermentada das folhas, ou o saboroso lenho da penteadeira chinesa que a vovó ganhou da baronesa. Ratos comem a mesma comida que nós comemos. A mesmíssima comida nossa de cada dia: a que nós estocamos. Os ratos não saem das colônias para mamar nas tetas das vacas nas estrebarias; eles saem da colônia para comer queijo. Saíam, né, porque hoje é raro quem não deixa o queijo na geladeira. Só a minha Tia Glória, porque ela aprendeu a receita e faz queijo em casa. E faz o rancho do mês e coloca tudo no armário da cozinha, em sacos presos pela boca com um prendedor de roupa. Arroz, feijão, farinha, bolacha. Frutas na fruteira. Farelos de cuca que caem no vão da cadeira-do-papai, ainda que Tia Glória não seja um papai, nem tenha mais um papai, nem viva com um “papai”, ela tem uma cadeira-do-papai, em que ela senta diariamente para assistir ao chef-celebridade aquele jogar ingredientes e impropérios na cara de aspirantes a chef-celebridade na reprise de um reality show, ou ao treinador-de-cães-celebridade (isso ficou ambíguo) aquele que treina cães com a mesma ternura que minha Tia Glória trata os alunos do ensino fundamental da escola onde ela ensina que a capital de Sergipe é Aracaju, e que estamos todos vivendo sobre o leito do maior aquífero subterrâneo do mundo, e um dia, não há de demorar, vai acontecer uma guerra por causa da nossa rica água potável, e o Joãozinho pergunta “Mas professora, e a água do mar?”, “Ora, Joãozinho, a água do mar é salgada, imprópria para o consumo”, “Mas o meu pai disse que dá pra tirar o sal da água, e nem é tão difícil, e que essa coisa de guerra por causa da água é a mesma desculpa que deram pra detonar o Iraque por causa do petróleo”, “Então tu podes convidar o teu pai pra dar aulas no meu lugar, já que ele sabe mais de geografia que eu”, “Mas profe, eu...”, então ela faz aquele mesmo gesto vigoroso com o braço, como ela aprendeu com o treinador-de-cães-celebridade, um gesto forte, rápido, cortante, com o dedo indicador em riste, delimitando o seu espaço, fazendo “Pssst!”. Joãozinho sente a garganta ficar do tamanho de uma ervilha, e a sobrancelha cai involuntariamente, dando a ele a aparência de um australian cattle dog, ouvi dizer que é o mais adestrável dos cães, acuado em seu lugar, pronto para destroçar a garganta da Tia Glória, mas o argumento dela, “Pssst!” foi imbatível. Do círculo pra dentro é tudo dela. 

Tia Glória está sentada na cadeira-do-papai assistindo ao telejornal com o telejornalista-celebridade aquele, bonito que é o cacete, o grisalhão, casado com aquela outra, já viu o programa dela, nada a ver, né?. Quando ela era pequena, teria dito que sente uma coceira louca na perereca quando vê o telejornalista-celebridade. Não foi adiante, bem que queria, porque tinha acabado de comer uma fatia de cuca. “Professora, a senhora sabe o que é cuca na Colômbia?” disse a professora de espanhol na sala de professores, contando o que o Joãozinho perguntou. Contou rindo. Isso é falta de domínio de classe, pensou a Tia Glória. Essas psicomerdagogas, vigotisquianas, piagetianas, o caralho, tudo uma cambada. As crianças estão assim porque começou essa petezada dos infernos a trazer essa imundície pro Brasil. Bom era quando a gente dava aula de Moral e Cívica, OSPB. Agora é isso. Essas pragas só faltam cagar na nossa cabeça. Ah, é ele. O grisalhão! Tia Glória serve mais uma xícara de café. Café colombiano, que aquela bolsista de intercâmbio trouxe, e deu um pacote só pra ela. Ficou com medo quando aceitou, mas não quis fazer desfeita. Vai saber o que misturam nas coisas lá. “O que é cuca na Colômbia?”. Mas quando passou o primeiro café, Deus, Deus existe!, Meu Deus!. Teve que tomar duas cápsulas aquela noite, pra conseguir dormir. Duas. Levou uma cuca de presente para a bolsista no dia seguinte. “A gente chama esse pão de cuca. O nome desse pão é cuca. Cuca.” E ficou esperando a reação da moça, e ela disse, com aqueles olhos indígenas dela, viu como ela é parecida com o Joãozinho, “En Colombia también”, e saiu. Nem disse “grazie”, a mal educada. É a petezada trazendo essa gente pra cá.

