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quinta-feira, 28 de fevereiro de 2013

Arte e Vida Severina


Quando nasceu, um anjo baldio desses que fingem brincar de Deus disse: vai, menino, ser feliz na vida! E ele foi! Desde então vem ele bordando no tecido do tempo sua arte e vida severina. É possível que ele siga as linhas invisíveis do risco de um bordado previamente traçado. Ele pouco sabe. Desconfia apenas de sua sina de tecelão e, graças a ela, entrega-se ao ofício de tramar os fios da vida. Enquanto isso, o tempo, um senhor tão bonito, brinca ao redor do caminho daquele menino.

Lá está ele, menino-criança, entregue às experiências inaugurais, aquelas que pavimentam o chão da memória com pedrinhas de brilhante. É o tempo dos primeiros encantamentos, das primeiras descobertas, dos primeiros sustos, das primeiras letras, da alegria da vida solta, da revoada de primos da mesma idade, das frutas colhidas no pé, do pé no chão. É o tempo da vida miúda na miúda Buriti Alegre, pequenino lugarejo encantado, beira-planalto, nos confins de Goiás. Só quase vereda, mas tão de repente mítico! É o tempo do abandono do pai. Havia no pai um desejo de rio – e o pai se deixou navegar errante pelas correntezas até aportar numa terceira margem.

Um pouco mais, já é um menino-adolescente, entregue aos sonhos impossíveis, aqueles que insistem em povoar o casulo da imaginação. É o tempo dos primeiros conflitos, dos desconfortos com um crescer estabanado, do maravilhamento com as surpresas do corpo, dos primeiros tremores do coração. É o tempo da busca de um norte. Havia no menino um desejo de barco – mas seu coração era bússola desnorteada e o menino aprisionava-se na insegurança e na indecisão.

Mais adiante e ei-lo menino-rapaz, entregue aos sonhos possíveis, aqueles que migraram do casulo da imaginação para o palco da ação. É o tempo do desassossego, do sobressalto, da mudança para uma cidade nova, do desafio do vestibular, da descoberta da leitura, do encantamento diante de tudo que leva a assinatura da imaginação, do mergulho na arte (a arte que sustenta a vida real). É o tempo das grandes dificuldades, dos grandes medos, das grandes incertezas. É o tempo de uma conquista fundamental – o ingresso no Banco do Brasil. É o tempo de uma tranqüilidade financeira inédita para um menino que, junto com a mãe e dois irmãos, vinha cumprindo, sem amargura, sem revolta, o estatuto civil da pobreza. É hora de dizer que havia na mãe um desejo de raiz – e a mãe fez o que pôde para manter seus frutos ao abrigo de sua árvore. 

Ali na curva dos trinta, menino-homem, está ele entregue a uma paixão com contornos de para sempre, daquelas que parecem decretar o início, o fim e o meio. É o tempo de sedimentar conquistas, de se apegar mais ainda à vida e seu incessante cortejo de dor e delícia, de acreditar que nas dobras do ordinário pode estar o extraordinário. É o tempo de ensaiar mais um vôo. Havia no menino um desejo de asas – e ele acabou pousando numa das asas de Brasília, o seu sonho feliz de cidade, de onde só pensa voar rumo ao derradeiro pouso.

Agora, para sempre homenino, está ele entregue à travessia da casa dos quarenta, inteiramente despreocupado com o final dessa travessia. É o tempo da vida tranqüila, da paixão que virou uma amizade mais que amorosa, da calmaria de quem quer muito pouco. É o tempo de apreciar a vida se vivendo nele e ao redor dele. Há sempre no homenino um desejo de vela – e ele cuida de manter seu barco o mais possível na rota dos ventos favoráveis. 

Mas quem é esse menino? É um menino do Brasil que se confunde com outros tantos meninos severinos, iguais em tudo na vida, iguais em tudo e na sina. É um menino brasileiro que não se cansa de ter a esperança de um dia ser tudo o que quer.


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14 comentários:

Bela estreia, meu amigo! Bem-vindo à SAMIZDAT! O "homenino" vai caminhar agora por estas paragens literárias. Abração.

Querida Cinthia, obrigado pelas boas-vindas. É uma honra caminhar ao lado de tanta gente bacana. O "homenino" está mais que feliz. Abs, Tarlei

Joaquim, muito obrigado pelas boas-vindas! Sigamos... Abs, Tarlei

Belo texto, Tarlei.!
Vejamos os próximos!
Abraço,
Morvan

Muito obrigado, Morvan!
O próximo ainda demora um pouquinho. Contar com a sua leitura de poeta é uma honra pra mim.
Abs,
Tarlei

Muito querido Tarlei,
Sucessos em mais este caminhar literário.
Que dizer? Sou sua fã.
Abraços.
Edna Freitass

Querida Edna,
que dizer? Uma honra que você se diga minha fã. Vou abrindo caminhos pelo mundo, vasto mundo virtual.
Abs,
Tarlei

Parabéns, Tarlei! Sua bela estreia não deixa dúvida de que mtos mais textos marcantes estão por vir. Seja bem-vindo! Abraço.

Caro Edelson,
meu vizinho aqui na SAMIZDAT, muito obrigado pelas boas-vindas!! E com uma vizinhança tão boa de prosa (e verso), vou ter de rebolar (não me entenda mal... rsrs...) pra manter o pique.
Abs,
Tarlei

Os números deram o sustento do corpo, as letras, o sustento da alma. Da mistura, a "tranquelicidade". Desde já, desejo-lhe 1 bom 10canso quando chegar a aposentadoria do BB, a5como uma excelente sequência no caminho da arte!

Obrigado pelas palavras, Rudinei. Gostei do jogo entre letras e números. E que bom que as letras são em maior número. É como vejo o meu futuro próximo: quase todo ele em companhia das letras. Depois de 30 anos de profissional dos números, o 10canso será bem-vindo. E não há como não ser grato aos números. Eles é que financiarão o ócio que me permitirá seguir o ofício de amador das letras.
Abs,
Tarlei

doce
feminino
e me perdoe, mas foi como senti seu texto

Maria de Fátima,
que bom que tenha me sentido doce e feminino. Há uma canção popular que diz "Ser um homem feminino / não fere o meu lado masculino". E lembro também a canção "Superhomem", do nosso Gilberto Gil, que diz: "Minha porção mulher, que até então se resguardara / É a porção melhor que trago em mim agora". Tudo isso para dizer: desconfio que meu texto não desmente sua leitura.
Abs,
Tarlei

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