Tia Glória levantou pra ir ao banheiro quando viu um camundongo entrando antes dela. Filho da puta! Tia Glória podia ter todos os defeitos, acredite, acho mesmo que ela os tinha, mas de uma coisa é preciso dar os méritos a ela: Tia Glória não tinha medo de nada. Foi assim que saiu de casa aos quinze, que foi para a cidade grande fazer faculdade antes dos dezoito, que deciciu nunca se casar porque homem não presta, coisa que eu sempre concordei. Nunca teve medo de dizer o que pensa, de pensar, aliás, e de dizer a verdade, a coisa que mais as pessoas tem medo, não de dizer, mas de ouvir a verdade. Eu digo!, ela diz. E diz mesmo, misericórdia. É preciso estar com a cabeça em dia pra não correr para o banheiro vomitar quando ela diz que esse curso que tu escolheu não vai te levar a nada, e que aquela tipa com quem tu tava saindo, eu tinha certeza que aquilo era uma ordinária, eu não te disse?, pra que gastar o teu dinheiro com psicólogo?, dinheiro bom é dinheiro guardado, e bah!, como tu tá gordo, eu não como mais nada que tenha açúcar e olha pra mim, parece que eu tenho a idade que eu tenho?, a tua mãe não, a tua mãe tá acabada, mas eu digo pra ela se cuidar, tem umas e outras aí muito mais mocreias que ela que se acham, e ela é bonita ainda, só tinha que fazer alguma coisa com aquele cabelo, e tu tá fumando?, tá sim, dá pra ver no branco do teu olho que tu tá fumando, segue assim, vai acabar igual ao teu pai, um fodido igual ao teu pai, coitado dele, bah!, só de lembrar a frustração que ele teve por não ter feito jornalismo porque teve que ir trabalhar quando tu nasceu, e hoje, olha só onde ele podia estar, ele podia estar apresentando o jornal lá no Rio se tu não tivesse nascido. Que merda, né?

O camundongo entrou no banheiro antes da Tia Glória. Ele sabia o destino dele, e ela também. Tia Glória tinha uma paciência inacreditável nessas horas. E muitas horas daquele canal de documentários sobre a vida animal, e mais outros sobre acumuladores. Ela não era acumuladora, longe disso, só guardava aquilo que tinha certeza que um dia ia precisar. Quem guarda o que não presta tem o que precisa, dizia a minha avó. Tia Glória tinha uma caixa com globos de luminárias velhas que ela encontrou no lixo do vizinho, porque queria fazer uma horta de apartamento, como deu naquele canal de ideias bacanas de decoração e saúde. O camundongo estava atrás daquele negócio que segura a pia, que eu não lembro o nome, aquela porcaria infernal que a gente nunca consegue limpar, e só vê a sujeira daquilo quando fazem uma reforma e arrancam aquilo tudo. Pois o camundongo se escondeu bem ali. Pacientemente, Tia Glória fechou o acesso ao banheiro com a caixa dos globos de luminárias que virariam uma horta de apartamento. Pegou no quarto o inseticida. Inseticida não mata ratos, mas eu matei uma abelha com o spray esses dias, então, aquilo deveria funcionar, já que a abelha não é exatamente um inseto e morreu. Tia Glória esperou que o camundongo saisse de onde estava, para assustá-lo novamente e ele correr de volta para o esconderijo, ela queria confirmar que ele estava mesmo escondido ali. Um jato contínuo fazendo a manobra por trás da porcaria da pia, na direção onde devia estar o intruso. Uma lata inteira, ou quase, já que não estava cheia, e Tia Glória voltou para onde estava, atrás da porta, que é como se caça, sem se mostrar inteira à presa, mas o suficiente para ela ficar tensa e correr para onde você quer. O ratinho saiu às tontas, talvez mais lambuzado de veneno do que entorpecido por ele, e patinava no piso classe A da Tia Glória, igual ao banheiro daquela artista. O tênis de caminhada foi ligeiro, swosh!, e plaf!, ou plef!, ou melhor, plf!, já que o camundongo é assim compactozinho, e não faz o mesmo barulho bater num rato e numa mosca, é mais abafado.

Tia Glória parou em posição de açucareiro, ou de super-herói de seriado, com as duas mãos na cintura e o peito inflado, ainda que isso sejam gestos evidentes de masculinidade, quando o homem quer demonstrar, ou fingir, ser um exemplar robusto, atraente para a fêmea a quem ele quer chamar a atenção, coisas que ele reforça com outros atributos masculinos como relógio de marca e músculos, e as mulheres tendem a demonstrar sua feminilidade, palavra muito mais adequada para essas situações, porque vem de fêmea, a fêmea tem todo um repertório não-verbal de demonstrações tanto de interesse quanto de repulsa pelos machos, e ela sim, ela é que era uma mulher feminina, que não precisa de homem pra nada, só demonstra interesse para eles saberem quem é que tem o poder de escolha, autossuficiente, independente, não dessas histéricas que teriam um surto de pânico se vissem um ratinho de nada desses, ou, pior, um surto de ternura vendo uma criatura tão frágil e pequenina, a cara do ratinho cozinheiro daquele filme, debatendo-se cada vez mais devagar até perecer sobre o piso frio e branco do banheiro. As patinhas, as orelhinhas, o rabinho, o focinho são cor-de-rosa, o corpinho cinza, os olhos, muito pretos, miram o vazio. Começa a chover lá fora. A garganta fica do tamanho de uma ervilha, e Tia Glória vai até a cozinha pegar a vassoura, a pá e uma sacolinha do supermercado para servir de mortalha ao camundongo. Descansa em paz. Me perdoa. Eu podia ter te botado pra fora, mas amanhã tu ia voltar, né? Por que vocês transmitem tantas doenças, hem? Deus, por que a gente precisa matar? Por que precisa ser tão cruel com as pobres criaturas que o Senhor criou, só pra mantermos essa coisa que é o nosso modo de vida? Isso não podia continuar assim. Tia Glória sentiu a incontrolável vontade de (também ser fera?) pôr em prática aquele velho plano de ser vegetariana. Naquela noite, ficou até tarde vendo receitas na internet. Ela anotou uma frase que achou linda. Quando alguém se torna vegetariano, nasce um gourmet. Pensou em tatuar no seio esquerdo.

Naquela mesma noite, um rato não voltou para a colônia. Isso era esperado. É esperado que os ratos não voltem. O rato sabe, e a colônia, principalmente, sabe. Ratos fazem parte da cadeia. São devorados por répteis, aves e outros mamíferos, talvez, sabe-se lá, até por insetos ou plantas carnívoras. Raramente, à exceção dos gatos dos desenhos animados, os ratos são mortos por esporte, mas a colônia tem os seus meios de saber isso. Mais comum, mas ainda assim raro, é um rato morrer esmagado pelas rodas dos veículos, mas isso já é um indício de que as coisas correm bem para a colônia: à exceção dos desenhos animados, só seres humanos conduzem automóveis. Logo, se um rato não voltou, será por três motivos: ou foi morto por esporte, ou foi morto por um veículo, ou foi morto por um bom motivo. Se o rato não foi pego comendo os restos de cuca nas frestas da cadeira-do-papai, ou abrindo os sacos de arroz integral de dentro do armário da cozinha, ele volta para a colônia, e amanhã ele faz o mesmo caminho. Se o rato foi pego comendo a comida dos humanos, não vai poder envelhecer o suficiente para ficar inválido e ser devorado pela colônia, como seus instintos lhe dizem para fazer sem questionar. Todos os ratos da colônia conhecem os sinais deixados pelos membros da sua comunidade: os cocôs são como a impressão digital da colônia. Se ele morre, para a colônia, é uma grande notícia, uma festa na colônia! A morte de um rato é sinal de futoro próspero. Onde há humanos, há um bom motivo para um rato morrer. Sempre será por um bom motivo. Amanhã, outro rato vai seguir o rastro de cocô do falecido, e será assim até o fim dos tempos.

Lembrei do cartaz na porta do condomínio. Me dei o trabalho de procurar: os ratos são animais sinantrópicos. Acho que dá na mesma.





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Conto publicado originalmente em F417s-d1ver5, entre 30/1/2015 e 8/2/2015
 

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